Plano Real faz 15 anos
Nessa semana o Plano Real completou aniversário. Entretanto, na opinião de especialistas da área, a economia brasileira ainda está engatinhando
Aqui em Flores da Cunha, assim como em muitas outras partes do Brasil, aquela fase nebulosa da economia brasileira é relembrada pela população. Uma rápida visita ao supermercado é capaz de comprovar isso. De cestinho na mão, e percorrendo os corredores repletos de itens, algo que não acontecia em tempos de inflação, o supervisor de produção Dante Pedro Conz, 65 anos, logo tira o sorriso do rosto ao ser questionado sobre aqueles tempos. “Não gosto nem de lembrar”, sentencia ele. “O que se comprava num dia por um valor, no outro estava 20% mais caro. Foram tempos realmente difíceis”, constata.
A situação também não era boa para os proprietários dos estabelecimentos, conforme relata Maximiliano Zambonni, empresário do setor supermercadista há mais de 30 anos. “Não tínhamos nem referência de preços. Todos os dias eu mandava duas funcionárias até Caxias do Sul para pegar os preços em uma grande rede. Assim eu os acompanhava.” conta ele.
A história Foi no final de 1993 que o governo de Itamar Franco, com sustentação do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e de sua equipe de governo, lançou as bases de um programa de estabilização econômica que se tornaria o mais bem sucedido de todos os planos lançados até então, o Plano Real. Após sucessivas e fracassadas tentativas de controlar a inflação desenfreada, que assolou o Brasil por mais de três décadas, tornando-o o país com a maior variação de preços em todo o mundo, em 1º de julho de 1994 houve a substituição do Cruzeiro Real pela nova moeda, o Real. Com isso, a economia brasileira tornou-se estável, possibilitando novos ideais à sociedade. Organizado em três etapas, o plano resultaria no fim da indexação econômica, sem congelamentos de preços, confisco de depósitos bancários ou outros artifícios utilizados em economias heterodoxas (saiba mais na página 9). A primeira medida tomada pelo governo para viabilização do projeto foi a implantação do Programa de Ação Imediata (PAI). Esse foi um conjunto de medidas econômicas elaborado em dezembro de 1993. Seu principal objetivo era “arrumar a casa”, promovendo corte de gastos públicos, recuperação da receita, ajustes nos bancos estaduais, redefinição dos bancos federais e privatizações. Tudo isso para o lançamento do Real, um ano depois. Nessa etapa houve um corte de aproximadamente seis bilhões de dólares no orçamento de 1993, em todos os ministérios. A segunda fase transcorreu de março a junho de 1994, com a criação da URV (Unidade Real de Valor). Nessa etapa, todos os produtos ficariam desvinculados da moeda vigente. Para isso, ficou estabelecido que uma URV corresponderia a um dólar. O Cruzeiro Real se desvalorizava em relação à URV e ao dólar. Aos poucos a unidade de referência foi deixando de ser utilizada, processo que marca o início da terceira etapa do Plano Real. No dia 1º de julho de 1994, o Real entra efetivamente em vigor. Essa era a terceira fase do plano. Inflação: a vilã da economia Inflação. Uma palavra que ainda assusta muita gente. Isso porque durante quase três décadas o Brasil foi devastado pelos efeitos extremamente nocivos decorrentes da variação eloquente dos preços. Especialistas afirmam que a inflação foi uma doença para a economia brasileira, chegando ao espantoso índice de 2580% ao ano, em 1993. A partir da implantação do Real, no ano seguinte, a taxa acumulada caiu expressivamente, atingindo a média mensal de 2,9% e acumulando no segundo semestre 18,72%.Certamente, a inflação foi uma das principais causas de concentração de renda no Brasil na segunda metade do século 20. “A inflação tem um caráter redistributivo, onde há uma tremenda concentração de renda”, aponta o mestre em economia e professor da Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), Cláudio Rotta. “Outra característica da inflação é que ela penaliza sempre o assalariado, os mais pobres”, complementa o especialista. O professor acrescenta que, durante esse período caracterizado pelo aumento generalizado de preços, o orçamento do governo discutido pelo Congresso não era do ano subsequente, mas do anterior. Isso dificultou o planejamento nacional dos investimentos públicos. “Muitas vezes, na metade dos anos 90, as famílias ainda discutiam o orçamento de 1989”, exemplifica. Hoje, com a economia estabilizada, é possível prever como será investido o orçamento familiar no próximo ano.
Mais poder de compra Há pouco mais de 15 anos, quando os índices de inflação batiam marcas históricas, a relação entre o salário mínimo e a cesta básica era de aproximadamente um para um. Dessa forma, um trabalhador assalariado conseguia consumir mensalmente somente o nível de alimentação básico para sua subsistência. A partir do controle inflacionário, esta relação foi sendo expressivamente melhorada. Em 1999, cinco anos após o lançamento do Real, uma cesta básica representava 80% do valor do salário mínimo. Já em 2004, décimo ano do Plano Real, o poder de compra da população de baixa renda estava cada vez mais expressivo. Naquele ano, uma cesta básica representava 68% do valor do mínimo. Hoje, após 15 anos de economia estabilizada, a proporção da cesta básica sobre o salário mínimo, na medida dos valores observados no primeiro semestre, foi de 52,9%. Ou seja, com R$ 465 é possível comprar quase duas cestas básicas, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que calcula o IPCA. Conforme a coordenadora do curso de Ciências Econômicas da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Jaqueline Maria Corá, nesse período o salário real do brasileiro aumentou cerca de 116%. Entretanto, sob a perspectiva de que uma nova classe média está se formando e de que o poder de compra da população está se elevando, a economista faz um alerta: “a falta de planejamento orçamentário e o grau de endividamento podem ser quesitos preocupantes no futuro”. Segundo ela, é necessário avaliar o quanto essas famílias poderão suportar o comprometimento de renda. “Talvez tenha que se pensar o quanto esses consumidores estão preparados para utilizar o orçamento doméstico”, frisa. Problemas e benefícios do Plano Real Na avaliação de Cláudio Rotta, o Plano Real, além de controlar a inflação, também identificou diversos fatores negativos existentes na economia brasileira. No sentido de cobrir seus gastos, o Governo impõe uma elevada carga tributária que penaliza o setor produtivo brasileiro. Além disso, ele precisa oferecer taxas de juros superiores às praticadas pelo mercado, para atrair recursos. “Algumas pessoas criticam o Plano Real porque ele resolveu o problema da inflação, mas não resolveu o das altas taxas de juros”, argumenta. Entretanto, esse é um fator decorrente dos elevados gastos públicos. “Nós não podemos culpar o Plano Real pelos problemas que temos hoje. Esses são problemas históricos, estruturais, de ineficiência administrativa, de gestão do dinheiro público”. Ele acrescenta, “as taxas de juros são instrumentos da política monetária para combater a elevação de preços”. Embora o principal objetivo do Plano Real tenha sido atingido, não se contava com os problemas externos que ocorreram como a Crise Mexicana, em 1994, a Crise Asiática, em 1997, a Crise Russa, em 1998 e os ataques terroristas, em 2001. Isso fez com que o país fizesse uma força-tarefa para conduzir a economia. Essas crises exigiram, por parte da equipe do Governo, medidas emergenciais para enfrentar a fuga de capitais, como medida de prevenção. “Com isso, o governo elevou a taxa de juros na tentativa de premiar o risco, ou seja, foi uma maneira de fazer com que esse capital não saísse do país”, explica Jaquele Maria Corá. Hoje, pode-se afirmar que a economia brasileira tem um grau de estabilidade muito maior. Entretanto, como destaca a economista, os níveis de crescimento registrados no país durante esse período foram pequenos. “Eu costumo dizer que nós ‘perdemos o bonde’, porque nos primeiros anos tivemos que enfrentar diversas crises externas, além da alteração de governo. Essas foram fases que geraram uma instabilidade econômica muito grande. Só a partir daí é que a economia conseguiu se ajustar para crescer”, constata. Após a troca do regime cambial, ocorrida em 1999, quando se passou usar o câmbio flutuante, é que iniciou o ajuste das contas. “Quando enfrentamos as crises externas no passado, nós estávamos com um ‘teco-teco’. Agora nós estamos enfrentando turbulência lá fora, só que hoje nós estamos com um ‘boing’, brinca a especialista. DesafiosPara a economista Jaqueline Maria Corá, hoje, diante da crise econômica internacional que o mundo está enfrentando, o maior desafio da economia brasileira é controlar os gastos públicos, já que o governo vem atuando com políticas macroeconômicas de estímulo ao crescimento. Na opinião de Jaqueline, a administração pública está abrindo mão de uma receita importante no momento em que investe em medidas de fomento como a redução do IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) e subsídio para alguns setores econômicos como o da construção civil e dos eletroeletrônicos. “O governo está arrecadando muito menos e, ao mesmo tempo, não tem como reduzir despesas, porque são contas fixas”, constata. Com isso, consequentemente, os gastos se elevam – de acordo com o Ministério do Planejamento, nos últimos meses as despesas aumentaram em média 18%, enquanto a receita caiu na faixa de 4%. Isso gera um aumento do déficit, que está na faixa de 42,5% do PIB (Produto Interno Bruto). Da mesma opinião compartilha o professor da área econômica, Cláudio Rotta. Para ele, o Estado é um mal gastador por natureza. “Isso ocorre em função da má gestão que já está consagrada, impregnada, como a inflação estava”, verifica. Conforme ele, durante muito tempo se achava que o Brasil não conseguiria livrar-se da inflação, mas conseguiu. Hoje, os governantes precisam buscar a eficiência na gestão pública para equilibrar as contas. “É preciso pensar também em melhorar a educação, a segurança, o transporte, a saúde, em várias esferas”, constata. “Não é injetando dinheiro em alguns setores que vamos resolver essa situação”, critica ele.
Saiba mais Economia heterodoxa é uma categoria que se refere a abordagens ou escolas de pensamento econômico que são consideradas exteriores à economia ortodoxa. A economia heterodoxa cobre campos, projetos ou tradições separados e, às vezes, distantes, que incluem o (antigo) institucionalismo, a economia pós-keynesiana, feminista, marxiana e austríaca, dentre outras. Enquanto a economia ortodoxa pode ser definida em torno da lógica equilíbrio-racionalidade-individualismo. Ela pode ser deliberada como uma conexão histórico-social-institucional. Existe uma ênfase distinta ao se apontar as economias ortodoxas e heterodoxas dessa maneira. A interpretação dessa divisão sugere como sendo um sistema-fechado em oposição a um sistema-aberto, respectivamente. Os heterodoxos aceitam a intervenção do Estado, enquanto que os ortodoxos acreditam no livre equilíbrio entre oferta e demanda.
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