‘Svelta, fà agnolini’
Cultura gastronômica trazida e criada pelos imigrantes italianos há 140 anos é resultado da perseverança de uma cozinha rica e com pratos especiais, como a tradicional sopa de agnolini
“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura e ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros.” Nas palavras do escritor Mia Couto se traduz uma das características mais marcantes que, com os imigrantes italianos, atravessou o Oceano Atlântico e hoje é um privilégio: a imponência da cozinha e de tudo o que lá é produzido. Improvável falar da influência italiana no Rio Grande do Sul a partir de 1875 sem citar a comida. Quem não fica com água na boca de pensar nas massas, na polenta com fortaia, naquela sopa de agnolini da nonna? Aliás, o agnolini é praticamente o prato oficial das memórias de infância. Sem criar intrigas e disputas, mas quem já não sentiu falta da sopa de agnolini? Esse é um sentimento quase universal onde o sangue é de origem italiana. Por isso, o jornal O Florense homenageia os 140 anos da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul para abordar o que todos adoram: a comida típica.
Naquela época, eram nos dias mais chuvosos que a nonna se sentava junto à mesa e se colocava a fazer agnolini. E o simples fato de chegar perto já atraia o svelta, fá agnolini (ligeiro, faça agnolini). Que esse prato é familiar e muito apreciado, todos sabemos. Quando acompanhado por um bom caldo – ou brodo, como chamamos na Serra – e queijo ralado, então, a refeição está completa. Por figurar no repertório da gastronomia italiana, o agnolini foi também incluído na alimentação dos imigrantes e seus descendentes no Brasil.
Poucos sabem, mas a sopa que hoje é popular, na origem era consumida apenas uma vez por ano. “A sopa de agnolini é uma sopa ritual, era consumida apenas no dia da Páscoa. A etimologia agnolini vem do latim agnus Dei, o cordeiro de Deus. No italiano, cordeiro passa a se chamar agnello e na sopa de Páscoa a carne de cordeiro se juntava às ervas, especiarias e, no caso dos camponeses, também do queijo”, conta a pesquisadora e professora Cleodes Maria Piazza Ribeiro, que desenvolveu o estudo A Mesa Rústica – A Mesa Farta, publicado em 2005.
Novo sabor no Brasil
Para fazer o agnolini, os camponeses utilizavam cortes menos nobres do cordeiro, isso porque somente famílias ricas podiam comprar as carnes mais saborosas. “Colocavam o que tinham de melhor e formavam pequenas bolinhas. Para que elas não se dissolvessem no cozimento, era espichada uma massa finíssima como um papel, um invólucro com a função de ser o guardião daquele recheio”, complementa Cleodes. O nome agnolini é utilizado para essa especialidade gastronômica pelos moradores da região da Lombardia, na Itália, e pelos vizinhos do Vêneto. A região de Emilia-Romagna chama a mesma iguaria de capelletti. “Mas não fazendo relação ao chapéu de palha, mas sim ao capello do bispo”, complementa a pesquisadora. Isso explica porque no Brasil são usadas as duas denominações, já que moradores dessas três regiões migraram para cá.
Em terras sul-americanas as mulheres italianas se viram obrigadas a utilizar os alimentos disponíveis. As galinhas, criadas posteriormente no pátio de casa, comporão a versão do agnolini dos imigrantes, sendo as mais velhas mais saborosas para o brodo. “Se utiliza a carne da galinha, a moelinha, o fígado e, após, a carne do porco. Vem ainda o queijo e aí sim, mais do que especiarias, se coloca cravo e canela, uma influência dos imigrantes vindos da região do Tirol, pois os vênetos e os lombardos usam uma remotíssima pitada de canela moída”, destaca Cleodes. Sendo assim, o agnolini que hoje provoca água na boca é resultado de múltiplas influências, um novo ambiente, ingredientes e uma recente realidade. “Com o passar do tempo o agnolini vai se socializando no Rio Grande do Sul. Não somente ele, mas existe uma efetiva contribuição da imigração italiana para a diversidade cultural brasileira no campo da culinária”, analisa a pesquisadora.
Isso porque a diversidade gastronômica desses imigrantes foi aderida pela população nativa como, por exemplo, os moradores dos Campos de Cima da Serra e da Fronteira. “Sem abdicar dos pratos, passam a comer as massas, as sopas e assim por diante. A cozinha da imigração dá dignidade ao imigrante na relação com os nativos. Os imigrantes são pobres, derrubam o mato, levam tempo para fazer uma casa mais confortável, mas conseguem, no âmbito deste universo, uma autoridade”, aponta a pesquisadora. Carnes como a do porco do mato e de aves passam a integrar o cardápio desses italianos que possivelmente adaptam a grigliata mista da Itália e criam o menarosto, assando as carnes na brasa. A polenta, até hoje muito apreciada, era popular no país de origem e um prato de resistência.
Agnolini, o triunfo das festas coloniais
Os olhos não desviam a atenção do pequeno retalho de massa na mão esquerda e da bolinha de recheio na mão direita. A agilidade dos dedos deixa o formato perfeito, tirando uma a uma as pontinhas com breves beliscões. “Assim fica mais bonito”, assegura dona Basílica Zuppa Calgaro, 76 anos, famosa no bairro Aparecida, em Flores da Cunha, pelo agnolini saboroso que faz. Da receita que aprendeu com as tias Aurélia e Maximília há mais de 30 anos, dona Basílica adquiriu experiência como cozinheira na igreja da comunidade de Lagoa Bela, onde por anos ela foi uma das colaboradoras.
Mais do que um prato saboroso e cheio de significado, a sopa de agnolini representa uma cultura que se transformou, mas manteve o mesmo sabor. Aquele percebido nas memórias dos imigrantes italianos que aqui se estabeleceram há 14 décadas. A lembrança da casa da nonna é ainda mais abundante nas festas típicas das comunidades do interior, onde a sopa de agnolini participa com destaque, sempre iniciando o cardápio. “Festas de qualquer santo padroeiro precisam ter como abertura, como primeiro e principal prato a sopa de agnolini. É a sopa acompanhada do cren (raiz forte), da carne lessa e do pien. O desvelo das festas coloniais é disputado até hoje exatamente no âmbito da sopa de agnolini. Sem dúvidas o agnolini é o grande triunfo das festas de colônia, que celebram essa herança com os pratos de massa, da galinha ao molho, da polenta, enfim. A sopa de agnolini é uma sopa especial e que cada família preserva o seu modo de fazer”, valoriza a pesquisadora e professora Cleodes Maria Piazza Ribeiro.
Além do agnolini, dona Basílica prepara macarrão, bigoli, spaghetti, nhoque de moranga e tortéi, entre outras delícias que integram o cardápio da região graças aos colonizadores vindos do norte da Itália. “Quando fui cozinheira na comunidade aprendi a fazer muitas outras receitas, segui com o modo de fazer das minhas tias, mas na comunidade ganhei experiência. Eu adoro fazer agnolini, é um passatempo e gosto de ter as massas para trabalhar”, garante dona Basílica.
Se você está se perguntando qual a receita do agnolini, dona Basílica não se importa em revelar alguns dos segredos. “Compro carne de gado e peito de frango, cozinho as duas e depois passo na máquina de moer carne, adicionando noz moscada e queijo. Só isso”, sorri Basílica.
Para a massa um ingrediente é muito importante, o ovo deve galinhas caipiras, aquelas criadas na colônia. “Se não for esse a massa fica branca, feia. Eu não faço”, menciona. “A comida tem uma importância: sempre reúne toda a família. Anos atrás vínhamos todos aqui na casa da mãe, mas hoje, para não dar tanto trabalho, ela é que vem na nossa casa. A família está sempre reunida para uma boa refeição”, valoriza a filha caçula de Basílica, Alice Calgaro Coloda.
‘Mangia che te fà bene’
Quando as primeiras famílias de italianos partiram da Itália deixando para trás a pátria mãe, muitos não tinham trabalho e, sobretudo, não tinham comida. A pobreza era tão grande que uma longa viagem de navio para um destino desconhecido e distante de casa parecia menos castigante do que permanecer naquela situação. Quando desembarcaram na América, as facilidades anunciadas não passavam de propaganda enganosa, porém, encontraram uma ampla oferta de animais e ingredientes para uma reinventada alimentação. “Os imigrantes chegam e vão adaptando as receitas italianas com o que tem aqui, criando e passando isso de geração para geração. Não é nenhuma corruptela das receitas italianas, muito pelo contrário, são formas maravilhosas e criativas que as mamas e nonnas encontraram e que não tem nada a ver com aquela da Itália, mas que têm essa origem como inspiração. A construção do gosto é totalmente cultural”, explica a antropóloga Maria Eunice Maciel, no documentário Sabores de Armelinda, que integra as produções da Vindima da Imagem de Flores da Cunha.
Para a professora e historiadora florense Gissely Lovatto Vailatti, a gastronomia dos italianos no Rio Grande do Sul nasce a partir do que está disponível nas novas colônias, os alimentos em abundância e também aqueles que eles passaram a produzir. “A culinária vai assim se criando, se transformando e se misturando. O que eles fizeram aqui nunca será a mesma coisa da Itália; aqui existiam outros ingredientes. Eles transformavam tudo o que dava para comer e também aproveitavam tudo, o desperdício era quase zero”, conta Gissely, que complementa: “É uma culinária fantástica, é dos imigrantes, mas riquíssima”. Os pratos representativos da qual a região oferece hoje como culinária italiana são, na verdade, uma pequena amostra da diversidade gastronômica da Itália.
No país europeu cada região produz conforme suas características e ingredientes, traço que vem desde a época em que o país era dividido em feudos, quando as famílias nobres desenvolviam a sua cultura gastronômica. “Hoje a gastronomia italiana é uma das mais apreciadas, a melhor do mundo. Tem uma variedade que não se encontra em nenhuma outra cultura”, valoriza Giuseppe Giudizi, 58 anos, italiano que há sete anos vive em Caxias do Sul. Há dois anos ele abriu o aconchegante restaurante Il Refugio del Gourmet, com comidas típicas da Itália e ingredientes que importa do país. O gosto pela culinária é antiga, a gastronomia está no DNA da família Giudizi. “Em 1875 meu bisavô Giuseppe foi encarregado pela então prefeitura de Tarquinia, cidadezinha próxima a Roma onde minha família vive, a organizar e preparar as refeições para o general Giuseppe Garibaldi e sua comitiva que vinha visitar a cidade. Meu bisavô fez um banquete e serviu o general”, conta, orgulhoso, Giudizi, que estampou na capa de seu livro de receitas, publicado em 2009, a nota das despesas que o bisavô apresentou para a prefeitura no final dos festejos.
Uma cozinha italiana distinta
Um apaixonado por gastronomia e por transformar ingredientes em pratos saborosos, Giuseppe Giudizi é um autodidata da história da culinária italiana. Ele explica que, assim como no Brasil, a comida na Itália varia muito conforme a região. As cidades do Norte levam a cultura da manteiga e do gado, já o Centro e Sul têm a ovelha, o leite de ovelha e o óleo de oliva como perfil. “Por isso na região não temos óleo de oliva, porque os imigrantes que chegaram vinham do Norte. Temos em compensação os embutidos defumados, que é uma cultura bem restrita de uma pequena parte da Itália”, explica.
Para Giudizi, que aprendeu a cozinhar desde pequeno com o avô Pietro, a gastronomia da Serra Gaúcha corresponde a uma cultura dos imigrantes italianos, deixando boa parte da gastronomia italiana de fora. “Os imigrantes foram embora da Itália por uma razão: não tinham comida nem sustento. A maioria era de pessoas que procuravam uma vida melhor, muitos comeram a massa pela primeira vez fora da Itália. Mesmo porque nos anos em que foram embora a gastronomia não tinha essa popularidade que tem hoje”, destaca Giudizi. “Por isso a comida aqui é pouco representativa da existente na Itália”, complementa.
E se hoje a comida italiana e, sim, a culinária criada pelos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, está entre as mais apreciadas do mundo, a razão é a mesma: a diversidade e o sabor. “A gastronomia italiana tem uma grande variedade e no final das contas os italianos são artistas nisso. Não deixamos a comida na mão da indústria e aqui no Brasil percebo que as pessoas adoram essa culinária que não veio com os imigrantes. Estão descobrindo que a comida italiana tem outros gostos e temperos que não existem aqui”, valoriza. “Todo mundo gosta e isso porque preservamos esse elenco de pratos como nhoque, tortéi, polenta, agnolini, pratos saborosíssimos e importantes que no resto do Brasil se pratica somente em cozinhas especializadas. Aqui temos em casa e comemos sempre”, complementa a professora Cleodes Piazza. O restaurante de Giudizi, Il Rifugio del Gourmet, fica em São Luiz da 9ª Légua, no roteiro turístico Caminhos da Colônia (que percorre Caxias do Sul e Flores da Cunha). O cardápio é atualizado na fanpage facebook.com/rifugiogourmet.
Matéria originalmente publicada no Jornal O Florense de maio de 2015.
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