Arquivo O Florense

Tudo (quase) para ao som do campanário

Erguida entre 1946 e 1949, atualmente a torre localizada ao lado da Igreja Matriz de Flores da Cunha também anuncia falecimentos e cerimônias religiosas

Uma tarde quente de dezembro de 2008 chamou a minha atenção logo que cheguei em Flores da Cunha. Já conhecia a cidade e parte do seu interior. E conversando com colegas fui abruptamente interrompido, sem motivo aparente. Depois, percebi que a música escutada lá longe, que ficou mais alta após as janelas da sala serem abertas, vinha do campanário localizado ao lado da Igreja Matriz Nossa Senhora de Lourdes. Ao tentar pedir o que estava acontecendo, ouvi um sonoro “Shshshshs”. Em seguida, os alto falantes da torre anunciaram o falecimento de um cidadão florense. Como se nada tivesse acontecido, normalmente os colegas voltaram ao trabalho, tecendo alguns comentários. Só depois entendi tudo. Definitivamente, esse é um hábito comum em Flores da Cunha, um município que cresce a cada dia, mas ainda preserva particularidades de pequenas cidades.

Tal hábito, na verdade, é uma herança não só dos imigrantes italianos. Há séculos os sinos das igrejas badalam para reunir comunidades inteiras. Com o passar dos anos, e com o advento dos equipamentos de som, as torres ou campanários começaram a transmitir as mais diversas informações à população. Em Flores da Cunha não foi diferente, conta o frei Darci Antonio Vazzata. “Logo após a construção da torre, em 1949, foi iniciada a divulgação de todo o tipo de informações. Quando cheguei à cidade, em 2001, eram anunciados perda de chaves e sumiço de cachorros, por exemplo. Hoje, divulgamos apenas notas fúnebres e de festas, bem como eventos com caráter comunitário”, frisa o pároco.

Vazzata, 53 anos, é o responsável por ler, do microfone instalado na sacristia da Matriz, todos os anúncios. Quando não está na igreja ou na secretaria paroquial, outro frei se responsabiliza pela leitura.

Para cada tipo de anúncio existe uma música. A mais conhecida – não sei se esperada – é O Silêncio, ou também conhecida como Toque do Silêncio. A versão instrumental é a canção que anuncia os falecimentos. Para ter o nome divulgado, basta procurar a secretaria da paróquia.

 

Meio de comunicação

E foi caminhando na rua Borges de Medeiros, no final de novembro de 2009, que pude perceber publicamente o que havia presenciado em um ambiente fechado no final do ano anterior. Depois da tradicional música, muita gente parou até de caminhar para escutar o nome do finado. Na sinaleira da Borges com a Dr. Montaury o sinal estava verde, mas os carros estavam parados no sentido Praça-Fórum. Na sacada de um prédio, duas mulheres surgiram para prestar atenção no que frei Darci iria dizer. Afinal, todos queriam saber o que tinha acontecido na Terra do Galo.

Conversando com algumas pessoas nos arredores da Matriz conheci o Eloi Triaca. Ele é coordenador do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi. Natural de Flores da Cunha, mora no Centro e, adivinhem, para tudo quando O Silêncio ecoa do topo da torre. “Sempre presto atenção para saber se é um amigo ou conhecido. Se é, aviso a família. Da minha casa também é possível escutar os anúncios. Lá em casa todos acompanham”, confidencia Triaca. Ou seja, realmente, esse é um hábito florense.

De acordo com Vazzata, o avanço da construção civil na área central estaria impedindo a propagação do som para algumas áreas. “Os prédios mais altos impedem a passagem do som. Mas tudo depende também do vento. Sei que pessoas que moram na saída para Nova Pádua escutam, mas não aqui pertinho, a três ou quatro quadras da igreja”, constata o religioso.

A música

O Silêncio foi escolhida porque é considerada uma música bonita. Não se sabe quando foi instituída, mas tem uma história emocionante sobre sua composição. De concreto, conforme levantamento feito por integrantes da Orquestra Júlio de Castro, da cidade de Tupã, no interior de São Paulo, sabe-se que tudo começou em 1862, durante a Guerra Civil Americana, ou Guerra da Secessão (separação), iniciada um ano antes. O duelo foi travado entre dois exércitos: o da União (norte), que se sagrou vencedor em 1865 e fora comandado por Abraham Lincoln, e o Confederado (sul). Um capitão unionista estava no Estado da Virgínia quando, em uma determinada noite, ouviu gemidos de um homem caído, ferido no campo de batalha. Sem saber se o soldado era aliado ou adversário, ele arriscou a vida e rastejou até o homem, arrastando-o até sua trincheira. Ao chegar, constatou que o mesmo estava morto, e era Confederado.

Como estava muito escuro, o capitão providenciou uma luz para ver o rosto do soldado. Para sua surpresa e decepção, era o seu filho o militar morto. O jovem estudava música no sul quando a guerra começou. Sem falar com o pai, alistou-se no Exército Confederado. No dia seguinte o capitão pediu permissão para dar um funeral com honras militares ao filho, apesar de ser considerado inimigo. Seus superiores, em vez de liberarem integrantes da banda militar, permitiram que apenas um músico tocasse no enterro. O capitão escolheu um corneteiro e pediu a ele para tocar uma série de notas musicais que havia encontrado em um pedaço de papel rabiscado no bolso do uniforme do filho. Nasceu aí a triste melodia executada em alguns funerais militares nos Estados Unidos e que também anuncia falecimentos no campanário de Flores da Cunha.

Na rotina da cidade

Não só o som dos sinos faz parte da vida dos moradores de Flores da Cunha, mas também a música O Silêncio. E não só dos florenses, mas também de quem passa a acompanhar a rotina diária do município, como é o meu caso. Já me acostumei. Com hora marcada, os sinos badalam nas horas cheias (proporcionalmente ao número; por exemplo, às 11h ele toca 11 vezes) e a cada meia hora. “Durante a semana, toca ainda 20 minutos antes das missas das 18h e, aos domingos, antes da cerimônia das 9h”, observa o pároco. Ainda sobre a parte histórica, a torre... Espere aí. Shshshshshs. O campanário está tocando O Silêncio...

 

A história da torre

Para contextualizar o assunto hiper-local, também fui atrás de informações sobre a história do campanário. O início da construção da torre aconteceu no dia 6 de outubro de 1946 e a bênção da pedra fundamental, em 9 de maio de 1947, feita pelo vigário frei Eugênio Brugalli. A obra fora concluída em 30 de outubro de 1949. Com 55 metros de altura, a construção tem 11.122 pedras de basalto, as quais foram transportadas de caminhão e elevadas com roldanas. Naquela época, era possível avistar toda a cidade. E foi do topo que o bispo dom José Barea, em 1950, disse que a cidade tinha um “majestoso campanário, todo em pedra, obra das mais monumentais e perfeitas do gênero”.

Junto à pedra fundamental foi colocada uma urna com os nomes dos religiosos e dos florenses envolvidos no trabalho. O imigrante italiano Giovanni Debastiani (conhecido por Nanni Fermo) foi o construtor-chefe, liderando a equipe que tinha Benjamim e Fausto Vezzaro, José Marin e Umberto Menegat, todos de Nova Pádua, bem como a ajuda dos moradores de várias capelas. Debastiani era agricultor, mas participou de diversas obras, entre elas, as igrejas dos travessões Bonito, Leonel, Mützel, Paredes, Cerro Largo e Accioli, em Nova Pádua; e as capelas dos travessões Carvalho e Alfredo Chaves, em Flores da Cunha. As pedras de basalto do campanário foram cortadas pelos irmãos Luiz e Antonio Coloda – elas vinham da comunidade de Santa Líbera. O projetista foi Vitorio Zani.

Internamente, no alto do campanário, estão cinco sinos, que foram fundidos em Sabóia, na França. Todos têm nomes: o maior, em Mi bemol, Pierina, pesa 1.200 quilos e foi consagrado em honra a São Pedro; o segundo, em Sol, denominado Cláudia, pesa 600 quilos, em homenagem ao bispo dom Cláudio Ponce de Leão; o terceiro, em Si bemol, Dom Finotti, pesa 350 quilos e homenageia o pároco que os encomendou; o quarto, em Mi bemol, Antonieta, pesa 150 quilos e foi consagrado em honra a Santo Antônio de Lisboa; e o menor, em Sol, Immacolata, tem 80 quilos e honra a Imaculada Conceição. Para finalizar, os quatro relógios, com mostradores de três metros de diâmetro cada, foram fabricados na cidade de Estrela, em 1948, pela empresa Schuerther e Filhos.

 

Reportagem originalmente publicada na edição de setembro de 2010.

Eloi Triaca, que trabalha no Museu, sempre para o que está fazendo quando a música ‘O Silêncio’ ecoa da torre. - Arquivo O Florense
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