Histórias (quase) esquecidas: a terrível moléstia
Em 1918, a Vila de Nova Trento enfrentou a pandemia da gripe espanhola
Uma tábua colocada no alto do casarão de madeira localizado na Rua Parobé (atualmente Avenida 25 de Julho) anunciava o que os moradores da Vila de Nova Trento enfrentavam no final do ano de 1918. Em letras garrafais, estava escrito: “Para não contrair a mortífera gripe ‘hespanhola’, não deixe de tomar, aqui, a cachaça de Carlos Nissola”.
Apesar da brincadeira, Nova Trento, na época ainda distrito de Caxias do Sul – a emancipação ocorreu apenas em 1924 -, combatia de perto a terrível pandemia que havia deixado o mundo estarrecido. A gripe espanhola foi um vírus influenza que se espalhou pelo mundo entre 1918 e 1919, logo após o término da Primeira Guerra Mundial. Estima-se que mais de 50 milhões de pessoas morreram. No Brasil, a doença chegou por volta de setembro de 1918, por meio do navio Demerara, que havia saído da Inglaterra. Logo, se espalhou pelo país, pois não havia medicamentos que a combatessem. A difusão foi rápida e, conforme o Jornal Cittá di Caxias, em 4 de novembro de 1918, as autoridades de Caxias do Sul já tomavam medidas para combater a influenza. O jornal destacava:
“A Influenza Espanhola está se alastrando pelo Estado com intensidade assombrosa. Rara é a cidade do Rio Grande que ainda não foi atingida pela terrível epidemia. Verdade é que, algumas vezes, a moléstia se apresenta com caráter de gripe benigna, então, as pessoas atacadas conseguem escapar, salvando a vida. Na maioria dos casos, surge, porém, a influenza inesperada e violentamente, quase sempre com resultados fatais. Aqui em Caxias já existem alguns casos. E é de supor que o seu número aumente, pois estamos em contato diário com Porto Alegre. O ilustre major Adaucto Cruz, vice-intendente em exercício, tem agido com toda a energia, tomando as providências decisivas que a gravidade do caso requer. Por ato governamental, foi nomeado o dr. Joaquim Lopes de Azeredo, médico da higiene municipal, com a incumbência também de atender a todos os doentes pobres e tomar as medidas que se façam necessárias, em virtude da situação anormal que atravessamos”.
Desinfecção e proibição de porcos
Para evitar o contágio, uma série de medidas foi tomada. Conforme o texto de 1918, a Estação Férrea de Caxias do Sul, inaugurada em 1910, passou por uma rigorosa desinfecção em todos os carros e bagagens. Consta no jornal:
“Ficou assentada a aplicação de enérgicas medidas de higiene nas casas de diversões, nos hotéis, na igreja e nos colégios. Serão feitas visitas domiciliares, no intuito de se constatar o asseio das habitações, indicando, quando preciso, o uso de medidas preventivas (...). Dentro dos limites urbanos foram retirados todos os porcos existentes, não sendo absolutamente permitido a quem quer que seja conservar aqueles animais em seus pátios. A remoção do lixo e a completa limpeza das ruas constituem um dos pontos do programa da higiene municipal”.
A falta de hospitais e de atendimento médico e a rapidez do contágio assustava a população nova trentina. Os moradores a chamavam de “fastidio terribile” (terrível moléstia). O Jornal O Brazil, de 4 de novembro de 1918, anunciava: “O aparecimento da epidemia entre nós”. O médico e fármaco italiano Antonio Giuriollo atendia na vila e solicitava à população que melhorasse os hábitos de higiene pessoal. Por recomendação do profissional, muitas famílias adquiriram banheiras brancas para tomar seus banhos.
A escritora e pesquisadora do projeto Vozes do Tempo, Maria de Lurdes Rech, em sua crônica ‘O Renascer na Reclusão’, conta que a florense Carmelita Schiavenin Santini teve um parente afetado pela gripe espanhola. “Permaneceu em isolamento por 40 dias, quando ficou na casa de amigos que moravam no interior da Vila Nova Trento. O tratamento foi por ingestão de chás, caldo de galinha, limonada, purgantes, aspirina, além de o paciente ficar acamado e em isolamento. Na ocasião, a esposa e seus seis filhos, permaneceram na casa da família, próxima ao convento dos Freis Capuchinhos. Após a quarentena, o esposo retornou para casa são e salvo”, escreveu Maria de Lurdes.
Óleo de rícino e limonada
Não se sabe ao certo quantos nova trentinos padeceram da doença. No Livro Tombo da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes existe uma lacuna no preenchimento das informações. Logo após a instituição do Curato de Nova Trento, em 1916, não existem mais anotações até 1921 – justamente durante o período da pandemia. E lembrando ainda que muitos arquivos municipais se perderam com o incêndio da intendência municipal de 1927. Porém, o Livro de Falecimentos da paróquia aponta que entre os anos de 1918 a 1924, oito pessoas (seis mulheres e dois homens) morreram vítimas da influenza. Como causa morte nesses casos consta: gripe espanhola.
O escritor Claudino Antonio Boscatto no livro ‘Memórias de Um Neto de Imigrantes Italianos’ aponta que a gripe deixou sequelas em pessoas conhecidas da Vila de Nova Trento. “Um caso foi o da senhora Amália Curra Soldatelli, primeira esposa do comerciante Pedro Soldatelli. Outra vítima foi Carlos Mascarello, filho mais novo de Estáquio Mascarello. Ele estava servindo numa unidade do Exército Nacional, sediada em Rio Grande. Seus restos mortais foram trazidos para cá cinco anos depois do óbito, numa pequena caixa”, escreveu Boscatto.
Apesar das poucas informações, existia um enorme medo da população em contrair a doença, já que muitas vezes ela era letal. Muitos moradores viviam mastigando bulbos de alho por acharem que a planta os tornasse imunes. O Jornal O Brazil, de 4 de novembro de 1918, recomendava algumas precauções:
“Com as medidas higiênicas e outras conseguiremos minorar os efeitos do terrível mal e fazer com que ele não se demore muito entre nós. Publicamos alguns conselhos: como primeira medicação deve-se recorrer a um purgativo que pode ser óleo de rícino, limonada de citrato de magnésio ou purgante de sal. Caso o estômago não suporte o purgante é necessário fazer uma lavagem intestinal com um litro de água morna (...). O regime alimentar deve consistir em leite, café fraco, chá da Índia, chá de canela e caldo de galinha. O doente guardará em leito desde as primeiras manifestações da moléstia para evitar complicações”.
A gripe espanhola foi uma das piores pandemias da história da humanidade, chegando a causar a morte de 35 mil brasileiros. O Jornal O Brazil, de 7 de dezembro de 1918, publicava que ‘o mal vai se alastrando entre nós’:
“Está, infelizmente, tomando proporções de certa gravidade a propagação nesta cidade (Caxias) a influenza espanhola. Tendo se mantido até pouco tempo num progresso mais ou menos lento, dando-nos a esperança de que não se demoraria entre nós e nem causaria grandes males, a recrudesceu sensivelmente nesta semana com o aparecimento de grande número de casos. Diversas vidas preciosas, o mal implacável, tem conseguido ceifar (...). Sem nenhum exagero de nossa parte e baseando-se em declaração dos médicos assistentes podemos avaliar o número de gripados em 800 pessoas disseminadas por todos os recantos da cidade”.
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