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Esqueceu onde está? Reza o ‘siqueris’!

Conhecida também como Responsório de Santo Antônio, oração é íntima da cultura italiana e muito praticada também em Flores da Cunha, onde a fé que motivou os imigrantes que aqui chegaram, protagoniza hoje uma das mais autênticas tradições religiosas

“Perdeu o quê? Pede para rezar o siqueris que vai aparecer!”. Quem nunca ouviu uma frase como essa ou até mesmo semelhante? Uma das orações mais conhecidas entre os imigrantes italianos e seus descendentes é a récita do siqueris, feita a Santo Antônio para encontrar objetos perdidos. Em Flores da Cunha, assim como municípios da região enraizados na cultura italiana, o siqueris, ou Responsório de Santo Antônio, compõe o cotidiano dos moradores. Seja nas comunidades no interior ou na cidade, quando um objeto importante se perde as preces para Santo Antônio são entoadas por aqueles que receberam o dom, alguns da mãe, da nonna, madrinha ou mesmo quem aprendeu sozinho, por meio de um livro de orações repassado em família.

Embora hoje menos popular, o siqueris, do latino si quaeris miracula, ou se procuras milagres, é uma antiga tradição passada de geração para geração, marcando uma autêntica e forte fé, grande responsável pela obstinação dos imigrantes que aqui transformaram as dificuldades em oportunidades. Nos tempos antigos da colonização, a luta pela sobrevivência era diária. Sem o mínimo de conforto, as famílias superavam as dificuldades unidas e fortalecidas pelo trabalho e a religiosidade. Os imigrantes italianos eram, em quase absoluta totalidade, católicos.

Eles partiram da Itália temerosos a Deus e, ao chegarem ao paese della cuccagna (país da abundância), depararam-se com o isolamento geográfico e cultural, mata e animais selvagens. Para a historiadora, escritora e professora florense Gissely Lovatto Vailatti, este talvez tenha sido um dos motivadores mais contundentes de tanta espiritualidade. Em meio ao desespero, só havia uma saída: trabalhar e rezar. Ao chegarem à América, uma das primeiras construções dos imigrantes eram pequenos oratórios, onde depositavam as imagens de seus santos de devoção trazidas nas malas e também as dificuldades que cercavam de todas as formas os colonizadores. “Era necessário ter esperança, acreditar em Deus, reconstruir a vida no ‘novo mundo’. Passavam o dia trabalhando e rezando, continuamente”, conta Gissely.

A historiadora acrescenta em seu livro 125 Anos de Colonização do Travessão Alfredo Chaves que os imigrantes e seus descentes rezavam – e rezam até hoje – por necessidade e conforto da alma. “A oração estava incorporada a vida desde os tempos mais remotos. Rezava-se para tudo: para pedir, agradecer, abençoar, proteger, benzer e perdoar. Pelos mortos, pelos vivos, pela chuva, pelo papa. Rezava-se o tempo todo. Ao levantar, ao fazer as refeições, ao deitar.”

As orações, simpatias e superstições eram relembradas, por exemplo, contra as intempéries, como queimar folhas de oliveira bentas ou benzer o sino da capela em honra a Santa Bárbara, protetora contra intempéries. O sino era tocado quando algum temporal se aproximava. Entre essas tradições populares cristãs, o siqueris foi uma das tantas orações cultuadas pelos imigrantes e seus descendentes, uma das únicas que ‘sobreviveu’ até os tempos atuais, sendo sempre relembrada e entoada.

 

“Se milagres desejais, recorrei a Santo António”

Este é um dos trechos do siqueris, entoado de cabeça pela memória invejável de dona Tarcila Dal Bosco Gazzi, 90 anos, moradora do Travessão Alfredo Chaves, interior de Flores da Cunha. Ela recebeu, aos 10 anos de idade, da madrinha e professora, um pequeno livro de orações. Nele estava o siqueris da qual aprendeu e nunca mais esqueceu. “As pessoas ligam pedindo para rezar o siqueris e sempre encontram. O mais importante: é preciso ter fé, apenas pedir para rezar não basta, a pessoa precisa acreditar também”, conta Tarcila, que, sem querer, acabou incentivando a filha Leonirde Bernardete Gazzi Vailatti, 53 anos, a saber a oração. “Lembro que nos meus 15 anos a mãe recebia muitos pedidos para que o Responsório fosse rezado. Um dia pedi como era, ela me mostrou a oração, aprendi e decorei. As pessoas pedem pelo siqueris e depois nos agradecem por ter encontrado o objeto perdido, respondemos para agradecer a Santo Antônio”, sorri Leonirde.

Há alguns meses dona Tarcila perdeu um terço, presente de amigas da comunidade da qual tinha muito apreço. Logo recorreu ao siqueris para encontrar o objeto. Algumas semanas se passaram e, um dia vestindo-se para ir à missa, colocou a mão no bolso e ali estava o terço. “Eu não estava com aquela roupa o dia em que perdi ele, muitas coisas parecem não ter explicação, mas Santo Antônio é quem nos traz as coisas”, sustenta dona Tarcila. Além do siqueris, a florense é conhecida pela devoção à Santíssima Trindade. Basta procurá-la e ela ora para que desapareçam verrugas, calos e até manchas na pele.

 

Reza remonta à Idade Média

O professor e escritor José Clemente Pozenato, bacharel em Filosofia com pós-graduação em Literatura Brasileira e mestrado em Educação, explica que o siqueris existe desde a Idade Média. A história conta que menos de um ano após sua morte (no ano 1231), Santo Antônio foi canonizado. Dois anos depois um frei alemão, seu colega e amigo, escreveu o conhecido Responsório em homenagem ao santo. Primeiramente o siqueris era uma oração da busca por milagres, contra perigos, contra o mar e, também, para encontrar coisas perdidas. “O que acabou ficando na memória popular foi de que ele ajudava a encontrar coisas perdidas. Isso foi transmitido de geração para geração, inicialmente cantado – sempre em latim –, mas o que resistiu ao tempo foram as palavras que hoje se transformaram em oração. Se existe tradição antiga, o siqueris é uma”, determina o escritor, considerado um representante da cultura regional serrana composta pelos descendentes de imigrantes italianos, autor do romance O Quatrilho, escrito em 1985 e transformado em filme em 1994, indicado ao Oscar na categoria de Filme Estrangeiro.

Assim o siqueris se fez poderoso na fé e na devoção de pessoas como Tarcila e Leonirde, que não são as únicas a provarem que o a oração é prova de fé e de persistência. No Travessão Accioli, em Nova Pádua, as agricultoras Gema Branchini Zampieri, 62 anos, e Odila Baggio Zampieri, 70 anos, são solicitadas quase que semanalmente na ajuda para descobrir um objeto perdido. As preces lidas pelos pequenos livros são ditas com a naturalidade que os olhos azuis de dona Odila acompanham palavra por palavra. Aos 11 anos viu o pai procurar por dias a quantia de 50 contos, “muito dinheiro na época”, que foram encontrados como que por milagre. “Daquele dia em diante ganhei uma devoção muito grande por Santo Antônio e pela prece do siqueris. Ganhei um livro com a oração e aprendi. Tão logo as pessoas começaram a me pedir para ajudá-las. E quando rezo, faço com muita fé e acredito muito. Fico arrepidada em pensar como as coisas sempre aparecem. As pessoas acreditam na oração e nos confiam essa função”, valoriza dona Odila. Ela conhece histórias que caracterizam o siqueris, como a tredicina, onde dizem que a oração deve ser recitada 13 vezes sem interrupção e até que, se o objeto passar por água, dificilmente será encontrado.  

A vizinha, dona Gema, aprendeu a oração com a irmã mais velha e desde então nunca mais deixou de orar por Santo Antônio. “Comecei a rezar acreditando que daria certo. Para mim o siqueris é uma devoção muito especial e que é nossa. Tudo o que é pelo bem certamente ajuda as pessoas, principalmente hoje que a religião, infelizmente, está em segundo plano. Rezamos, alcançamos a graça e agradecemos. Sinto-me útil e valorizada”, complementa Gema, que repassou o costume às filhas. As paduenses não conseguem guardar de cabeça quantos conhecidos já ajudaram e quantas vezes tiveram a prova de que o siqueris é uma oração verdadeiramente de milagres. Objetos dos mais variados foram encontrados, de joias até uma mula da família. “Eu tenho muita fé, para mim não existem dúvidas que Deus existe”, valoriza Gema, que é rapidamente complementada por Odila: “E podemos ver por nossas experiências que ele existe”, assegura.

 

Recupera-se o perdido...

De acordo com o professor José Clemente Pozenato, Flores da Cunha herdou a tão presente religiosidade por óbvio dos italianos. Santo Antônio, apesar de ser português, viveu e morreu na Itália. Seus restos mortais são encontrados na cidade de Pádova, Norte da Itália, na Basílica de Santo Antônio. Mas não somente essa região é devota ao franciscano, toda a Itália tem uma devoção muito especial por aquele considerado o santo mais venerado no Oriente e Ocidente. “Essa religiosidade do siqueris que chegou ao Brasil trazida pelos imigrantes é uma tradição dos italianos desde a Idade Média. Muitas orações eram aprendidas em latim, o povo era assim orientado em diversas orações como a Ave Maria e o Dies Irae, um canto para os mortos. Mesmo as pessoas não sabendo latim aprendiam a rezar as orações desta maneira”, explica Pozenato.

Prova disso, e que resistiu com o mesmo milagre evocado pelo siqueris, é a professora Fabiana Bolzan Vieira, 36 anos, moradora da comunidade Nossa Senhora do Carmo, em Flores da Cunha. Com a vigorosa influência da avó paterna Júlia Ribolli Bolzan, que faleceu há 20 anos, Fabiana aprendeu a recitar o siqueris em latim. Não há registros escritos, está tudo na cabeça, da mesma maneira que aprendeu aos 15 anos de idade. “Aprendi de tanto ouvir ela rezar. Depois que ela faleceu as pessoas que a conheciam passaram a pedir para mim e é incrível, mas as coisas sempre aparecem. Muitas palavras são estranhas, acredito que esse siqueris que aprendi tenha uma mescla do latim com o italiano, mas foi a versão que sobreviveu nas gerações da minha família vinda da Itália”, garante a florense, que trabalha como professora na Escola Municipal Benjamin Constant. A pronúncia das palavras, o sotaque e a maneira como é rezado torna o siqueris de Fabiana ímpar.

Essa ‘variação’ do latim utilizada no siqueris é uma mudança natural em função da maneira como foi passado adiante, entre membros da família e com interferências de línguas e culturas diferentes. “Sabemos que o siqueris original é em latim. Hoje algumas pessoas rezam da maneira que aprenderam, mas é um latim macarrônico como chamamos, ou seja, que sofreu influências do latim erudito ou clássico, da qual foi escrito”, explica o escritor Pozenato. Fabiana conta que a oração da qual aprendeu evoca o Glória ao Pai e da avó aprendeu muitas histórias em torno do siqueris, como que ele deveria ser rezado por três pessoas e, que em caso de roubo, o dono da ação não sentiria paz até não encontrar uma maneira de devolver o objeto. “Eu peço sempre com muita fé. Como tenho a récita em minha cabeça, me concentro e oro. Faço como via minha nonna fazendo, ela era de uma fé enorme, muito católica e felizmente herdei essas características dela, bagagem esta que muito me honra”, valoriza a florense.

 

... Amém

Muito se discute sobre qual será o futuro de significativas tradições como o siqueris. Ao mesmo tempo em que parece estar sendo deixada para trás, muitos são os exemplos que aumentam a confiança e, por que não, a devoção de palavras evocadas com fé por bocas e corações, como da dona Tarcila e a filha Leonirde, das amigas Odila e Gema e da jovem Fabiana. “Acredito que essa tradição se mantém principalmente em comunidades interioranas, onde se preservam os costumes em conjunto e, também, as tradições familiares onde quase todas as famílias tinham alguém que sabia a oração do siqueris. Muitas vezes fico me perguntando se encontrar coisas perdidas é tão importante a tal ponto de termos lendas e tradições tão consolidadas”, questiona o escritor Pozenato.

A resposta, talvez possa ser mais simples do que imaginamos. Basta olhar para a história grifada de lutas, trabalho e vitórias dos nossos imigrantes italianos. Talvez nem seja necessário rezar o siqueris para encontrá-la. “Foi a fé que moveu nossos imigrantes. Por essa força eles construíram e começaram tudo o que eles fizeram. O siqueris é uma oração muito forte, de uma espiritualidade gigante. As pessoas que sabem rezar possuem um dom, é como uma profissão da qual nos identificamos e desde pequenas vamos talhando o talento, que na verdade é a pura fé”, enaltece a professora Fabiana.

 

Siqueris*

Se milagres desejais

Recorrei a Santo Antônio

Vereis fugir o demônio

E as tentações infernais

Recupera-se o perdido

Rompe-se a dura prisão

E no auge do furacão

Cede o mar embravecido

Todos os males humanos

Se moderam, se retiram

Digam-no aqueles que o viram

E digam-no os paduanos

Pela sua intercessão

Foge a peste, o erro, a morte

O fraco torna-se forte

E torna-se o enfermo são

Ó Deus, nós vos suplicamos, que alegre à Vossa Igreja a solenidade votiva do bem-aventurado Santo Antônio, vosso Confessor e Doutor, para que, fortalecida sempre com os espirituais auxílios, mereça gozar os prazeres eternos. Por Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amém. 

* Existem muitas variações da oração, algumas em italiano ou no próprio dialeto. O siqueris desta reportagem foi repassado por dona Tarcila Dal Bosco Gazzi.

 

Gema Zampieri e Odila Baggio. - Arquivo O Florense
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