Caderno de Sábado

Histórias (quase) esquecidas: o tapa do diabo

No distrito de Mato Perso, Santa Juliana está amarrada ao belzebu o que já motivou inúmeros causos

As memórias são os frutos da bagagem pessoal de cada um de nós. Elas trazem consigo uma formação cultural própria, os ensinamentos de outros e a identidade social de um povo. É por isso que muitas histórias podem nem ser verdadeiras, mas devido às memórias guardadas fazem parte do imaginário de uma comunidade. Dessa vez, nossa história vem do outro lado do rio, mais precisamente das ‘terras perdidas’. O distrito de Mato Perso, elevado a esse patamar em 1990, é rodeado de encostas vertiginosas, cascatas, terras férteis e uma igreja com o diabo no altar. Isso mesmo. O belzebu está em destaque no altar da capela de Santa Juliana. Lá, ele está acorrentando à santa. A imagem é uma releitura feita há mais de 100 anos pelo escultor Nino Rigo. E é justamente essa iconografia: uma santa amarrada ao diabo no altar de uma igreja católica no meio das ‘terras perdidas’ que nasceram causos extraordinários. Ou uma ‘vingança’ do ‘tinhoso’.

A mais conhecida é datada da década de 1920 e bastante contada pelos antigos moradores. Naquela época, a festa em honra a Santa Juliana era realizada no mês de fevereiro e, costumeiramente, poucos dias antes da sagra os santos eram retirados do altar para serem limpos e ornamentados para a festividade.

Conforme o livro ‘Mato Perso: uma história a ser preservada’, organizado pela historiadora Gissely Lovatto Vailatti, o coroinha Virgílio Armando Marchet era o responsável, naquele ano de 1924, pela limpeza das peças. Com 12 anos, dizia que não tinha medo de nada e ao limpar a imagem de Santa Juliana acorrentada ao diabo caçoou do demônio: “te si quá é, ma no te me ciapi (tu estás aqui né, mas tu não me pegas não)”. Só que o feitiço virou contra o feiticeiro.  E horas depois da brincadeira ao retornar para casa a cavalo, na calada da noite, ele ouviu um barulho seguido de um tapa tão forte no rosto, que quase o derrubou do cavalo. “Virgílio ficou muito assustado e contava que o diabo o teria atacado. Contava também que ouviu aquele barulho por muitos anos. Depois disso, ele nunca mais brincou com o diabo”, escreveu Gissely. Em depoimento à escritora, Aquilina Verona Gaio contou “o padre disse pro Marchet que tinha sido o diabo, que ele não tinha que ter ido lá mexer com as coisas da igreja. Ninguém viu e, então, achamos que realmente tinha sido o diabo. O Marchet foi para casa chorando (...) E o menino realmente tinha levado um tapa na cara, porque tinha o sinal da mão”.

Em meio ao mato fechado, sem energia elétrica e com a grande devoção dos moradores, a história se espalhou. Outros relatos foram sendo contados e a crença popular estabeleceu que não se podia brincar com o diabo de Santa Juliana. Devido ao fato, os pais costumavam usar a figura do demônio para colocar medo nos filhos para que respeitassem as regras. “Quando vieni il prete, tecava fora le reche (quando o padre vier, vai te arrancar as orelhas), dizia minha mãe quando eu chegava perto do altar. Durante a missa, ficava de olho nele (no diabo), mas não chegava nem perto. Um dia, estava lá com minha mãe e as mulheres rezavam a Ave Maria em italiano, mas não compreendia o que diziam. Parecia: ‘Tra, tra, tra le ale (bate, bate as asas). Então, pensando que elas estivessem falando aquilo para o diabo fiquei apavorado pensando que ele ia me pegar. Morria de medo”, contou Júlio Conte ao Jornal O Florense em dezembro de 2014.

Em depoimento à pesquisadora Gissely Vailatti outro depoimento pregava o pavor ao diabinho de Mato Perso. “Quando a gente era criança, tinha medo do diabo que tinha na igreja. Os mais velhos diziam que tinha que fazer direito, porque o diabinho de Santa Juliana podia se soltar”, contou Alourdes Basso Mussoi.

Santa Juliana

Os causos e histórias envolvendo o diabo de Santa Juliana se propagaram, mas a santa nada tinha de demoníaca. Santa Juliana nasceu por volta de 285 em Nicomédia, atualmente Turquia. Foi uma cristã devota que não aceitou se casar com um jovem pagão a quem estava prometida. Ela foi torturada e trancada em um calabouço por conta da recusa. Foi durante o seu confinamento, que recebeu a visita de um demônio que tentou persuadi-la a casar e renunciar a Deus. Por conta disso, sua imagem está ao lado do demônio preso a ela por uma corrente, em alusão à tentação vencida pela santa.

Para os católicos, a jovem decapitada é reverenciada como padroeira da castidade, da pureza e da doença. Foi enterrada em sua terra natal, a Nicomédia, mas seus restos mortais foram transferidos anos depois para Nápoles, na Itália. Por isso, se tornou conhecida entre os italianos e seus imigrantes, que levaram a devoção a Flores da Cunha. E foi lá, em ‘mato perso’, que ela ganhou fiéis e computou histórias.

 

 - Arquivo OF
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