Joias produzidas por mãos delicadas
O artesanato é uma das heranças dos imigrantes italianos que fez parte do dia a dia, seja como decoração ou necessidade
A imigração italiana é recheada de patrimônios culturais que, diante do contexto histórico que os envolve, têm uma importância imensa. Uma dessas heranças que sobrevivem ao tempo é o artesanato. Seja ele nas suas mais diversas formas desde a palha com a dressa até as linhas como o crochê, macramé, frivoletê, filé e tricô, e muitos outros ofícios que cativam e conseguem enriquecer até mesmo o mais simples dos panos de pia. Nesta edição o Jornal O Florense dá sequência à série especial que homenageia os 140 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, iniciada em maio e que neste mês traz o artesanato como característica valiosa das bravas, mas também delicadas, mulheres imigrantes.
O livro Nossa História: De Nova Trento a Flores da Cunha conta que aprender a cortejar, cuidar e preservar os resultados da herança cultural deixada por gerações passadas é imprescindível. É esse patrimônio cultural que retém as origens da cultura de um povo, mostrando que o passado reflete nas características da comunidade de hoje.
“Preservando o nosso patrimônio, consequentemente se resguarda a história, a tradição e as características que denominam a riqueza cultural existente em Flores da Cunha.”
O artesanato faz parte de nosso patrimônio imaterial, assim como os saberes, as celebrações, as formas de expressão e o talian. Foi por meio do artesanato que as bravas mulheres imigrantes, apesar das dificuldades e das adversidades da nova casa, nunca perderam a delicadeza e habilidade das mãos.
Ofício nasceu da carestia
De acordo com o livro Imigração Italiana: Estudos, com pesquisa de Cleodes Piazza, Julio Ribeiro e Maria Elena Piazza Toniazzo, o artesanato na região da colonização italiana concebe uma série de questões que vão desde conceitos sobre o valor do trabalho artesanal, compensação material, necessidade, técnicas, motivos, até a distribuição do tempo entre trabalho e lazer. Além disso, a atividade manual se realizava discriminatoriamente, ou seja, algumas delas podiam ser feitas somente por mulheres.
O artesanato feminino na sua origem tem questões ligadas principalmente ao fator econômico. “A transformação de um saco de sal em uma cortina rendilhada não resultava apenas de uma habilidade, mas, sobretudo de uma necessidade. As delicadas rendas que adornavam os lençóis e fronhas eram tecidas com linhas de costura, não por orgulho de artesania, mas por razões econômicas. A transformação de um saco de açúcar em uma elaborada toalha de rosto não era resultado de um tempo de lazer, mas antes da carência financeira.” Não é necessário falar das dificuldades econômicas da maioria dos imigrantes dedicados a uma agricultura de subsistência e condicionados ao resultado de uma safra nem sempre farta.
Mesmo que os gastos com alimentação fossem reduzidos sensivelmente com a produção doméstica, era necessário um regime de contenção do supérfluo. Em função disso, o artesanato doméstico executado pelas mulheres tinha o objetivo de auxiliar no orçamento familiar. Às mulheres cabia, então, a confecção do vestuário, da cama e mesa, de adornos nas peças mais importantes de uso pessoal e de uso doméstico, que substituíam as rendas e bordados importados, privilégio da uma minoria.
Nesta estrutura familiar, também era de dever da mulher o trabalho doméstico propriamente dito, preparo do café e almoço, ordenha, cuidados com a roupa e a casa e o auxílio na roça. Por isso, o artesanato era feito à noite, nos dias de chuva e nos domingos e dias santos. Os trabalhos manuais contavam com crochê, bordado, atar nós em franjas de toalhas – macramê, tecer a rede de filó, preparar o fio de linho na molinela ou trançar a palha de trigo para fazer a fabricação de chapéus e cestos ou a sporta.
Artesanato que perpetuou por gerações
É na Associação dos Artesãos de Flores da Cunha que o rico ofício guardado pelas imigrantes italianas ainda reina absoluto. O grupo de artesãos começou a unir suas linhas em 1990, após uma necessidade oriunda na 7ª Festa Nacional da Vindima (Fenavindima). Era necessário um grupo para expor os produtos artesanais do município no evento e, o titular da Secretaria de Turismo da época, Carlos Raimundo Paviani, fez o convite por meio da florense Neusa Cavagnoli. Instituída em 1993, a Associação encanta visitantes com seus valiosos trabalhos disponíveis para venda no Espaço Arte e Artesanato, localizado na Avenida 25 de Julho, ao lado do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi.
O objetivo da entidade não foi alterado desde a criação: preservar os ofícios desenvolvidos pelos antepassados imigrantes e proporcionar uma forma de renda para os artesãos. “Sempre contribuímos com Flores da Cunha mostrando que protegemos trabalhos como a dressa, o crochê, o filé, o macramê, os bordados, que são heranças dos nossos imigrantes, mas também buscamos novos materiais e novas técnicas para um artesanato hoje muito variado e fonte de uma renda complementar”, explica a secretária da Associação, Clarici Scalcon Bolzan, 47 anos, que no currículo tem uma lista de técnicas que pratica, a maioria fruto do aprendizado com a mãe. “Quando era pequena uma vizinha fazia a palha no entorno dos garrafões. Ficava encantada vendo ela com aquelas mãos trançando a palha, assim como as cestas para colher uvas, feitas de vime”, recorda.
Assim como Clarici, Amélia Giachelin Rizzotto, 71 anos, e Realda Guaresi Mascarello, 55 anos, têm boas lembranças de infância ligadas ao artesanato. Sendo uma das fundadoras da Associação, Amélia lembra bem quando estava aprendendo a fazer o crochê e o filé, onde a única luz era a do lampião aceso por querosene. “Era mais difícil aprender naquelas condições, mas todas as meninas sabiam fazer”, conta. A especialidade de Amélia é o crochê feito com a linha número 60, bem fininha, a qual dá a ela o título de uma das poucas florenses adeptas ao trabalho extremamente delicado e demorado. As linhas são variadas conforme o trabalho. Cada uma possui características diferentes, algumas mais demoradas, outras mais cansativas, mas todas encantadoras.
Para Realda, atual presidente da Associação, a dressa foi o primeiro material que em suas mãos se transformou em arte. “Aprendi a fazer a trança de palha muito pequena. Lembro que sentava na cadeira e precisava colocar algo debaixo do bumbum para alcançar as mãos na mesa”, conta Realda, que hoje atende ao público que visita o Espaço Arte e Artesanato. “Uma vez era muito difícil encontrar roupas e artefatos prontos, por isso era uma necessidade saber fazer. Os chapéus eram usados para a proteção do sol e da chuva, e as sportas eram usadas para levar a comida para a colônia”, relembra.
É graças ao trabalho de Clarici, Amélia e Realda, somado ao dos 23 artesãs associadas da entidade, que o artesanato sobrevive com vigor em Flores da Cunha. O trio deixa um desafio aos florenses: que tal colocar pelo menos uma peça de artesanato em casa? Um filé na cômoda do quarto, uma toalha com macramê na cozinha, a lista pode ser comprida. “As casas de hoje são ambientes lindos, mas não têm cara de lar. Sentimos falta de ver o artesanato na casa das pessoas. É uma maneira de recordarmos como eram as casas de nossas nonnas”, opina Realda.
- Reportagem originalmente publicada na edição impressa do Jornal O Florense de 25 de junho de 2015.
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