O amor pelas flores
Rosalina Bernardi Calgaro, de 86 anos, revela a importância da força de vontade para alcançar seus objetivos. Hoje, a floricultura que ela fundou é a mais tradicional do município, com quase meio século de atividades
Seja para expressar o amor ou a paixão, traduzir o carinho ou a amizade, para homenagear ou agradecer, parabenizar ou consolar, ou simplesmente para presentear, as flores, cada qual na sua mais singela e delicada forma, cor e aroma representam um sorriso no rosto de quem as recebe e são capazes de entregar abraços que a distância não permite aproximar.
O sentimento de poder transformar o dia de alguém por meio de uma ‘simples’ flor é o que segue inspirando a linha de frente da Floricultura Rosalina e Lorena, Rosalina Bernardi Calgaro, de 86 anos. Natural de Nova Pádua, ela comanda o empreendimento florense há quase cinco décadas, tanto que, entre os mais antigos, é praticamente impossível falar em flores sem lembrar da floricultura mais tradicional, senão a primeira do município.
Filha do casal João Bernardi e Santina Arcaro Bernardi (In memoriam), Rosalina possui 12 irmãos e passou a infância no interior. Na adolescência, foi estudar em Rio Grande, onde tentou ser juvenista, mas acabou não gostando e desistindo. Trabalhava com as Irmãs ajudando a fazer comida, entre outras atividades. Mas o período no Sul do estado contribuiu muito para sua formação, uma vez que aprendeu cálculos, o que se mostrou fundamental no momento em que decidiu abrir seu próprio negócio.
Alguns anos depois, Rosalina casou-se com o caminhoneiro Orestes Calgaro (In memoriam) e foi morar em Otávio Rocha, lá teve seus cinco filhos: Lorena, Nilto, Fernandes, Álvaro e Sandra e residiu no distrito por cerca de cinco anos, estes morando de aluguel e enfrentando diversas dificuldades. Em busca de mais oportunidades de trabalho o casal mudou-se para a área urbana de Flores da Cunha, mas, por aqui também, precisaram se adaptar, morando de aluguel por mais alguns anos até conseguirem dinheiro para investir na construção da tão sonhada casa própria, moradia que Rosalina contribuiu financeiramente e, também, com seu trabalho, uma vez que auxiliava os pedreiros na própria edificação, fazia pão e balas de coco para vender, costurava para fora, e uma infinidade de outras coisas mais.
Somente depois de todas essas atividades é que Rosalina passou a se dedicar exclusivamente à floricultura que, na verdade, surgiu a partir de uma ideia de sua irmã, Égide, que via Rosalina entregando mudas de graça aos que solicitavam e, então, sugeriu que ela criasse uma floricultura. E assim ela fez.
Hoje o empreendimento é gerido pela filha, Lorena Inês Calgaro Viapiana, de 65 anos, que dá continuidade ao trabalho semeado pela mãe. Mas, mesmo assim, a matriarca, que hoje também é avó de nove netos, não abre mão de ajudar com o que for preciso, sempre que possível. Conheça a história de Rosalina Bernardi Calgaro.
O Florense: Sempre trabalhou com a floricultura, vendendo flores e folhagens?*
Rosalina Calgaro: Faz quase 50 anos que tenho a floricultura, mas antes já trabalhei com muitas outras coisas. Quando meu marido, Orestes Calgaro, viajava, que ele trabalhava com caminhão, nós morávamos de aluguel em outro lugar e eu ajudei a pagar essa casa que temos hoje. Eu fazia pão e balas de coco para vender, aquelas balas brancas; na época a gente não tinha nada, mas sempre tive força de vontade de seguir em frente, pensava que tinha que me fazer uma casa, então ajudei bastante. Eu também era costureira fina, nem sei quantas coisas eu tinha de fazer.
Nós morávamos onde hoje é o showroom da Pedron, lá tinha uma casa bem antiga e naquela época a gente fazia balas. A minha filha, Lorena, ia vender os doces nas casas e lembra que, um dia, uma senhora tinha olhado para ela dos pés à cabeça, isso porque as pessoas achavam que nós éramos miseráveis, eles viam que estávamos sujos – porque tínhamos só uma roupa e, às vezes, a que usava para ficar em casa era a mesma que saia na rua. Depois de um tempo não precisávamos mais passar de casa em casa, as pessoas vinham procurar as balas. O problema é que todo o trabalho que a gente tinha para fazer, quando íamos entregar as pessoas diziam que iam pagar outro dia, mas muitas não pagaram. Teve uma vez que peguei umas bolsas grandes e fui para Caxias do Sul vender as balas, todo mundo comprava. Depois, com o dinheiro da venda, comprei cadernos e lápis mais baratos para as crianças, todos já estavam nas aulas e eu comprei tudo, aquilo valeu a pena, fiquei bem feliz porque ganhei um bom dinheiro para comprar os materiais para dar para os meus filhos irem para a escola.
OF: Como e quando surgiu a oportunidade de trabalhar com a venda de flores?
Rosalina: Um dia a minha irmã, Égide (que hoje mora nos Estados Unidos), estava aqui em casa e no corredor tinha todas aquelas folhagens coloridas, que chamam de Coração de Mãe, que é comum, e no inverno elas tem que ficar dentro de casa para não morrer, elas estavam lindas e muita gente vinha me pedir mudas e eu dava, de graça, até que essa minha irmã sugeriu que eu montasse uma floricultura. Aqui no corredor ficava tudo cheio, de todas as cores, elas eram tão bonitas e, às vezes, o pessoal até roubava porque não ficava fechado, só tinha o portão, entravam e roubavam galhinhos, alguns até arrancavam e estragavam, era uma pena.
Segui o conselho da Égide, lembro que tinha uma festa nos pavilhões do Parque da Vindima e eu levei para vender quase todas as folhagens que tinha lá e, para minha surpresa, veio um médico e comprou todas, fiquei muito feliz porque foi a primeira venda grande que eu fiz. Com o dinheiro eu consegui comprar uma Kombi, e fiquei 16 anos com ela, ia para o Vale do Caí buscar eucalipto, plantas de mato, de casa, laranjeiras, bergamoteiras, de tudo quanto era tipo. Enchia a Kombi e não tinha medo, muitas vezes ia sozinha, eu gostava de fazer aquilo que estava fazendo. A cada oito dias eu tinha que ir para lá, eram muitas encomendas de plantas. Recordo que eu era uma das primeiras a chegar lá e cada comprador tinha que fazer o seu montinho, mas, além disso, cuidar para o outro não roubar o que queríamos, porque tinha bastante gente que chegava ao mesmo tempo.
OF: O que lembra do início? Quais foram as principais dificuldades?
Rosalina: Como a quantidade de plantas que a gente comprava só aumentava, o espaço foi se tornando pequeno. Aí eu fui ver para fazer um projeto de 20x12 para botar a floricultura, e começamos o espaço assim. Ali a gente guardava a Kombi, porque não tínhamos garagem, e de dia nós tirávamos a Kombi e as pessoas entravam na floricultura. Nesse meio tempo eu já tinha ido nas colônias, lá nos meus parentes, aonde tinha aquelas folhagens bonitas, diferentes das que eu tinha no corredor, eles me vendiam, eu não queria de graça, sempre paguei. Comecei assim, depois que fui para o Vale do Caí e passei a trazer coisas diferentes, aí eu colocava o que era menor em uma mesa bem grandona, que meu marido tinha mandado fazer, e as plantas maiores no chão. A minha floricultura foi a primeira em Flores da Cunha, depois surgiram outras, como a da Maria Luiza Vanelli, que, inclusive, nós fomos juntas para Caxias do Sul aprender a fazer arranjos. No início trabalhei mais com essa parte de folhagens e plantas.
OF: E quando começou a trabalhar mais com a parte de flores?
Rosalina: Foi quando abriu os Viveiros Dallemole, aí a gente deixou de trabalhar com as fruteiras e continuou com as flores, porque não tinha mais vendas, o pessoal só vinha nos procurar quando não tinha lá, tanto que, com o passar do tempo, indicamos os clientes a comprarem essa parte no Dallemole. Então foi uma adaptação que precisamos fazer. Começamos a investir em coroas de flores para vender para os finados, a gente vendia muito bem para velórios e enterros, mas chegou um ponto que, como as pessoas vinham buscar as flores aqui, de noite e de madrugada, a gente acabava tendo que levantar para atender, nós decidimos que não atenderíamos mais, afinal, moramos no mesmo lugar da floricultura, o que tem o lado positivo e negativo.
Hoje a situação é diferente, mas, no começo, foi difícil colocar na cabeça das pessoas que tinham que comprar uma flor/folhagem, eles diziam que flor se dava, que não tinha que pagar. Foi difícil até explicarmos que tínhamos que comprar em algum lugar também e que ninguém trabalha de graça.
OF: Como foi esse momento de mudança em que abriu o Viveiros Dallemole?*
Rosalina: O pessoal vinha aqui e procurava muito por plantas diferentes, mas nós não tínhamos mais onde colocar, faltava espaço, na época a gente enterrava as laranjeiras, bergamoteiras, ameixeiras, no terreno do vizinho, então foi bom ficarmos só com a parte das flores. A dificuldade foi só de fazer o pessoal entender que flor tinha que ser comprada e não dada, senão eles pediam uma mudinha e era isso, mas deu tudo certo e hoje as pessoas vem comprar com mais segurança, já sabendo o que querem, ainda mais quando procuram na internet.
OF: Quais são as datas mais movimentadas para a floricultura hoje?
Rosalina: O Dia Internacional da Mulher é a melhor data que tem, depois vem o Dia das Mães e, em terceiro lugar, o Dia dos Namorados, que já foi melhor, hoje eles compram coisinhas pequenas, procuram gastar pouco porque agora não tem tanto dinheiro como uma vez. Também tinha o Dia de Finados, que a gente vendia muito bem, mas agora tem os armazéns, então temos sempre que comprar em menor quantidade. Mas a data mais forte, sem dúvida, é o Dia Internacional da Mulher, quando vem os homens casados e compram aqueles ramalhetes grandes com rosas importadas que a gente abre, é vendido bem, e uma curiosidade dessas rosas é que elas são abertas com as mãos.
OF: Com o surgimento de novas floriculturas, como procuram se manter competitivas no mercado?
Rosalina: A gente, a Lorena principalmente, começou a fazer ramalhetes de menor preço com três botões, um atrás do outro; ou com astromélias, aí coloca mais algumas coisas, e depois com o papel e uma fitinha, é o que se vende mais. Quando vem os namorados e dizem que querem um ramalhete, mas não muito caro, a gente mostra esses que estão na média de R$ 50, R$ 70, e eles são bonitinhos, aí eles querem porque é de menor preço. Temos clientes que a primeira coisa que dizem quando entram é: “não quero gastar muito”, por outro lado, tem gente que diz “eu quero esse” e aí a gente vai mostrando as opções e ele aponta que quer o maior, o mais bonito, independentemente do valor. Por isso, nós também temos a opção das rosas importadas, que alguns gostam e outros evitam porque é muito caro, mas dá para fazer os ramalhetes bem diferentes. E o tamanho de uma rosa dessas tu não pode acreditar, dá para fazer quatro daquelas pequenas nossas. Outro diferencial é que também entregamos as flores, para quem preferir.
Tem várias floriculturas hoje, mas eu observo que cada uma tem o seu estilo, e por mais que elas também façam bastante ramalhetes para casamento, festas, os delas e os nossos são totalmente diferentes, isso porque a gente pegou um jeito de fazer, cada um tem seu estilo.
OF: Como é trabalhar com flores, um ‘produto’ de curta durabilidade?
Rosalina: Nós temos duas câmaras frias, o bom foi de ter essas câmaras porque tu coloca as flores, elas duram vários dias e ainda tu vende e elas duram bastante, ainda mais a importada. Mas a gente sempre deixa alguns arranjos preparados, vi que hoje pela manhã elas desmancharam um que foi feito há uns três ou quatro dias, depois de desmanchado ela pode ocupar o vaso, botar as rosas de novo e alguma outra coisa, como astromélias, mosquitinho, boca de leão, tem tanta coisa que a gente pode botar; e aí vendemos como aqueles arranjos mais em conta, que saem bastante.
OF: Ainda trabalha na floricultura? Gosta desse ambiente?
Rosalina: Trabalho, sim, só essa semana que passou que eu não estava bem, então elas (filha e funcionária) me mandavam vir para casa deitar, descansar as pernas, porque estava meio gripada. Quando estou bem, eu ajudo. Gosto de trabalhar com flores, sempre gostei, a gente precisa gostar senão não dá, não vai adiante, tem que gostar mesmo e eu comecei minha floricultura com vontade. Sabe o que meu marido disse, na época? Ele estava ainda dormindo e eu estava aqui fora, assoviando e plantando, ele disse que eu iria viver 100 anos porque eu estava feliz!
OF: Hoje sua filha, Lorena, dá continuidade ao negócio, como se sente vendo que ela está seguindo seus passos? *
Rosalina: Ela trabalhou aqui desde sempre, só ficou fora uns três anos, lá em 1978, depois sempre aqui. Tanto que na época que trabalhávamos com as plantas de frutas, ela pegou essa parte, e nós tínhamos que enterrar elas, depois tinha que descer a escada cada vez para buscar, quando o cliente pedia, era bem difícil. Mas hoje é uma beleza ela dar continuidade porque eu posso ficar aqui sentada (risos). E agora a Lorena e a funcionária, a Iliane, se viram.
OF: Mesmo com tantos desafios, o que lhe inspirou construir tudo o que construiu?
Rosalina: Bom, começou com as folhagens Coração de Mãe, mas eram bonitas, todo mundo que passava adorava e estava tudo plantado dentro de caixas de bateria. Aquilo, quando tu olhava, olhava com gosto que ela veio para cima, parecia que tinha Deus ali para vir bonita assim, e era em todo o corredor. Acho que foi isso, a fé.
É a floricultura mais antiga de Flores da Cunha e, hoje, quando lembram da gente nos sentimos felizes, agradecidas, embora uma vez já tenha sido mais assim, quando tinha só essa, era mais conhecida, mas agora tem as outras também.
OF: Se pudesse dar um conselho, qual seria?
Rosalina: Diria para as pessoas que antes de começar uma floricultura tem que ter um lugar, um bom lugar e que elas tenham vocação para isso, que trabalhem com gosto naquilo que elas fazem porque tem vezes que a gente vê certo ramalhetes que, sinceramente, nem de graça eu quereria. Tem que ter amor, amor em fazer o ramalhete e vocação, essa é a parte principal. E, se possível, que ela tenha um pedaço de terra, não como nós que tivemos que botar tudo ali, assim, conforme dava. A gente não tinha dinheiro para pagar, mas assim mesmo nós comprávamos aquilo que precisava, devagar. Então tem que preparar o lugar e ter amor, amor em trabalhar com as flores.
*Algumas respostas contaram com a colaboração da filha de Rosalina, Lorena Inês Calgaro Viapiana, presente desde o início da floricultura.
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