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Para parar, basta querer

O consumo do crack avança pelo Brasil e multiplica diariamente os relatos de sua gravidade, tanto em capitais quanto em cidades do interior.

O consumo do crack avança pelo Brasil e multiplica diariamente os relatos de sua gravidade, tanto em capitais quanto em cidades do interior. Especialistas de todo o país e a Secretaria Estadual da Saúde apontam para uma possível epidemia deste subproduto da cocaína, que provoca dependência agressiva, exclusão social do usuário e desagregação familiar, além de estimular a criminalidade. No Rio Grande do Sul, a estimativa é de que 55 mil pessoas sejam dependentes da droga.

Em Flores da Cunha o retrato não é diferente. Apesar de não existirem números sobre a estimativa de viciados em crack no município, a Polícia Civil e a Brigada Militar (BM) sabem que o tráfico e o consumo também avançam, principalmente entre os jovens, independente de cor, credo ou classe social. O Florense conversou com um jovem florense e relata, nesta reportagem, como ele chegou ao fundo do poço e, há mais de três meses, garante estar ‘limpo’, ou seja, sem consumir qualquer tipo de droga, bebidas alcoólicas ou cigarros.

O início de tudo
Abandonado pelos pais em um hospital de Caxias do Sul logo após nascer, Luiz (nome fictício; a identidade foi preservada pelo O Florense), hoje com 27 anos, foi adotado por uma família de Flores da Cunha. Teve uma infância considerada normal, recebeu carinho e atenção dentro de casa. “Tive tudo o que precisei. Mas eu errei”, lembra. Luiz passou por um tortuoso caminho, o qual durou 15 anos, até decidir mudar de vida. Conheceu o cigarro e as bebidas alcoólicas aos 12 anos, considerados por ele como “a porta de entrada” para conhecer as drogas e começar a praticar crimes. “Meu pai trabalhava numa cantina, e eu via as pessoas bebendo. Resolvi experimentar também. Não o culpo por isso; eu tive a decisão de provar. Depois veio o cigarro. Eu não sabia, mas estava iniciando um ciclo no qual quase perdi minha vida. Hoje agradeço a Deus ter conseguido parar. Eu quis”, relata Luiz, orgulhoso.

O jovem conta que no mesmo período começou a sofrer com o preconceito por ser negro. “Talvez isso tenha me influenciado. Não sei. Colegas de escola e vizinhos mexiam muito comigo. Acho que isso me afastou de casa. Daí conheci uns amigos que me apresentaram a maconha. Foi quando começou toda a desgraça da minha vida”, lamenta o rapaz, pais de três filhos, sendo um enteado. Com a mesma idade (12 anos), mudou radicalmente as atitudes em casa. Agredia os pais, pedia dinheiro para comprar bebidas e maconha. Na carona, conheceu a cola e o loló. Aos 14 anos, Luiz foi apresentado à cocaína. “O acesso é muito fácil. Meus pais davam uma mesada, mas nunca era suficiente. Comecei a cheirar coca diariamente e a andar com pessoas mais velhas e perigosas. Foi quando comecei a roubar coisas”, diz, com o olhar cabisbaixo.

A vez do crack

Dois anos depois, Luiz teve acesso ao crack. Sempre indicado por ‘amigos’. O ano era 1997. Como os efeitos do crack (droga derivada da pasta base cocaína) são muito rápidos, sentidos em até 15 segundos e com duração máxima de um minuto, o jovem sentia a necessidade de fumar novamente. Como não tinha dinheiro suficiente, passou a trocar tudo o que encontrava dentro de casa pela droga. “Drogados sempre encontram um lugar para trocar o que tiver por dinheiro ou por drogas, infelizmente. Da casa dos meus pais, onde moro hoje, levei cerca de oito chuveiros”, relata Luiz, lembrando, entre outros itens, ter trocado um televisor, um rádio, comida e até produtos de limpeza.

Luiz praticava pequenos furtos, principalmente à noite. Nessa época dificilmente dormia em casa. Chegou a ser internado em clínicas em quatro oportunidades, mas a vontade de voltar a fumar pedras de crack era mais forte. Aos 16 anos, arrombou o Fórum de Flores de Cunha em busca de armas e foi preso. Repetiu o delito dois anos depois e foi para a Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics) e para o Presído Central, em Porto Alegre. Antes disso, passou pelo Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) em Caxias, antiga Febem. “Um presídio é a verdadeira escola para o crime. Lá dentro o consumo de drogas é livre. Saí do mesmo jeito que entrei. Parei por um tempo, mas voltei a roubar”, resume, hoje arrependido.

A conscientização
Um amigo, frequentador da Igreja do Evangelho Quadrangular que conseguiu parar de consumir drogas, foi quem começou a conversar com Luiz. Em 2002, o jovem drogado foi convidado a parar, mas nunca ouviu as recomendações. “Cheguei a ir à igreja, mas me desviei novamente. Fui preso outras vezes, apanhei muito de policiais. Tudo de ruim aconteceu. Foi quando algumas pessoas quase me mataram. Escapei de tiros de revólver e tudo. O diabo queria me levar. Foi quando percebi que aquela não era a vida que queria levar. Não era o exemplo que queria dar aos meus filhos.”

Ao ser convidado para participar de um retiro de três dias (leia mais ao lado), trabalho desenvolvido pela Igreja do Evangelho Quadrangular, Luiz decidiu parar. Mas não foi ao encontro. Em fevereiro de 2009, sem alternativa, foi ao templo. E participou do retiro. “Saí numa sexta-feira e retornei no domingo. Naquela noite (domingo), depois de jogar tudo fora (cachimbo para fumar crack, drogas e cigarros), bateram na porta da minha casa. Eram ‘amigos’ me convidando para usar drogas. Fiz uma oração e disse não. Hoje estou aqui te contando tudo isso porque Deus quis, Deus me ajudou. Se eu tivesse aberto a porta, eu estaria aqui?”, questiona o jovem, segurando a Bíblia.

A história de Luiz é conhecida por muitas pessoas em Flores da Cunha, principalmente pelos fatos negativos. Mas agora ele quer uma chance de mostrar que mudou. Quer trabalhar com carteira assinada – atualmente faz bicos –, está sem usar drogas há mais de três meses e garante “sentir-se bem”. “Minha mulher, de 25 anos, era usuária de drogas e também está limpa. Ela e nossos filhos moram com meus sogros. Meu plano é sustentar minha família, com o trabalho das minhas mãos. Acho que mereço uma chance.” Antes de encerrar a entrevista, Luiz, acompanhado do amigo que o encaminhou ao retiro e não desistiu de lhe ajudar, citou um Provérbio (22, 6): “Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele.”

Ficha técnica do crack
– Nome: a origem do nome crack tem duas versões: uma delas diz que o nome vem do barulho que a pasta de cocaína faz quando é aquecida – geralmente em panelas simples – com bicarbonato de sódio e água. A pasta resseca e estoura formando pequenas pedras. A outra é parecida, mas diz que são os cristais (as pedras) que fazem o barulho quando o usuário está fumando.

– Origem: crack, cocaína em pó e merla têm origem na pasta base feita a partir das folhas de coca. A diferença é que a cocaína em pó necessita de um refino mais elaborado para apurar a substância e deixá-la pura. O crack e a merla são feitos da borra desta pasta base, geralmente com o que sobra do refino da cocaína, e são mais impuros.

– Como é consumido: as pedras são aquecidas e geralmente são fumadas em cachimbos, cigarros e até mesmo em latas de alumínio. Para garantir melhor aproveitamento da fumaça, os usuários procuram tampar a boca do cachimbo com plástico. Também é comum utilizar palha de aço no cachimbo para conseguir a brasa. Algumas vezes, as pedras são misturadas ao tabaco ou à maconha.
– Efeitos: euforia, bem-estar, aumento da pressão arterial. Sob efeito do crack é comum que o usuário tenha alucinações e fique paranóico, com ilusões de perseguição.

Efeitos físicos a longo prazo: esgotamento físico e mental provocado pelos vários dias sem dormir ou comer. Pesquisa aponta a perda do apetite sexual em 72% das mulheres e 66% dos homens. A droga também provoca a degeneração dos músculos do corpo, efeito também causado pelo uso continuado de cocaína em pó.

Fontes: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) e Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid) da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad).

Pastor trouxe projeto para Flores da Cunha

O pastor Katalin Sales, 33 anos, da Igreja do Evangelho Quadrangular, soube, há um ano, de um projeto o qual está ajudando a recuperar viciados em Rio Branco, capital do Acre. Natural daquela cidade, e residindo há seis anos em Flores da Cunha, o pastor conta que o principal objetivo é despertar a fé na pessoa. “O projeto não tem cunho religioso. Mostramos a eles que há um Deus determinado, que muda a vida. Trata-se do relacionamento do homem com Deus”, explica.
O retiro de três dias, o qual reúne grupos divididos por sexo, ocorre em uma fazenda no interior de um município vizinho (a identidade é preservada a pedido do pastor). Em média, são formados grupos de 20 pessoas a cada três meses. “Num final de semana reunimos os homens e, no outro, as mulheres. O primeiro passo é querer. No encontro eles ouvem apenas a verdade, recebem orientações sobre princípios morais e são capacitados a retornar à sociedade. Só quem passou por isso sabe do que estou falando”, resume Sales.

O pastor observa que o segundo passo do projeto consiste no acompanhamento das pessoas, feito por monitores. “Nesse período, os ex-drogados participam de encontros em células, casas de discípulos da igreja. O processo dura, em média, três meses. Foi o que aconteceu com o Luiz. Hoje ele está recuperado, mas a sociedade não acredita. De 15 drogados que levamos para o retiro, apenas dois recaíram”, aponta o pastor, lembrando que exemplos como os de Luiz precisam de crédito.

Na quarta-feira, dia 27, Sales usou a Tribuna Livre da Câmara de Vereadores florense (espaço aberto a qualquer pessoa da comunidade) para explicar seu projeto. Na ocasião, sugeriu a destinação de uma área que, futuramente, sirva para o tratamento de dependentes químicos. “Precisamos nos importar com as pessoas”, defende.

Vereadores preocupados com a disseminação das drogas
Vereadores de Flores da Cunha e de Nova Pádua estão preocupados com o aumento dos casos de pessoas que sucumbem às drogas. No município vizinho, Claudiomiro Tonet (PP), já comentou em uma sessão a possibilidade de ser realizada uma audiência sobre o tema. Em Flores, o vereador José Luis de Souza (PSB), o Zé do Brique, fez uma indicação ao Executivo para ser promovido um seminário antidrogas em todas as escolas municipais.
Para justificar o pedido, o parlamentar florense argumenta que o assédio aos alunos por propagandas, usuários e até traficantes de drogas é constante. “Sabemos que os mais ousados rondam e até entram nos estabelecimentos de ensino para conduzirem os jovens ao vício”, alerta Zé do Brique. Para ele, é na idade escolar – “fase de curiosidade” – em que a criança torna-se presa fácil para os traficantes. De acordo com o projeto, a sugestão é de que o seminário aconteça no início de cada ano letivo, com a participação de professores, médicos da Secretaria de Saúde e representantes da Brigada Militar.

O parlamentar Alexandre Scortegagna (PP) também se mostra envolvido com o tema. Durante um grande expediente, Scortegagna leu um texto de sua autoria pelo qual retrata que as drogas avançam sobre todas as idades e classes sociais. “O crack entra em nossas casas sem repressão eficiente. A família do viciado sofre duplamente: primeiro ao tentar salvá-lo do inferno do mundo das drogas e depois ao tentar administrar as novas relações que se estabelecem”, pondera Scortegagna.

Segundo dados pesquisados pelo vereador, o Brasil é o segundo maior mercado de cocaína das Américas, com cerca de 870 mil usuários – a maioria deles nas regiões Sudeste e Sul. Para ele, palavras como crack, maconha, ecstasy e cocaína não fazem mais parte de apenas um grupo de pessoas. “Hoje vemos crianças com apenas nove anos já dependentes de drogas. E esse cenário pode ser conferido na Serra Gaúcha”, lamenta Scortegagna, que aposta no desenvolvimento de políticas públicas de combate e repressão ao tráfico e de apoio aos dependentes.

Saiba mais
– Estudo recente realizado em Salvador, São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro detectou que a idade média dos usuários de crack (31 anos) é inferior à dos demais pacientes em tratamento (42 anos). Entre os dependentes desta droga, 52% são desempregados.
– No Rio Grande do Sul, foi criado o Comitê Estadual de Luta Contra o Crack. Um dos trabalhos é buscar junto aos órgãos competentes indicadores e dados sobre a droga no Estado.
– Há pesquisas que garantem que as drogas estão associadas a 70% dos homicídios. Ela é também a motivadora de roubos, agressões e de prostituição.
– O deputado Alberto Oliveira (PMDB) protocolou na Assembleia projeto de lei destinando 5% do tempo e espaço contratados para as campanhas publicitárias dos órgãos dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo e do Ministério Público (MP) para campanhas de combate às drogas ilícitas, ao alcoolismo e ao tabagismo.

Onde procurar ajuda
Em Flores da Cunha
– Secretaria Municipal de Saúde, Assistência Social, Habitação e Trabalho: há o Setor Social que dá suporte para quem procura ajuda no Centro de Saúde Irmã Benedita Zorzi. De acordo com o secretário Moacir Matana, dependendo dos casos, ocorre o encaminhamento para o Hospital Nossa Senhora de Fátima, o qual disponibiliza quatro leitos para desintoxicação e apoio clínico. Existe também um trabalho com psicóloga e psiquiatra, de acompanhamento. “A frequência com que nos procuram é preocupante. É necessário pensar em uma ação nesse sentido”, assinala Matana. A secretaria fica na Rua John Kennedy, 2.151, no Centro. Telefone 3292.6800.

– Igreja do Evangelho Quadrangular: cultos da Restauração às sextas-feiras (20h); de Jovens aos sábados (19h); e da Celebração da Família aos domingos (18h). Além disso, quem procurar a igreja pode receber encaminhamento para participar do retiro de três dias, passo inicial para a desintoxicação de drogados. O templo fica na Rua Ernesto Alves (antiga capela funerária), no bairro Aparecida.

– Grupo Novo Amanhã: reuniões todas as quintas-feiras, às 20h, na sala de reuniões do salão paroquial. Conforme a coordenadora do grupo, Edit Marini Piroli, o trabalho é desenvolvido em Flores da Cunha há 13 anos. A atividade é realizada por meio do projeto ‘Amor Exigente’, o qual tem como lema “Eu te amo e não aceito o que estás fazendo de errado”. A primeira parte do programa contempla espiritualidade, independente de religião. Em seguida são ensinados 12 princípios, a serem seguidos um por mês. A terceira fase consiste na divisão do grupo, sendo que metade é composta pelos dependentes e a outra, por seus familiares. “Sabemos que as pessoas que nos procuram têm uma doença que não tem cura, mas tem recuperação”, aponta Edit. Atualmente, a média de atendimentos é de 20 pessoas. O grupo também realiza trabalho preventivo nas escolas e em empresas do município, desde que convidado. Mais informações com a coordenadora do Novo Amanhã pelo telefone 3292.1576.

De qualquer cidade do país
– Viva Voz (0800.5100015): orientação e informações sobre o uso indevido de drogas. Serviço aberto para toda a população, totalmente gratuito. Não é preciso se identificar. Profissionais de recursos humanos, saúde ocupacional e segurança do trabalho também podem tirar suas dúvidas. Funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 24h.

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