O dia que durou 21 anos
Há exatas cinco décadas, em abril de 1964, os militares tomaram o poder e o Brasil iniciava um período turbulento de sua história. Em Flores da Cunha, reflexos do golpe também foram sentidos
Enquanto você fica aí pensando o que fazer / o mundo gira na porta de um bar / pois em tempos de festas até parece / que somos gente e nos amamos mutuamente.
A letra acima integrou, na década de 1970, da Vindima da Canção Popular, um festival de música realizado em Flores da Cunha com o objetivo de perpetuar a cultura e difundir o turismo. Lida hoje parece uma canção normal, porém ela passou pelo crivo da censura. A Flores, que não acreditava mais em mágicos e já não esperava o trem, também sentiu os efeitos do golpe militar. Há 50 anos, um presidente deposto e outro conduzido ao poder por homens armados marcaram o início da Revolução ‘Democrática‘ de 1964. A ditadura civil-militar duraria 21 anos e abalaria o Brasil e também cidades como Flores, que teve censurada as músicas do Vindima da Canção.
Conforme a historiadora e coordenadora do Museu Municipal, Taísa Verdi, a letra que abre esse texto tinha um contexto sarcástico e uma força de expressão provocativa. "O que preocupava a Censura eram as meias-palavras e a forma como poderiam ser interpretadas pelo público presente no Festival", frisa. Para a professora de História e dirigente de Cultura, Lorete Calza Paludo, apesar do golpe atingir todo o país, cidades pequenas como Flores da Cunha não sentiram seu efeito total, apesar de ‘espiões do sistema‘ também estarem por aqui. "É um assunto de caráter histórico, social e cultural pouco pesquisado ou falado, mas com fontes ricas à disposição. É uma memória que precisa ser registrada e não esquecida ou silenciada", afirma Taísa.
Arquitetado durante meses por integrantes das Forças Armadas, empresariado, grande imprensa, sociedade civil, e com a ajuda de países como os Estados Unidos, o golpe tinha por objetivo parar as reformas de base anunciadas por João Goulart - uma série de mudanças em diversas áreas: fiscal, urbana, administrativa, agrária. As forças diziam que o país corria o risco de se transformar em um regime comunista, como Cuba e a União Soviética. Cinquenta anos depois, o argumento é o mesmo e muitos arquivos ainda precisam ser abertos - o jornalista Elio Gaspari lançará novas edições das obras que retratavam a ditadura ‘envergonhada‘, ‘escancarada‘, ‘derrotada‘ e ‘encurralada‘ com material inédito. Por 21 anos a ditadura reprimiu, censurou, torturou e matou quem ousou ir contra à ordem instalada. Entramos na história.
Em 1° de abril
Parece mentira, mas o golpe militar ocorreu em 1° de abril de 1964. Entretanto, suas tramas ocorreram bem antes disso. As crises políticas e militares se sucediam desde setembro do ano anterior, quando sargentos tomaram Brasília pelas armas.
Conforme escreveu o professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador da obra O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas, João Roberto Martins Filho, no final de março de 1964 a situação do país havia atingido um ponto sem retorno. Os discursos do presidente João Goulart, o Jango, davam ares de verdade às mensagens de que ele se renderia ao comunismo, e a Revolta dos Marinheiros, no dia 25 de março, eram o sinal verde para o golpe militar. Os militares estavam descontentes e acreditavam que o presidente subvertia dois pilares básicos: a hierarquia e a disciplina. No campo civil, as ‘Marchas da Família com Deus pela Liberdade‘ tinham feito seu papel, dizendo que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas para salvar o país do comunismo. Como disse o general Cordeiro de Farias: "o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1°".
Sem apoio de grupos e pressionado, Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro. Viajou a Brasília no dia 1° e depois para Porto Alegre, onde Leonel Brizola tentava organizar a resistência. O presidente desistiu de um confronto militar com os golpistas e seguiu para o exílio no Uruguai. Ministros e governadores de estado pró-Goulart foram presos e conduzidos a quartéis generais. Nas ruas, manifestantes tentavam invadir o Clube Militar, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi incendiada e em todo o país tropas policiais e militares começaram a prender líderes políticos ligados a Goulart. A greve promovida pelo Comando Geral dos Trabalhadores fracassou e às 17h do dia 1°, os oficiais da Marinha tomaram o prédio do ministério. De madrugada, o Congresso Nacional declarou a vaga da presidência, embora o presidente ainda estivesse em solo nacional - Goulart voou para o Uruguai no dia 2 de abril.
O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a presidência, conforme previa a Constituição de 1946 e como já ocorrera em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. O poder real, no entanto, se encontrava nas mãos dos militares. Ainda no dia 2, os Estados Unidos reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada Revolução ‘Democrática‘ de 1964. No comando estavam os representantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército.
Ameaça comunista
Os primeiros dias após o golpe não foram fáceis. Uma violenta repressão atingiu os setores mais politicamente mobilizados, como a UNE, as Ligas Camponesas e os grupos católicos. Milhares de pessoas foram presas e os militares baixaram o Ato Institucional n° 1, o AI-1- o mais famoso dos atos se tornou o AI-5, que foi o mais duro deles e deu poderes quase absolutos ao governo em 1968. O primeiro decreto teve por objetivo fortalecer o regime e evitar que os políticos depostos e a oposição se reorganizassem para combater a nova ordem. A medida radical queria convencer os indecisos dos rumos tomados e evitar uma Guerra Civil no país. Parlamentares foram cassados e cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos. Entre os cassados, estavam políticos como João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes.
Como já mencionado, os envolvidos justificaram sua ação afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina, a hierarquia nas Forças Armadas e deter a ‘ameaça comunista‘. Conforme o pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas, Celso Castro, para os golpistas a principal ameaça à ordem capitalista e a segurança não vinha de fora, mas de dentro do próprio país, por meio de brasileiros que atuariam como "inimigos internos". Esses "inimigos" procurariam implantar o comunismo no país pela via revolucionária, através da subversão da ordem existente - por isso eram chamados pelos militares de ‘subversivos‘. "Os militares que assumiram o poder em 1964 acreditavam que o regime democrático que vigorava no Brasil desde o final da Segunda Guerra Mundial havia se mostrado incapaz de deter a ‘ameaça comunista‘. Com o golpe, deu-se início à implantação de um regime político marcado pelo autoritarismo, isto é, um regime político que privilegiava a autoridade do Estado em relação às liberdades individuais e o Poder Executivo em detrimento aos poderes Legislativo e Judiciário", diz Castro.
Ainda de acordo com o pesquisador, o que os militares tinham e que perdurou durante todo o período foi o empenho em preservar a unidade no poder, apesar dos conflitos internos entre eles. Mesmo desunidos internamente em muitos momentos, eles demostraram "um considerável grau de união sempre que vislumbravam alguma ameaça externa à ‘Revolução‘", aponta. Havia uma diferença entre os próprios militares, aqueles que clamavam por medidas mais radicais e apoiavam uma permanência deles por um longo período, e do outro lado, aqueles que se filiavam à tradição de intervenções militares moderadas na política, seguida de um retorno dos civis.
Porém, entre os mais radicais estava o general Humberto de Alencar Castelo Branco. Foi ele que em 15 de abril de 1964 assumiu a presidência da república, prometendo a retomada do crescimento econômico e o retorno a normalidade democrático. Mas isso só ocorreria 21 anos depois. "É por isso que 1964 representa um marco e uma novidade na história política do Brasil: diferente do que ocorreu em outras ocasiões, desta vez os militares não apenas deram um golpe de Estado, como permaneceram no poder", conclui Castro.
Por que tanto tempo?
Muitos devem fazer a seguinte pergunta nos dias atuais: se a liberdade democrática havia sido retirada, porque a ditadura durou tanto tempo? Por quê? A resposta é fácil: o golpe militar foi saudado por importantes setores da sociedade brasileira. Grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, governadores de estados e amplos setores de classe média pediram e estimularam a intervenção militar. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade mobilizaram mais de meio milhão de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo de Jango. O golpe tinha o apoio e a simpatia do governo norte-americano, que temia que o Brasil tomasse os mesmos rumos de Cuba. Os Estados Unidos deram apoio logístico e ajudaram a financiar a ditadura.
Conforme o professor da PUC-SP e autor do livro Informação e Formação: apontamentos sobre a atuação da grande imprensa paulistana no golpe de 1964, Luiz Antonio Dias, quem olhasse os jornais no início dos anos 1960 acreditava que os comunistas tinham invadido o Brasil. Matérias, manchetes e editoriais teciam fortes críticas as reformas anunciadas por Goulart. No dia seguinte ao golpe, o jornal Folha de São Paulo publicou "Goulart governou com os comunistas, tentou eliminar o Congresso atacando a Constituição, e, desta forma, a intervenção militar foi justa". "Tanto a Folha quanto o Estadão defenderam a deposição de um presidente eleito pelo povo e derrubado pelas Forças Armadas como ‘defesa da lei e do regime‘. A imprensa paulistana, apresentando-se como porta-voz da opinião pública, saudou a instalação de um governo autoritário e ilegítimo como se fosse democrático e legal", aponta Dias.
Com a imprensa, os próprios civis apoiavam o golpe militar. Como escreveu o professor e autor da obra Ditadura Militar, esquerdas e sociedade, Daniel Aarão Reis, "é inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no movimento que levou à instauração da ditadura. É tapar o sol com a peneira. A história atual está saturada de memória seletiva e conveniente. No exercício desta, absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação neste triste processo". Milhares de pessoas em todo o país participaram das Marchas da Família até março de 1964 com o medo das anunciadas reformas, as quais preconizavam, entre outras coisas, acabar com o latifúndio, com a presença dos capitais estrangeiros, conceder votos aos analfabetos, alterar o sistema bancário e estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Enquanto que alguns se entusiasmavam, outros tinham medo. "Iriam abalar e subverter tradições consagradas, questionar hierarquias de saber e de poder. Era a luta do bem contra o mal. Para muitos, Jango era o mal e a ditadura o bem", escreveu Reis.
Só que muitos dos apoiadores queriam apenas uma intervenção rápida. Prender e cassar quem estaria ‘desvirtuando o Brasil‘, e logo depois, retomar o jogo político tradicional. Como sabemos, não foi isso que ocorreu e os militares vieram para ficar - foram cinco generais-presidentes durante o período. "Houve metamorfoses e ambiguidades. Gente que apoiou desde o início até o fim. Outros que aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Outros que foram e voltaram. A história da ditadura não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis", diz o professor.
Na segunda metade dos anos 1970, a partir do governo Geisel, acentuou-se as migrações políticas e as instituições, antes favoráveis à ditadura, para a abertura política. Em 1979, os Atos Institucionais foram revogados e deu-se o processo de ‘transição democrática‘, que perdurou até 1988, com a nova Constituição. A partir dos anos de 1980, já não existiam mais presos políticos, o poder judiciário recuperara a autonomia, havia pluralismo político-partidário e sindical, liberdade de expressão e de imprensa. E entre 1983 e 1984, ocorreu grande movimento sociais, como o emblemático ‘Diretas-Já‘, que deram um fim, como diz o título do filme, "ao dia que durou 21 anos".
A Vindima censurada
Seguindo as tendências nacionais de realização de festivais musicais, na década de 1970, Flores também realizou o seu. A Vindima da Canção Popular foi um festival promovido pelo município, a fim de divulgar o turismo local. Dentro da conjuntura da ditadura militar, o festival também sofreu a ação da Censura Federal.
De acordo com uma pesquisa realizada pela historiadora e coordenadora do Museu Municipal, Taísa Verdi, Flores sediou dezesseis edições do festival, reunindo em três noites compositores e intérpretes de canções inéditas. No entanto, algumas dessas músicas passaram pelos olhos dos militares. A Censura Federal, através da Superintendência Regional do Rio Grande do Sul, pediu vistas de algumas letras que possivelmente tinham em seu conteúdo menção a drogas, politização de massa, revolta ou fatores que denegriam o sistema. Normalmente, as canções analisadas voltavam com o carimbo do técnico de censura com a inscrição ‘examinado e liberado‘ e estavam aptas para se apresentarem no festival. "Para a Censura, todas as ações e declarações que se chocassem contra a moral dominante, a ordem política vigente, ou que escapassem aos padrões de comportamento da moral conservadora, eram vistas como suspeitas. E cantar era uma forma de manifestação política popular muito acessível, ainda mais quando os festivais envolviam canções de autoria, como a Vindima da Canção", pontua Taísa.
Conforme a historiadora, a partir da análise feita das letras, as quais estão resguardadas no Arquivo Municipal, foi possível concluir que não havia emprego de termos que atingiam diretamente o Governo Militar ou incitavam a manifestação. "Porém, num contexto de Censura, palavras como liberdade, sonhos, morte e referências a classes sociais podem ter interpretações secundárias ou implícitas que seriam apresentadas em um festival aberto e popular. Canções que, através de sua mensagem imperativa, poderiam influenciar outros", explica.
A Vindima da Canção aconteceu entre os anos de 1975 a 1993, com periodicidade anual.
Foto/Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi/Divulgação
Festival Vindima da Canção de 1978: músicas também passaram pela censura.
Pouca manifestação e fichas inspecionadas
Diretora da Escola Estadual São Rafael por mais de 15 anos, Dolores Soldatelli, 78 anos, ainda guarda na memória algumas recordações da ditadura. A aposentada trabalhou na escola de 1958 até 1982, período em que ocorreu o golpe militar. Em suas lembranças, Flores e a própria instituição de ensino passaram ilesos pelas normas do governo. "Não tínhamos como ir contra o sistema, pois ele não era sentido aqui. Havia muito pouco debate, diferente de cidades maiores", diz ela, que tomou conhecimento da censura através do irmão que morava no Rio de Janeiro. "Eu era ingênua e não via mal. Meu irmão que falou para eu prestar atenção na revista Veja, que sempre que aparecia o selo da editora era porque algo tinha sido censurado. E também não entendi muito bem quando um professor que conhecia foi cassado".
O que Dolores recorda com precisão é das fichas de cada professor, que precisavam ser levadas ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Porto Alegre. Toda vez que um professor era contratado, Dolores ia à capital para entregar a ‘ficha corrida‘ do docente. "Mas eu já ia lá dizendo que conhecia o professor e que era para aprovar, não tinha receio", conta. Nessa ficha constavam dados profissionais e sociais do professor, e também se ele possuía algum vínculo político. Antes da contratação do professor, o DOPS precisava aprovar.
A professora aposentada também lembra que com a implantação da ditadura foi inserida no currículo escolar a disciplina OSPB - Organização Social e Política Brasileira, que mais tarde se tornaria a matéria Moral e Cívica, uma espécie de cartilha que orientava o civismo e o amor à pátria. "Foi mudado o sistema de grupos seriados na faculdade, isso para diluir as forças estudantis e objeções ao governo. Mas aqui não tivemos repressão e se teve espiões na escola nunca soube", observa.
Para saber mais
Livros
Série de obras do jornalista e escritor Elio Gaspari: A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada
Filmes
O que é isso companheiro?, O ano em que meus pais saíram de férias e O dia que durou 21 anos
Sites
www.memoriasreveladas.gov.br
www.memoriacinebr.com.br
Em 2014
- A presidente Dilma Rousseff orientou os chefes das Forças Armadas para evitarem comemorações por conta do aniversário de 50 anos do golpe militar. Quem realizar manifestação poderá ser punido.
- No dia 22 de março cerca de 700 pessoas se reuniram em São Paulo para reeditar a ‘Marcha da Família com Deus Pela Liberdade‘, que em 1964 atraiu centenas de pessoas contra o governo de João Goulart. Os manifestantes carregavam faixas com os dizeres: ‘Forças Armadas Já‘, ‘Comunismo é morte‘ e ‘Voto facultativo=liberdade‘.
A letra acima integrou, na década de 1970, da Vindima da Canção Popular, um festival de música realizado em Flores da Cunha com o objetivo de perpetuar a cultura e difundir o turismo. Lida hoje parece uma canção normal, porém ela passou pelo crivo da censura. A Flores, que não acreditava mais em mágicos e já não esperava o trem, também sentiu os efeitos do golpe militar. Há 50 anos, um presidente deposto e outro conduzido ao poder por homens armados marcaram o início da Revolução ‘Democrática‘ de 1964. A ditadura civil-militar duraria 21 anos e abalaria o Brasil e também cidades como Flores, que teve censurada as músicas do Vindima da Canção.
Conforme a historiadora e coordenadora do Museu Municipal, Taísa Verdi, a letra que abre esse texto tinha um contexto sarcástico e uma força de expressão provocativa. "O que preocupava a Censura eram as meias-palavras e a forma como poderiam ser interpretadas pelo público presente no Festival", frisa. Para a professora de História e dirigente de Cultura, Lorete Calza Paludo, apesar do golpe atingir todo o país, cidades pequenas como Flores da Cunha não sentiram seu efeito total, apesar de ‘espiões do sistema‘ também estarem por aqui. "É um assunto de caráter histórico, social e cultural pouco pesquisado ou falado, mas com fontes ricas à disposição. É uma memória que precisa ser registrada e não esquecida ou silenciada", afirma Taísa.
Arquitetado durante meses por integrantes das Forças Armadas, empresariado, grande imprensa, sociedade civil, e com a ajuda de países como os Estados Unidos, o golpe tinha por objetivo parar as reformas de base anunciadas por João Goulart - uma série de mudanças em diversas áreas: fiscal, urbana, administrativa, agrária. As forças diziam que o país corria o risco de se transformar em um regime comunista, como Cuba e a União Soviética. Cinquenta anos depois, o argumento é o mesmo e muitos arquivos ainda precisam ser abertos - o jornalista Elio Gaspari lançará novas edições das obras que retratavam a ditadura ‘envergonhada‘, ‘escancarada‘, ‘derrotada‘ e ‘encurralada‘ com material inédito. Por 21 anos a ditadura reprimiu, censurou, torturou e matou quem ousou ir contra à ordem instalada. Entramos na história.
Em 1° de abril
Parece mentira, mas o golpe militar ocorreu em 1° de abril de 1964. Entretanto, suas tramas ocorreram bem antes disso. As crises políticas e militares se sucediam desde setembro do ano anterior, quando sargentos tomaram Brasília pelas armas.
Conforme escreveu o professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador da obra O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas, João Roberto Martins Filho, no final de março de 1964 a situação do país havia atingido um ponto sem retorno. Os discursos do presidente João Goulart, o Jango, davam ares de verdade às mensagens de que ele se renderia ao comunismo, e a Revolta dos Marinheiros, no dia 25 de março, eram o sinal verde para o golpe militar. Os militares estavam descontentes e acreditavam que o presidente subvertia dois pilares básicos: a hierarquia e a disciplina. No campo civil, as ‘Marchas da Família com Deus pela Liberdade‘ tinham feito seu papel, dizendo que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas para salvar o país do comunismo. Como disse o general Cordeiro de Farias: "o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1°".
Sem apoio de grupos e pressionado, Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro. Viajou a Brasília no dia 1° e depois para Porto Alegre, onde Leonel Brizola tentava organizar a resistência. O presidente desistiu de um confronto militar com os golpistas e seguiu para o exílio no Uruguai. Ministros e governadores de estado pró-Goulart foram presos e conduzidos a quartéis generais. Nas ruas, manifestantes tentavam invadir o Clube Militar, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi incendiada e em todo o país tropas policiais e militares começaram a prender líderes políticos ligados a Goulart. A greve promovida pelo Comando Geral dos Trabalhadores fracassou e às 17h do dia 1°, os oficiais da Marinha tomaram o prédio do ministério. De madrugada, o Congresso Nacional declarou a vaga da presidência, embora o presidente ainda estivesse em solo nacional - Goulart voou para o Uruguai no dia 2 de abril.
O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a presidência, conforme previa a Constituição de 1946 e como já ocorrera em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. O poder real, no entanto, se encontrava nas mãos dos militares. Ainda no dia 2, os Estados Unidos reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada Revolução ‘Democrática‘ de 1964. No comando estavam os representantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército.
Ameaça comunista
Os primeiros dias após o golpe não foram fáceis. Uma violenta repressão atingiu os setores mais politicamente mobilizados, como a UNE, as Ligas Camponesas e os grupos católicos. Milhares de pessoas foram presas e os militares baixaram o Ato Institucional n° 1, o AI-1- o mais famoso dos atos se tornou o AI-5, que foi o mais duro deles e deu poderes quase absolutos ao governo em 1968. O primeiro decreto teve por objetivo fortalecer o regime e evitar que os políticos depostos e a oposição se reorganizassem para combater a nova ordem. A medida radical queria convencer os indecisos dos rumos tomados e evitar uma Guerra Civil no país. Parlamentares foram cassados e cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos. Entre os cassados, estavam políticos como João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes.
Como já mencionado, os envolvidos justificaram sua ação afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina, a hierarquia nas Forças Armadas e deter a ‘ameaça comunista‘. Conforme o pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas, Celso Castro, para os golpistas a principal ameaça à ordem capitalista e a segurança não vinha de fora, mas de dentro do próprio país, por meio de brasileiros que atuariam como "inimigos internos". Esses "inimigos" procurariam implantar o comunismo no país pela via revolucionária, através da subversão da ordem existente - por isso eram chamados pelos militares de ‘subversivos‘. "Os militares que assumiram o poder em 1964 acreditavam que o regime democrático que vigorava no Brasil desde o final da Segunda Guerra Mundial havia se mostrado incapaz de deter a ‘ameaça comunista‘. Com o golpe, deu-se início à implantação de um regime político marcado pelo autoritarismo, isto é, um regime político que privilegiava a autoridade do Estado em relação às liberdades individuais e o Poder Executivo em detrimento aos poderes Legislativo e Judiciário", diz Castro.
Ainda de acordo com o pesquisador, o que os militares tinham e que perdurou durante todo o período foi o empenho em preservar a unidade no poder, apesar dos conflitos internos entre eles. Mesmo desunidos internamente em muitos momentos, eles demostraram "um considerável grau de união sempre que vislumbravam alguma ameaça externa à ‘Revolução‘", aponta. Havia uma diferença entre os próprios militares, aqueles que clamavam por medidas mais radicais e apoiavam uma permanência deles por um longo período, e do outro lado, aqueles que se filiavam à tradição de intervenções militares moderadas na política, seguida de um retorno dos civis.
Porém, entre os mais radicais estava o general Humberto de Alencar Castelo Branco. Foi ele que em 15 de abril de 1964 assumiu a presidência da república, prometendo a retomada do crescimento econômico e o retorno a normalidade democrático. Mas isso só ocorreria 21 anos depois. "É por isso que 1964 representa um marco e uma novidade na história política do Brasil: diferente do que ocorreu em outras ocasiões, desta vez os militares não apenas deram um golpe de Estado, como permaneceram no poder", conclui Castro.
Por que tanto tempo?
Muitos devem fazer a seguinte pergunta nos dias atuais: se a liberdade democrática havia sido retirada, porque a ditadura durou tanto tempo? Por quê? A resposta é fácil: o golpe militar foi saudado por importantes setores da sociedade brasileira. Grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, governadores de estados e amplos setores de classe média pediram e estimularam a intervenção militar. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade mobilizaram mais de meio milhão de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo de Jango. O golpe tinha o apoio e a simpatia do governo norte-americano, que temia que o Brasil tomasse os mesmos rumos de Cuba. Os Estados Unidos deram apoio logístico e ajudaram a financiar a ditadura.
Conforme o professor da PUC-SP e autor do livro Informação e Formação: apontamentos sobre a atuação da grande imprensa paulistana no golpe de 1964, Luiz Antonio Dias, quem olhasse os jornais no início dos anos 1960 acreditava que os comunistas tinham invadido o Brasil. Matérias, manchetes e editoriais teciam fortes críticas as reformas anunciadas por Goulart. No dia seguinte ao golpe, o jornal Folha de São Paulo publicou "Goulart governou com os comunistas, tentou eliminar o Congresso atacando a Constituição, e, desta forma, a intervenção militar foi justa". "Tanto a Folha quanto o Estadão defenderam a deposição de um presidente eleito pelo povo e derrubado pelas Forças Armadas como ‘defesa da lei e do regime‘. A imprensa paulistana, apresentando-se como porta-voz da opinião pública, saudou a instalação de um governo autoritário e ilegítimo como se fosse democrático e legal", aponta Dias.
Com a imprensa, os próprios civis apoiavam o golpe militar. Como escreveu o professor e autor da obra Ditadura Militar, esquerdas e sociedade, Daniel Aarão Reis, "é inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no movimento que levou à instauração da ditadura. É tapar o sol com a peneira. A história atual está saturada de memória seletiva e conveniente. No exercício desta, absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação neste triste processo". Milhares de pessoas em todo o país participaram das Marchas da Família até março de 1964 com o medo das anunciadas reformas, as quais preconizavam, entre outras coisas, acabar com o latifúndio, com a presença dos capitais estrangeiros, conceder votos aos analfabetos, alterar o sistema bancário e estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Enquanto que alguns se entusiasmavam, outros tinham medo. "Iriam abalar e subverter tradições consagradas, questionar hierarquias de saber e de poder. Era a luta do bem contra o mal. Para muitos, Jango era o mal e a ditadura o bem", escreveu Reis.
Só que muitos dos apoiadores queriam apenas uma intervenção rápida. Prender e cassar quem estaria ‘desvirtuando o Brasil‘, e logo depois, retomar o jogo político tradicional. Como sabemos, não foi isso que ocorreu e os militares vieram para ficar - foram cinco generais-presidentes durante o período. "Houve metamorfoses e ambiguidades. Gente que apoiou desde o início até o fim. Outros que aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Outros que foram e voltaram. A história da ditadura não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis", diz o professor.
Na segunda metade dos anos 1970, a partir do governo Geisel, acentuou-se as migrações políticas e as instituições, antes favoráveis à ditadura, para a abertura política. Em 1979, os Atos Institucionais foram revogados e deu-se o processo de ‘transição democrática‘, que perdurou até 1988, com a nova Constituição. A partir dos anos de 1980, já não existiam mais presos políticos, o poder judiciário recuperara a autonomia, havia pluralismo político-partidário e sindical, liberdade de expressão e de imprensa. E entre 1983 e 1984, ocorreu grande movimento sociais, como o emblemático ‘Diretas-Já‘, que deram um fim, como diz o título do filme, "ao dia que durou 21 anos".
A Vindima censurada
Seguindo as tendências nacionais de realização de festivais musicais, na década de 1970, Flores também realizou o seu. A Vindima da Canção Popular foi um festival promovido pelo município, a fim de divulgar o turismo local. Dentro da conjuntura da ditadura militar, o festival também sofreu a ação da Censura Federal.
De acordo com uma pesquisa realizada pela historiadora e coordenadora do Museu Municipal, Taísa Verdi, Flores sediou dezesseis edições do festival, reunindo em três noites compositores e intérpretes de canções inéditas. No entanto, algumas dessas músicas passaram pelos olhos dos militares. A Censura Federal, através da Superintendência Regional do Rio Grande do Sul, pediu vistas de algumas letras que possivelmente tinham em seu conteúdo menção a drogas, politização de massa, revolta ou fatores que denegriam o sistema. Normalmente, as canções analisadas voltavam com o carimbo do técnico de censura com a inscrição ‘examinado e liberado‘ e estavam aptas para se apresentarem no festival. "Para a Censura, todas as ações e declarações que se chocassem contra a moral dominante, a ordem política vigente, ou que escapassem aos padrões de comportamento da moral conservadora, eram vistas como suspeitas. E cantar era uma forma de manifestação política popular muito acessível, ainda mais quando os festivais envolviam canções de autoria, como a Vindima da Canção", pontua Taísa.
Conforme a historiadora, a partir da análise feita das letras, as quais estão resguardadas no Arquivo Municipal, foi possível concluir que não havia emprego de termos que atingiam diretamente o Governo Militar ou incitavam a manifestação. "Porém, num contexto de Censura, palavras como liberdade, sonhos, morte e referências a classes sociais podem ter interpretações secundárias ou implícitas que seriam apresentadas em um festival aberto e popular. Canções que, através de sua mensagem imperativa, poderiam influenciar outros", explica.
A Vindima da Canção aconteceu entre os anos de 1975 a 1993, com periodicidade anual.
Foto/Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi/Divulgação
Festival Vindima da Canção de 1978: músicas também passaram pela censura.
Pouca manifestação e fichas inspecionadas
Diretora da Escola Estadual São Rafael por mais de 15 anos, Dolores Soldatelli, 78 anos, ainda guarda na memória algumas recordações da ditadura. A aposentada trabalhou na escola de 1958 até 1982, período em que ocorreu o golpe militar. Em suas lembranças, Flores e a própria instituição de ensino passaram ilesos pelas normas do governo. "Não tínhamos como ir contra o sistema, pois ele não era sentido aqui. Havia muito pouco debate, diferente de cidades maiores", diz ela, que tomou conhecimento da censura através do irmão que morava no Rio de Janeiro. "Eu era ingênua e não via mal. Meu irmão que falou para eu prestar atenção na revista Veja, que sempre que aparecia o selo da editora era porque algo tinha sido censurado. E também não entendi muito bem quando um professor que conhecia foi cassado".
O que Dolores recorda com precisão é das fichas de cada professor, que precisavam ser levadas ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Porto Alegre. Toda vez que um professor era contratado, Dolores ia à capital para entregar a ‘ficha corrida‘ do docente. "Mas eu já ia lá dizendo que conhecia o professor e que era para aprovar, não tinha receio", conta. Nessa ficha constavam dados profissionais e sociais do professor, e também se ele possuía algum vínculo político. Antes da contratação do professor, o DOPS precisava aprovar.
A professora aposentada também lembra que com a implantação da ditadura foi inserida no currículo escolar a disciplina OSPB - Organização Social e Política Brasileira, que mais tarde se tornaria a matéria Moral e Cívica, uma espécie de cartilha que orientava o civismo e o amor à pátria. "Foi mudado o sistema de grupos seriados na faculdade, isso para diluir as forças estudantis e objeções ao governo. Mas aqui não tivemos repressão e se teve espiões na escola nunca soube", observa.
Para saber mais
Livros
Série de obras do jornalista e escritor Elio Gaspari: A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada
Filmes
O que é isso companheiro?, O ano em que meus pais saíram de férias e O dia que durou 21 anos
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Em 2014
- A presidente Dilma Rousseff orientou os chefes das Forças Armadas para evitarem comemorações por conta do aniversário de 50 anos do golpe militar. Quem realizar manifestação poderá ser punido.
- No dia 22 de março cerca de 700 pessoas se reuniram em São Paulo para reeditar a ‘Marcha da Família com Deus Pela Liberdade‘, que em 1964 atraiu centenas de pessoas contra o governo de João Goulart. Os manifestantes carregavam faixas com os dizeres: ‘Forças Armadas Já‘, ‘Comunismo é morte‘ e ‘Voto facultativo=liberdade‘.
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