Florenses conectados com a cultura
Evento ocorrerá na noite de quarta-feira com premiação do 1º Concurso de Contos e Crônicas
A 3ª edição do projeto Conexão Cultural será realizada no Espaço Cultural São José de Flores da Cunha na próxima na quarta-feira, dia 27, a partir das 20h30min. A entrada é franca. O projeto visa integrar diferentes áreas de cultura e terá a presença do escritor Uili Bergamin, com bate-papo sobre a carreira e venda de livros.
Bergamin é natural de Bento Gonçalves e é autor de diversos contos e crônicas, entre eles O Sino do Campanário, adaptado para o cinema; da novela Cela de Papel; do livro de poemas Do Útero do Mundo; e do livro infanto-juvenil A Ilha Mágica. Vencedor de prêmios literários, o autor também ministra palestras, oficinas e participa de Feiras do Livro.
A cena musical da noite ficará a cargo do acústico Magic Pie, com os músicos Dudu Heberle e Gustavo Colombo. “Este é objetivo: integrar áreas como literatura e música propiciando diálogo com escritores locais e regionais”, destaca a coordenadora do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi, Taisa Verdi. A Secretaria de Educação, Cultura e Desporto e a Biblioteca Pública Municipal Érico Veríssimo também são promotoras da atividade.
Contos e Crônicas
Na mesma noite serão entregues as premiações aos vencedores do 1º Concurso de Contos e Crônicas de Flores da Cunha. A escolha das obras vencedoras ocorreu no dia 12, quando os jurados se reuniram para avaliação dos trabalhos inscritos nas categorias Conto e Crônica. Foram 36 inscritos de Flores da Cunha, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Antônio Prado, Farroupilha, Canela e Porto Alegre.
Os vencedores da categoria Conto foram Douglas Ceccagno (Bento Gonçalves), com o título Itinerário de uma obra (1º); Ismael Sebben (Bento), com Esmola dos deuses (2º) e Pablo Antunes (Canela), com O pai que não foi (3º). Os jurados deram Menção Honrosa para Ronaldo Albé Lucena (Porto Alegre) com o título O segundo dia.
Na categoria Crônica apenas um trabalho foi escolhido, o de Ronaldo Velho Bueno e Jennifer Buaer Eme (Caxias do Sul) – Olhares Cruzados. O Concurso teve apoio da College Yes Cultural, G4 Impressão Digital, Vitrine Propaganda e Marketing, Almanaque Cultural Livros e Revistas, Associação dos Produtores de Arte e Cultura (Apac) e Editora Correa.
A íntegra dasobras premiadas
Categoria Conto – Itinerário de uma obra, de Douglas Ceccagno
A obra se constituía de uma única frase. Assim é que sua autora esperava ser eternizada: não por uma série interminável de livros, montanhas de papel que acabariam abandonadas ao pó e às traças de bibliotecas escuras, mas por uma sentença breve, simples, ainda que carregada da essência trágica do ser humano, devastadora em cada palavra, ao mesmo tempo chocante na sua compreensão da finitude humana e repleta de amor pela vida. Afinal, não era pelas máximas dos filósofos, pelos aforismos escondidos em longos romances, pelas frases de efeito ditas em meio a horas inacabáveis de peças de teatro, pelas chaves de ouro dos poetas que a fama de seus autores atravessava os séculos? Sua obra seria um único aforismo, belo ainda que sem enfeites de estilo, direto e pungente como toda grande literatura.
Sentou e escreveu. Em algum lugar, uma goteira que vinha do andar de cima, o térreo, contava os segundos, e ela não demorou mais do que cinco. Porém, fazia anos que a frase reverberava na sua cabeça, mudava de sons e de sentidos e esperava o momento de ganhar sua forma definitiva na página em branco do computador. Uma única linha, e o universo inteiro entrava na tela. Leu com os olhos, releu em voz alta, várias vezes: era musical, de uma melodia encantatória, que vibrava dentro do peito e mexia com a humanidade impronunciável do leitor, capaz de fazer chorar até os corações mais empedernidos. Mas não era bela apenas em sua melodia; era também profunda, repleta de sentidos ocultos e, ainda assim, acessível a qualquer ser humano; suave como um espírito em paz, mas inconformada e enérgica o suficiente para fazer alguém mudar de vida, abandonando de uma só vez tudo o que possui. No seu rosto, uma lágrima correu demorada. Naqueles poucos segundos de escrita, ela, que nunca tinha sido escritora, havia adentrado a eternidade.
Ficou horas naquele enleio da vida que se transforma para sempre, que transcende o próprio limite, vai além do fim inexorável e deixa seu nome escrito nas mais altas esferas da arte. Lia, relia e relia de novo, incansável. Estava maravilhada com sua criação. Primeiro chorou com sua emotividade mais íntima, depois dançou embalada no ritmo daquele pequeno poema em prosa a que havia dado vida; e cantava, sentia no corpo toda a melodia das palavras aliada à percussão da goteira escondida. Dançou, cantou, festejou até desabar; por fim, arrastou o corpo à cama, agarrou o travesseiro e o acariciou como se acariciasse o próprio sentido da existência.
Passadas aquelas primeiras horas de graça, ela percebeu de súbito que sua missão ainda não havia terminado. Não bastava apenas escrever. Não podia esperar que sua obra fosse descoberta pela posteridade: ninguém mexeria nos seus arquivos, dela que nem era escritora, se não soubesse que tinha deixado gravada, escondida no labirinto das pastas que lotavam o HD, uma obra definitiva; era necessário lutar, fazer com que sua obra ressoasse aos quatro ventos, como todos os grandes profetas da história tinham lutado, enfrentando até, se fosse preciso, o desprezo completo de seus contemporâneos. A inspiração havia tocado seu espírito, mas exigia, em troca, a abdicação de seus afazeres terrenos, a dedicação completa à transmissão daquela mensagem das musas.
Na noite mal dormida, pensou muito em como faria pra que a sua obra reverberasse mundo afora e nunca mais fosse esquecida, mas, como é comum aos insones, não resolveu nada. No dia seguinte, correu para o computador temendo, em sua letargia, que tudo não tivesse passado de um sonho e que sua obra não estivesse lá. Quando ligou o aparelho e viu lá a sua frase intocada, suspirou emocionada e acariciou cada letra com seus olhos injetados; e deles rolaram duas lágrimas lentas. Então, sem querer pensar demais pra não atrapalhar a emergência de ação, abriu a caixa de e-mails, clicou em novo, em para, em todos os contatos; anexou o arquivo e enviou. Não era preciso nenhuma explicação. As pessoas ficariam tocadas, chorariam, talvez mudassem de casa ou de vida, deixassem empregos, buscassem de uma vez a própria felicidade... Ou, por outro lado, sofressem como nunca tinham sofrido diante daquela constatação tão aguda da falibilidade humana... De qualquer modo, enviariam respostas, cheias de palavras de admiração e agradecimentos. Ou será que, pelo contrário, ficariam acovardadas, tentando afastar de si uma verdade tão fatal e reluzente?
Esperou... Esperou... Esperou o dia todo diante da caixa de e-mails. Quando chegava uma mensagem nova, abria com a pressa dos suicidas, mas não era nunca uma resposta. Em seu lugar, propagandas de lojas, de bares, de bancos, agendamentos de jantares que não se realizariam e comunicados sem importância enviados por amigos de amigos. Só no final da noite é que os e-mails que tanto aguardava começaram a chegar, e chegaram até a manhã do dia seguinte – ainda que, ao todo, não passassem de meia-dúzia –, mas nenhum deles se furtava às felicitações pela nova e promissora carreira literária. Mas que mistura de sentimentos era essa que ela agora experimentava? Se, por um lado, sentia-se lisonjeada com os parabéns, por outro não gostava da ideia de carreira promissora. Ora, pois sua obra já estava escrita! Eles é que precisavam ler e reler até atingirem a sua trágica profundidade. Assim, ela se deu conta de que compreender a simplicidade não é tarefa para qualquer um.
Logo concluiu que não podia depender dos amigos. Era preciso buscar um público mais amplo. Abriu um blog. No título e no endereço, o seu nome – uma espécie de garantia de que, na posteridade, dariam o devido crédito à autora –; no texto, uma única frase. Em poucos minutos estava lá, disponível ao mundo inteiro, a sua obra. Enviou um novo e-mail aos amigos divulgando a novidade e, no dia seguinte, já havia dois seguidores: uma prima não muito próxima e alguém que se identificava como Aurora Poética e cuja foto exibia um crepúsculo. Aquilo, apesar dos indícios em contrário, restituiu sua confiança, mas só por alguns dias. Ao fim da mesma semana, seu blog continuava somente com os mesmos dois seguidores. Diante disso, ela quase desanimou, mas concluiu que precisava ter paciência; muitos escritores demoraram décadas para chegar ao sucesso. Mesmo assim, ela não podia apenas esperar; tinha que fazer alguma coisa pra que sua obra fosse, pelo menos, conhecida; um dia, a posteridade se encarregaria de lhe atribuir o devido valor. De imediato, era preciso abordar outros leitores; fazer a sua arte ganhar novos terrenos. Publicaria um livro.
Visitou saites de editoras. Todas lhe apareceram com ótimas propostas, com reduções de preço para livros de poucas páginas ou pagamento de dez por cento de direitos autorais sobre o preço de venda. Mas ela tinha consciência de que seu livro não venderia sem uma boa distribuição, e isso era o que faltava a todas elas. Assim, tomou uma decisão que lhe pareceu quase tão inspirada quanto a frase que havia escrito: enviaria seu arquivo original a todas as editoras e esperaria uma proposta à altura de sua obra. No dia seguinte, sua caixa de mensagens estava lotada: todas as editoras, sem exceção, tinham respondido ao seu e-mail, porém a maioria delas apenas repetia os critérios de publicação que estavam em seus saites; a única diferença entre essas mensagens e as condições que tinha lido no dia anterior era que os e-mails finalizavam sempre com elogios à sua obra e a expressão de uma vontade padronizada de estabelecer uma parceria. Só um entre eles se diferenciava dos outros: começava com os cumprimentos e, em seguida, expressava igual admiração pela possibilidade de publicar um livro de uma única página, o que, segundo a mensagem, era absolutamente revolucionário nos meios editoriais e faria sucesso junto ao público ávido por novidades.
Era tudo o que ela esperava. Nos meses seguintes, as negociações prosseguiram, o livro foi publicado e chegou, enfim, a data do lançamento. A editora, que não havia poupado esforços para divulgá-lo, tinha agora na página inicial do saite uma imagem de tela inteira com a capa do livro, e todos os grandes órgãos de imprensa do país haviam recebido convites. Como previsto, o evento foi um sucesso. Eis o que faz uma boa divulgação, disse a representante da editora, o que era, decerto, uma brincadeira, pois ela não negava o talento daquela que chamava de “a nossa maior escritora viva”. As duas, depois de sucessivas edições do livro, ainda seriam amigas íntimas durante muitos anos e, nesse longo tempo, trocariam por e-mail confidências e impressões sobre tudo: a vida, a morte, os homens, a literatura... Mas, por enquanto, elas apenas sorriam satisfeitas com seus trabalhos, enquanto a autora rabiscava intermináveis autógrafos na parte interna da capa, pra não estragar a única folha do miolo do livro, aquela que estampava em fonte Garamond, itálico, no centro da página, a obra de sua vida.
Na mesma semana, repórteres acorreram à sua casa, jornais e revistas registraram o lançamento de um volume que mudaria o mercado editorial, e alguns críticos já preconizavam o início de uma nova era literária, em que logo predominariam os aforismos, segundo eles o gênero literário da nova contemporaneidade. Em questão de dias, a autora estava consagrada, famosa, ganhava dinheiro com literatura como poucos, era elogiada por acadêmicos e populares e assinava autógrafos sem parar. Vivia sua consagração, e percebeu que seu talento ultrapassava o dos grandes escritores desprezados em suas épocas, pois ela já havia angariado até a difícil simpatia do público de seu tempo, o que aumentava ainda mais a probabilidade de que a posteridade não a esquecesse. Mesmo assim, era necessário estar segura. Quantos escritores haviam caído no abismo sem fundo do esquecimento, seus livros desaparecido para sempre no ostracismo perpétuo, obras que, apesar de sua importância artística, tinham sido expulsas da memória de todos? Precisava evitar que isso acontecesse com a sua. Se o motivo pelo qual respirava era manter viva a sua literatura, lutaria por ela com todos os meios possíveis.
As inúmeras edições se esgotavam rápido nas prateleiras, e a editora queria saber quando leria seu trabalho novo. Não haverá trabalho novo; minha obra já está escrita, respondia ela sem nenhum pudor. E propunha, com a confiança dos clássicos: quem sabe reeditamos o livro outra vez... Negava-se a escrever outra coisa, a não ser, é claro, que outra frase reverberasse insistente em sua cabeça como a primeira, mas isso não estava nos seus planos. Criar, cuidar, nutrir e levar ao mundo duas frases e ser responsável pelas duas era demais para uma pessoa só. Devia lutar pela obra que tinha e não pela que não tinha.
Com o dinheiro que havia ganho com as vendas do primeiro livro, se mudou do porão para uma casa nova, mas continuava alugando o quarto subterrâneo, pois era lá que se abrigava do mundo quando precisava pensar, como se as paredes frias, o teto baixo, a luz fraca e aquela goteira persistente ajudassem a sentir que a vida era curta, que o tempo passava depressa e que era necessário agir rápido. Era lá que tomava as decisões importantes da sua vida, e foi lá que pensou que só os livros não salvariam a lembrança de sua obra no futuro; ela precisava estar na boca das pessoas, nas conversas de rua, e, para isso, era necessário que a obra ressoasse na cabeça dos leitores de tal forma que eles não pudessem esquecê-la por muito tempo. Procurou, então, a editora pedindo que ela encomendasse milhares de outdoors para serem espalhados pelas principais cidades do país, com a obra na íntegra. A desculpa era a propaganda do livro, e a editora, é claro, relutou, pois isso entregava de uma vez ao público todo o conteúdo da publicação. Por fim, a autora conseguiu convencê-la – com argumentos que giravam em torno da nostalgia do livro nos primeiros tempos de internet – de que as pessoas ficariam ainda mais afoitas para lerem a obra em seu suporte original.
Só quando todos os outdoors já estavam expostos é que ela viu quanta gente passava pela rua sem olhar pra cima. Será que essas pessoas já tinham lido sua obra ou seriam as responsáveis por ela, no futuro, cair para sempre no ostracismo da memória, distraindo os outros com conversas fúteis e fazendo com que eles, pouco a pouco, esquecessem do que era culturalmente importante? Sentiu um calafrio e entrou numa verdadeira crise nervosa quando, ao desviar o olhar de suas obras espalhadas, vislumbrou ao longe um outdoor velho sendo coberto por um novo cartaz. Seria esse também o destino de todos os exemplares da sua obra? Se fosse, só significava que não podia depender dos cartazes. Voltou ao quarto antigo, tocou o frio das paredes, escutou o ritmo da goteira e concluiu que todos os dados eletrônicos e todo o papel podia se perder. O importante era – e como não tinha se dado conta disso antes? – o suporte. Precisava gravar sua obra em um material que resistisse ao tempo. Lembrou, então, que perto da praia existia uma rocha de mais de cinco metros de altura, que estava lá desde antes de o local ser povoado. Era a solução definitiva. Sua obra não seria jamais esquecida. Dali a milênios os frequentadores da praia e a população das embarcações que chegariam pelo mar ainda a leriam. Estava decidida: entalharia sua obra na pedra.
Não foi difícil conseguir um entalhador, porém teria trabalho para convencer as autoridades da importância da gravura. Isso demandou de sua parte uma dedicação considerável para criar abaixo-assinados eletrônicos de leitores e simpatizantes da ideia. Por fim, os abaixo-assinados cumpriram a sua função: um vereador populista encaminhou o projeto à câmara, e o entalhe foi aprovado. Na inauguração, estavam alguns vereadores, o prefeito municipal e uma multidão de fãs vindos de todas as partes do país, que não paravam de lhe pedir autógrafos com seus exemplares de uma única folha. Afinal, ela era ainda uma celebridade. No rosto da autora, o sorriso mais sincero de sua vida. Estava convencida de que o mundo jamais a esqueceria. Ela até ria ao pensar nisso que tivera que publicar um livro para um dia ser imortalizada numa pedra; mas isso não importava; o que importava era que sua obra estava à disposição de todos para uma leitura, ao mesmo tempo, rápida e profunda, divertida e angustiante. Podiam descer sobre sua obra todas as tempestades: seus livros desaparecerem, seu blog ser desativado, os outdoors serem cobertos por novos cartazes, mas ninguém nunca tiraria aquela inscrição da rocha, tão dura quanto indelével.
O que tinha na alma ao voltar para o porão era uma sensação de missão cumprida, de que já poderia adentrar a eternidade em paz. E foi o que fez apenas seis dias depois: morreu enquanto dormia, com o sorriso leve de um iogue que não apenas conheceu a fragilidade de tudo o que vive, mas também superou a irreversibilidade do tempo pela visão conciliadora da eternidade. Milhares de leitores e fãs de todo o país acorreram ao enterro, e teve até quem ouvisse gente chorando e lamentando em outras línguas, visto que o livro também já havia sido traduzido em vários países, sempre com um sucesso gigantesco: uma multidão que repetia como um hino as palavras definitivas deixadas pela escritora. E ninguém naquele momento duvidava que a sua obra sobreviveria por todos os séculos vindouros.
Mas só o curso longo do tempo pode provar as verdades que se dizem em momentos de inspiração, e a eternidade, para o indivíduo, às vezes se transforma meramente no que ultrapassa o tempo da vida, o que, em comparação com a verdadeira eternidade, aquela que dura para sempre, não é lá muito tempo. Duzentos anos depois, os outdoors da escritora não tinham sido apenas trocados várias vezes por todo tipo de publicidade, mas haviam mesmo desaparecido para dar lugar aos anúncios eletrônicos; seus livros foram sumindo, como sumiu a maioria dos livros até hoje, e os últimos exemplares se tornaram raridades de colecionador até desaparecerem também, embora seja evidente que as antigas bibliotecas tenham guardado os exemplares que, dois séculos antes, iam e vinham em empréstimos intermináveis; o blog eu mesmo acabei achando na rede flutuante de informações, mas só porque procurei pelo nome da autora depois que tomei conhecimento da sua existência; na ocasião, o último acesso que o blog registrava tinha sido feito há mais de quarenta anos, e é provável que fosse apenas alguém que tivesse se enganado de endereço.
O que me deixa intrigado é o completo esquecimento em que caiu a escritora de uma frase célebre e de um verdadeiro best-seller de seu tempo, sendo necessário que eu pesquisasse uma frase encontrada por acidente numa pedra pra que descobrisse toda essa história. A vida da autora mais prestigiada de seu tempo e sua obra tão sublime quanto inigualável foram totalmente apagadas da memória de nossa época, a tal ponto que mesmo os funcionários do centro global de documentação não conseguiram me dar qualquer pista para a origem da inscrição na rocha. Foi preciso que, com minha licença de pesquisador, eu recorresse aos arquivos ocultos da rede flutuante, quero dizer aos e-mails enviados pela autora à editora pra saber dos caminhos por que passou uma obra que, sem dúvida, está entre as mais divulgadas da história. Mas como então o esquecimento? Como a escritora mais importante de uma época pôde ser absorvida pelo anonimato dos séculos? Talvez a resposta para esse enigma esteja lá, ao redor daquela mesma pedra; não na areia com que às vezes o vento cobre as letras entalhadas na rocha e que pode ser removida sem qualquer dificuldade, mas ao redor da pedra, na praia. Pois quem olhar com atenção para aquelas areias notará que, embora a rocha conserve intacta a inscrição entalhada há dois séculos, as inúmeras pessoas que passam por ali todos os dias parecem nem notar a sua existência.
Categoria Crônica – Olhares cruzados, de Ronaldo Velho Bueno e Jennifer Buaer Eme
Mesmo longe da vida do interior, onde cresci e passei a juventude, gostava de manter alguns de meus velhos hábitos. Cultivava flores do campo em pequenos vasos espalhados pelas janelas, que me faziam lembrar a antiga casa de meus pais. Agora em minha em casa, as janelas se tornaram meu lugar favorito, especialmente aquela que tinha vista para a rua principal, lugar movimentado, com carros, ônibus e pessoas.
Para passar o tempo, aproveitei o calor de fim de tarde, regando aqueles pequenos pontos coloridos que sobressaíam dos vasos cor de terra. Ao entrar na sala novamente, percebi que ela estava mais iluminada do que quando havia saído. Com uma xícara de café entre as mãos, me encaminhei até a janela à frente, seguindo como se estivesse hipnotizada pelo pôr-do-sol que começava a se desenhar no horizonte. Meus olhos percorreram a paisagem por inteiro, e os feixes luminosos invadiram minha retina ao passarem entre os prédios.
*
Eram mais dúvidas do que certezas; o ronco do motor do ônibus em que eu estava era o único sinal que ainda me atrelava àquele emaranhado de aço e concreto que costumavam chamar de cidade. Os veículos amontoavam-se como abelhas cinzentas, sem colmeia, sem destino e sem mel. À sua volta, comerciantes prometiam vender da esperança à alegria, enquanto mulheres carregavam crianças penduradas como sacolas. O céu alaranjado queimava-me os olhos, enquanto um velho sol insistia em não morrer. Aquele calor angustiante era o único espectro que tornava visível as mazelas que todos se esforçavam para esquecer: os gritos, o choro e as sirenes, além das moedas que repicavam em calçadas sujas, para a festa de meninos que estavam presos sem o saber. Se o cheiro da fuligem ainda servia para completar essa minha náusea urbana, ao menos a lembrança do ensopado de ervilhas de minha tia consolava essas desesperanças.
*
Voltei os olhos para a rua, onde o cotidiano levava as pessoas para seus destinos. Fiquei me perguntando qual seria o traçado de cada um. O som abafado que vinha de fora entrava em meus ouvidos como melodia regida por aquelas vidas. Os casais de mãos dadas, o sorriso da mãe ao escutar as histórias do pequeno filho, o colorido dos cabelos das jovens que voltavam da escola se faziam para mim nostalgia que embalava o adormecer calmo daquele dia. E embalava também minha esperança de que esse momento se eternizasse em mim, assim como as doces lembranças que eu tinha da vida tranquila do interior.
Acompanhar os finais de tarde na janela, me consolavam. Assim, eu podia me sentir, ao mesmo tempo, no meu próprio universo e inserida no universo peculiar que era a vida urbana. Um sorriso espontâneo se formava em meus lábios. Decidi, então, ficar mais um tempo ali, parada admirando a vista, misturada à paisagem.
*
A lentidão do trânsito fazia com que o ônibus se arrastasse pela larga rua como uma serpente que busca por seu covil. Era incapaz de causar inveja ao enferrujado semáforo, que permanecia sempre imóvel, piscando suas luzes de forma preguiçosa, regendo a vida apressada daquelas pessoas. O sinal vermelho significou nova interrupção no trajeto do veículo. Cansado de aborrecer-me com aquele cenário sem vida e sem cor, voltei os olhos ao céu, na esperança de encontrar alguma águia de brandas asas que pudesse me levar dali. Aceitaria o lugar que fosse, inclusive a cidadezinha sem nome onde passei minha infância e de onde fugi aos dezessete anos.
*
Se nome não possuía, ao menos uma lembrança de vida ainda deveria morar por lá.
Foi durante essa abstração de meu pensamento que me deparei com uma imagem nunca antes vista em todos esses meus anos de metrópole. Uma imponente estrutura de concreto erguia-se sobre todos os demais edifícios. Suas curvas faziam-lhe parecer um projeto insustentável, pois seu topo era horizontal e de maior tamanho do que sua base. Assemelhava-se a um grande número sete desenhado em estilo modernista. O mesmo formigamento intelectual que sinto ao desfrutar de um livro tomou-me conta enquanto eu admirava aquela construção. Pelo breve momento que se estendeu pela eternidade do sinal fechado, senti-me traído pelas musas da sabedoria. Fui mergulhado no mais profundo sentimento de incapacidade, na escuridão da ignorância. Como pode uma imagem dessas, plena manifestação da liberdade, ter-me passado despercebida até aquele dia? Somente não sucumbi à dúvida por não conseguir estruturá-la naquele instante. Eu presenciava, ao certo, o nascimento de um novo Niemeyer. Meus olhos não tinham outra reação exceto o exercício do diálogo imagético.
*
A luz que refletia nas vidraças dos prédios e nas janelas dos veículos criava espectros a minha frente, como se tudo fosse um grande cristal. O gosto do café em minha boca, a imagem do sol em seu adormecer, as linhas desenhadas pelo destino, o conjunto dos acontecimentos… Tudo fazia eu me sentir leve.
O contexto formado por todos aqueles elementos me engoliu de tal forma que eu não percebia o tempo passar. Tinha a impressão de que cada segundo durava uma eternidade, mas que esse era o tempo suficiente para sentir os raios de sol escorrerem entre meus cabelos, cobrirem com seu calor meu corpo ainda marcado de rua, de vida, de cotidiano, inclusive dos que não me pertenciam. Esperava o tempo passar, contando os goles de café. Só sairia da janela quando a xícara estivesse vazia.
*
Minha fruição só foi interrompida ao me deparar com um radiante contorno humano em uma de suas fulgurantes janelas. De aparência frágil, contrastava com aquela estrutura, ao regar suas flores enquanto dirigia seu olhar ao pôr-do-sol. Era a primeira fagulha de vida que eu via em meses. Saberia essa pobre dama, subjugada à imponência do edifício, que meus olhos perpassavam aquela estrutura, e não seu belo rosto? Naquele momento, teria eu o conhecimento de que meu pobre coração tecia o olhar voltado diretamente ao dela, e não às formas curvilineares daquele projeto arquitetônico de anônima autoria? Não tenho esperança de obter essa resposta; seu jeito único de admirar o horizonte soube roubar minha atenção.
*
E então fez-se o momento. O café acabou, e o sol já desaparecia no horizonte. Era hora de sair do conto e voltar para casa. Uma sensação estranha me invadiu quando dei o primeiro passo e me posicionei de costas para a abertura na parede que havia me proporcionado a experiência mais autêntica que eu poderia ter. Nem na casa do sítio com todo o pomar em volta, com suas planícies servindo de berço, nem na calmaria da vida simples que eu adorava levar havia presenciado tal momento. Aquele, com certeza, era o pôr-do-sol mais cheio de esperança que vi. Senti que, ao deixar o lugar, uma parte de mim ficou presa nele. E ao sair incompleta do choque com o pôr-do-sol percebi que já não podia mais viver sem aquele espetáculo. Voltei a construir minha rotina, mas com a certeza de que estaria presente no próximo crepúsculo, inserida novamente na paisagem, admirando novamente o céu laranja entre os prédios e compondo a vida das pessoas sem nomes que passavam pelo meu caminho sem ao menos saber que eu estava lá, tentando ver o desenho embaixo dos seus pés.
*
O mesmo verde do ensopado de minha tia sinalizou a liberdade para os veículos seguirem seus destinos. E eu, cativo da prisão daquele olhar, senti um amargo desgosto ao ver o ônibus mover-se. Ao reiniciar seu trajeto através do imenso rio de asfalto, um novo ângulo de vista desfez a excitação de meu intelecto. Visto frontalmente, o ousado edifício fez-se dois. A ilusão de ótica que enganou a minha subjetividade acabou também por sepultar o novo Niemeyer, antes mesmo de seu florescer. O enigmático vulto na janela, por sua vez, deu as costas ao pôr-do-sol e voltou para o interior de seu apartamento. Nem mais uma força era capaz de prender-me àquele cenário. Qual seria seu nome? Chamei-a de Águia; a ave formosa que me levou para casa, enquanto um último raio de sol chicoteava o topo das torres de concreto, dando lugar à noite que se despia em céu estrelado. E não mais a vi.
Bergamin é natural de Bento Gonçalves e é autor de diversos contos e crônicas, entre eles O Sino do Campanário, adaptado para o cinema; da novela Cela de Papel; do livro de poemas Do Útero do Mundo; e do livro infanto-juvenil A Ilha Mágica. Vencedor de prêmios literários, o autor também ministra palestras, oficinas e participa de Feiras do Livro.
A cena musical da noite ficará a cargo do acústico Magic Pie, com os músicos Dudu Heberle e Gustavo Colombo. “Este é objetivo: integrar áreas como literatura e música propiciando diálogo com escritores locais e regionais”, destaca a coordenadora do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi, Taisa Verdi. A Secretaria de Educação, Cultura e Desporto e a Biblioteca Pública Municipal Érico Veríssimo também são promotoras da atividade.
Contos e Crônicas
Na mesma noite serão entregues as premiações aos vencedores do 1º Concurso de Contos e Crônicas de Flores da Cunha. A escolha das obras vencedoras ocorreu no dia 12, quando os jurados se reuniram para avaliação dos trabalhos inscritos nas categorias Conto e Crônica. Foram 36 inscritos de Flores da Cunha, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Antônio Prado, Farroupilha, Canela e Porto Alegre.
Os vencedores da categoria Conto foram Douglas Ceccagno (Bento Gonçalves), com o título Itinerário de uma obra (1º); Ismael Sebben (Bento), com Esmola dos deuses (2º) e Pablo Antunes (Canela), com O pai que não foi (3º). Os jurados deram Menção Honrosa para Ronaldo Albé Lucena (Porto Alegre) com o título O segundo dia.
Na categoria Crônica apenas um trabalho foi escolhido, o de Ronaldo Velho Bueno e Jennifer Buaer Eme (Caxias do Sul) – Olhares Cruzados. O Concurso teve apoio da College Yes Cultural, G4 Impressão Digital, Vitrine Propaganda e Marketing, Almanaque Cultural Livros e Revistas, Associação dos Produtores de Arte e Cultura (Apac) e Editora Correa.
A íntegra dasobras premiadas
Categoria Conto – Itinerário de uma obra, de Douglas Ceccagno
A obra se constituía de uma única frase. Assim é que sua autora esperava ser eternizada: não por uma série interminável de livros, montanhas de papel que acabariam abandonadas ao pó e às traças de bibliotecas escuras, mas por uma sentença breve, simples, ainda que carregada da essência trágica do ser humano, devastadora em cada palavra, ao mesmo tempo chocante na sua compreensão da finitude humana e repleta de amor pela vida. Afinal, não era pelas máximas dos filósofos, pelos aforismos escondidos em longos romances, pelas frases de efeito ditas em meio a horas inacabáveis de peças de teatro, pelas chaves de ouro dos poetas que a fama de seus autores atravessava os séculos? Sua obra seria um único aforismo, belo ainda que sem enfeites de estilo, direto e pungente como toda grande literatura.
Sentou e escreveu. Em algum lugar, uma goteira que vinha do andar de cima, o térreo, contava os segundos, e ela não demorou mais do que cinco. Porém, fazia anos que a frase reverberava na sua cabeça, mudava de sons e de sentidos e esperava o momento de ganhar sua forma definitiva na página em branco do computador. Uma única linha, e o universo inteiro entrava na tela. Leu com os olhos, releu em voz alta, várias vezes: era musical, de uma melodia encantatória, que vibrava dentro do peito e mexia com a humanidade impronunciável do leitor, capaz de fazer chorar até os corações mais empedernidos. Mas não era bela apenas em sua melodia; era também profunda, repleta de sentidos ocultos e, ainda assim, acessível a qualquer ser humano; suave como um espírito em paz, mas inconformada e enérgica o suficiente para fazer alguém mudar de vida, abandonando de uma só vez tudo o que possui. No seu rosto, uma lágrima correu demorada. Naqueles poucos segundos de escrita, ela, que nunca tinha sido escritora, havia adentrado a eternidade.
Ficou horas naquele enleio da vida que se transforma para sempre, que transcende o próprio limite, vai além do fim inexorável e deixa seu nome escrito nas mais altas esferas da arte. Lia, relia e relia de novo, incansável. Estava maravilhada com sua criação. Primeiro chorou com sua emotividade mais íntima, depois dançou embalada no ritmo daquele pequeno poema em prosa a que havia dado vida; e cantava, sentia no corpo toda a melodia das palavras aliada à percussão da goteira escondida. Dançou, cantou, festejou até desabar; por fim, arrastou o corpo à cama, agarrou o travesseiro e o acariciou como se acariciasse o próprio sentido da existência.
Passadas aquelas primeiras horas de graça, ela percebeu de súbito que sua missão ainda não havia terminado. Não bastava apenas escrever. Não podia esperar que sua obra fosse descoberta pela posteridade: ninguém mexeria nos seus arquivos, dela que nem era escritora, se não soubesse que tinha deixado gravada, escondida no labirinto das pastas que lotavam o HD, uma obra definitiva; era necessário lutar, fazer com que sua obra ressoasse aos quatro ventos, como todos os grandes profetas da história tinham lutado, enfrentando até, se fosse preciso, o desprezo completo de seus contemporâneos. A inspiração havia tocado seu espírito, mas exigia, em troca, a abdicação de seus afazeres terrenos, a dedicação completa à transmissão daquela mensagem das musas.
Na noite mal dormida, pensou muito em como faria pra que a sua obra reverberasse mundo afora e nunca mais fosse esquecida, mas, como é comum aos insones, não resolveu nada. No dia seguinte, correu para o computador temendo, em sua letargia, que tudo não tivesse passado de um sonho e que sua obra não estivesse lá. Quando ligou o aparelho e viu lá a sua frase intocada, suspirou emocionada e acariciou cada letra com seus olhos injetados; e deles rolaram duas lágrimas lentas. Então, sem querer pensar demais pra não atrapalhar a emergência de ação, abriu a caixa de e-mails, clicou em novo, em para, em todos os contatos; anexou o arquivo e enviou. Não era preciso nenhuma explicação. As pessoas ficariam tocadas, chorariam, talvez mudassem de casa ou de vida, deixassem empregos, buscassem de uma vez a própria felicidade... Ou, por outro lado, sofressem como nunca tinham sofrido diante daquela constatação tão aguda da falibilidade humana... De qualquer modo, enviariam respostas, cheias de palavras de admiração e agradecimentos. Ou será que, pelo contrário, ficariam acovardadas, tentando afastar de si uma verdade tão fatal e reluzente?
Esperou... Esperou... Esperou o dia todo diante da caixa de e-mails. Quando chegava uma mensagem nova, abria com a pressa dos suicidas, mas não era nunca uma resposta. Em seu lugar, propagandas de lojas, de bares, de bancos, agendamentos de jantares que não se realizariam e comunicados sem importância enviados por amigos de amigos. Só no final da noite é que os e-mails que tanto aguardava começaram a chegar, e chegaram até a manhã do dia seguinte – ainda que, ao todo, não passassem de meia-dúzia –, mas nenhum deles se furtava às felicitações pela nova e promissora carreira literária. Mas que mistura de sentimentos era essa que ela agora experimentava? Se, por um lado, sentia-se lisonjeada com os parabéns, por outro não gostava da ideia de carreira promissora. Ora, pois sua obra já estava escrita! Eles é que precisavam ler e reler até atingirem a sua trágica profundidade. Assim, ela se deu conta de que compreender a simplicidade não é tarefa para qualquer um.
Logo concluiu que não podia depender dos amigos. Era preciso buscar um público mais amplo. Abriu um blog. No título e no endereço, o seu nome – uma espécie de garantia de que, na posteridade, dariam o devido crédito à autora –; no texto, uma única frase. Em poucos minutos estava lá, disponível ao mundo inteiro, a sua obra. Enviou um novo e-mail aos amigos divulgando a novidade e, no dia seguinte, já havia dois seguidores: uma prima não muito próxima e alguém que se identificava como Aurora Poética e cuja foto exibia um crepúsculo. Aquilo, apesar dos indícios em contrário, restituiu sua confiança, mas só por alguns dias. Ao fim da mesma semana, seu blog continuava somente com os mesmos dois seguidores. Diante disso, ela quase desanimou, mas concluiu que precisava ter paciência; muitos escritores demoraram décadas para chegar ao sucesso. Mesmo assim, ela não podia apenas esperar; tinha que fazer alguma coisa pra que sua obra fosse, pelo menos, conhecida; um dia, a posteridade se encarregaria de lhe atribuir o devido valor. De imediato, era preciso abordar outros leitores; fazer a sua arte ganhar novos terrenos. Publicaria um livro.
Visitou saites de editoras. Todas lhe apareceram com ótimas propostas, com reduções de preço para livros de poucas páginas ou pagamento de dez por cento de direitos autorais sobre o preço de venda. Mas ela tinha consciência de que seu livro não venderia sem uma boa distribuição, e isso era o que faltava a todas elas. Assim, tomou uma decisão que lhe pareceu quase tão inspirada quanto a frase que havia escrito: enviaria seu arquivo original a todas as editoras e esperaria uma proposta à altura de sua obra. No dia seguinte, sua caixa de mensagens estava lotada: todas as editoras, sem exceção, tinham respondido ao seu e-mail, porém a maioria delas apenas repetia os critérios de publicação que estavam em seus saites; a única diferença entre essas mensagens e as condições que tinha lido no dia anterior era que os e-mails finalizavam sempre com elogios à sua obra e a expressão de uma vontade padronizada de estabelecer uma parceria. Só um entre eles se diferenciava dos outros: começava com os cumprimentos e, em seguida, expressava igual admiração pela possibilidade de publicar um livro de uma única página, o que, segundo a mensagem, era absolutamente revolucionário nos meios editoriais e faria sucesso junto ao público ávido por novidades.
Era tudo o que ela esperava. Nos meses seguintes, as negociações prosseguiram, o livro foi publicado e chegou, enfim, a data do lançamento. A editora, que não havia poupado esforços para divulgá-lo, tinha agora na página inicial do saite uma imagem de tela inteira com a capa do livro, e todos os grandes órgãos de imprensa do país haviam recebido convites. Como previsto, o evento foi um sucesso. Eis o que faz uma boa divulgação, disse a representante da editora, o que era, decerto, uma brincadeira, pois ela não negava o talento daquela que chamava de “a nossa maior escritora viva”. As duas, depois de sucessivas edições do livro, ainda seriam amigas íntimas durante muitos anos e, nesse longo tempo, trocariam por e-mail confidências e impressões sobre tudo: a vida, a morte, os homens, a literatura... Mas, por enquanto, elas apenas sorriam satisfeitas com seus trabalhos, enquanto a autora rabiscava intermináveis autógrafos na parte interna da capa, pra não estragar a única folha do miolo do livro, aquela que estampava em fonte Garamond, itálico, no centro da página, a obra de sua vida.
Na mesma semana, repórteres acorreram à sua casa, jornais e revistas registraram o lançamento de um volume que mudaria o mercado editorial, e alguns críticos já preconizavam o início de uma nova era literária, em que logo predominariam os aforismos, segundo eles o gênero literário da nova contemporaneidade. Em questão de dias, a autora estava consagrada, famosa, ganhava dinheiro com literatura como poucos, era elogiada por acadêmicos e populares e assinava autógrafos sem parar. Vivia sua consagração, e percebeu que seu talento ultrapassava o dos grandes escritores desprezados em suas épocas, pois ela já havia angariado até a difícil simpatia do público de seu tempo, o que aumentava ainda mais a probabilidade de que a posteridade não a esquecesse. Mesmo assim, era necessário estar segura. Quantos escritores haviam caído no abismo sem fundo do esquecimento, seus livros desaparecido para sempre no ostracismo perpétuo, obras que, apesar de sua importância artística, tinham sido expulsas da memória de todos? Precisava evitar que isso acontecesse com a sua. Se o motivo pelo qual respirava era manter viva a sua literatura, lutaria por ela com todos os meios possíveis.
As inúmeras edições se esgotavam rápido nas prateleiras, e a editora queria saber quando leria seu trabalho novo. Não haverá trabalho novo; minha obra já está escrita, respondia ela sem nenhum pudor. E propunha, com a confiança dos clássicos: quem sabe reeditamos o livro outra vez... Negava-se a escrever outra coisa, a não ser, é claro, que outra frase reverberasse insistente em sua cabeça como a primeira, mas isso não estava nos seus planos. Criar, cuidar, nutrir e levar ao mundo duas frases e ser responsável pelas duas era demais para uma pessoa só. Devia lutar pela obra que tinha e não pela que não tinha.
Com o dinheiro que havia ganho com as vendas do primeiro livro, se mudou do porão para uma casa nova, mas continuava alugando o quarto subterrâneo, pois era lá que se abrigava do mundo quando precisava pensar, como se as paredes frias, o teto baixo, a luz fraca e aquela goteira persistente ajudassem a sentir que a vida era curta, que o tempo passava depressa e que era necessário agir rápido. Era lá que tomava as decisões importantes da sua vida, e foi lá que pensou que só os livros não salvariam a lembrança de sua obra no futuro; ela precisava estar na boca das pessoas, nas conversas de rua, e, para isso, era necessário que a obra ressoasse na cabeça dos leitores de tal forma que eles não pudessem esquecê-la por muito tempo. Procurou, então, a editora pedindo que ela encomendasse milhares de outdoors para serem espalhados pelas principais cidades do país, com a obra na íntegra. A desculpa era a propaganda do livro, e a editora, é claro, relutou, pois isso entregava de uma vez ao público todo o conteúdo da publicação. Por fim, a autora conseguiu convencê-la – com argumentos que giravam em torno da nostalgia do livro nos primeiros tempos de internet – de que as pessoas ficariam ainda mais afoitas para lerem a obra em seu suporte original.
Só quando todos os outdoors já estavam expostos é que ela viu quanta gente passava pela rua sem olhar pra cima. Será que essas pessoas já tinham lido sua obra ou seriam as responsáveis por ela, no futuro, cair para sempre no ostracismo da memória, distraindo os outros com conversas fúteis e fazendo com que eles, pouco a pouco, esquecessem do que era culturalmente importante? Sentiu um calafrio e entrou numa verdadeira crise nervosa quando, ao desviar o olhar de suas obras espalhadas, vislumbrou ao longe um outdoor velho sendo coberto por um novo cartaz. Seria esse também o destino de todos os exemplares da sua obra? Se fosse, só significava que não podia depender dos cartazes. Voltou ao quarto antigo, tocou o frio das paredes, escutou o ritmo da goteira e concluiu que todos os dados eletrônicos e todo o papel podia se perder. O importante era – e como não tinha se dado conta disso antes? – o suporte. Precisava gravar sua obra em um material que resistisse ao tempo. Lembrou, então, que perto da praia existia uma rocha de mais de cinco metros de altura, que estava lá desde antes de o local ser povoado. Era a solução definitiva. Sua obra não seria jamais esquecida. Dali a milênios os frequentadores da praia e a população das embarcações que chegariam pelo mar ainda a leriam. Estava decidida: entalharia sua obra na pedra.
Não foi difícil conseguir um entalhador, porém teria trabalho para convencer as autoridades da importância da gravura. Isso demandou de sua parte uma dedicação considerável para criar abaixo-assinados eletrônicos de leitores e simpatizantes da ideia. Por fim, os abaixo-assinados cumpriram a sua função: um vereador populista encaminhou o projeto à câmara, e o entalhe foi aprovado. Na inauguração, estavam alguns vereadores, o prefeito municipal e uma multidão de fãs vindos de todas as partes do país, que não paravam de lhe pedir autógrafos com seus exemplares de uma única folha. Afinal, ela era ainda uma celebridade. No rosto da autora, o sorriso mais sincero de sua vida. Estava convencida de que o mundo jamais a esqueceria. Ela até ria ao pensar nisso que tivera que publicar um livro para um dia ser imortalizada numa pedra; mas isso não importava; o que importava era que sua obra estava à disposição de todos para uma leitura, ao mesmo tempo, rápida e profunda, divertida e angustiante. Podiam descer sobre sua obra todas as tempestades: seus livros desaparecerem, seu blog ser desativado, os outdoors serem cobertos por novos cartazes, mas ninguém nunca tiraria aquela inscrição da rocha, tão dura quanto indelével.
O que tinha na alma ao voltar para o porão era uma sensação de missão cumprida, de que já poderia adentrar a eternidade em paz. E foi o que fez apenas seis dias depois: morreu enquanto dormia, com o sorriso leve de um iogue que não apenas conheceu a fragilidade de tudo o que vive, mas também superou a irreversibilidade do tempo pela visão conciliadora da eternidade. Milhares de leitores e fãs de todo o país acorreram ao enterro, e teve até quem ouvisse gente chorando e lamentando em outras línguas, visto que o livro também já havia sido traduzido em vários países, sempre com um sucesso gigantesco: uma multidão que repetia como um hino as palavras definitivas deixadas pela escritora. E ninguém naquele momento duvidava que a sua obra sobreviveria por todos os séculos vindouros.
Mas só o curso longo do tempo pode provar as verdades que se dizem em momentos de inspiração, e a eternidade, para o indivíduo, às vezes se transforma meramente no que ultrapassa o tempo da vida, o que, em comparação com a verdadeira eternidade, aquela que dura para sempre, não é lá muito tempo. Duzentos anos depois, os outdoors da escritora não tinham sido apenas trocados várias vezes por todo tipo de publicidade, mas haviam mesmo desaparecido para dar lugar aos anúncios eletrônicos; seus livros foram sumindo, como sumiu a maioria dos livros até hoje, e os últimos exemplares se tornaram raridades de colecionador até desaparecerem também, embora seja evidente que as antigas bibliotecas tenham guardado os exemplares que, dois séculos antes, iam e vinham em empréstimos intermináveis; o blog eu mesmo acabei achando na rede flutuante de informações, mas só porque procurei pelo nome da autora depois que tomei conhecimento da sua existência; na ocasião, o último acesso que o blog registrava tinha sido feito há mais de quarenta anos, e é provável que fosse apenas alguém que tivesse se enganado de endereço.
O que me deixa intrigado é o completo esquecimento em que caiu a escritora de uma frase célebre e de um verdadeiro best-seller de seu tempo, sendo necessário que eu pesquisasse uma frase encontrada por acidente numa pedra pra que descobrisse toda essa história. A vida da autora mais prestigiada de seu tempo e sua obra tão sublime quanto inigualável foram totalmente apagadas da memória de nossa época, a tal ponto que mesmo os funcionários do centro global de documentação não conseguiram me dar qualquer pista para a origem da inscrição na rocha. Foi preciso que, com minha licença de pesquisador, eu recorresse aos arquivos ocultos da rede flutuante, quero dizer aos e-mails enviados pela autora à editora pra saber dos caminhos por que passou uma obra que, sem dúvida, está entre as mais divulgadas da história. Mas como então o esquecimento? Como a escritora mais importante de uma época pôde ser absorvida pelo anonimato dos séculos? Talvez a resposta para esse enigma esteja lá, ao redor daquela mesma pedra; não na areia com que às vezes o vento cobre as letras entalhadas na rocha e que pode ser removida sem qualquer dificuldade, mas ao redor da pedra, na praia. Pois quem olhar com atenção para aquelas areias notará que, embora a rocha conserve intacta a inscrição entalhada há dois séculos, as inúmeras pessoas que passam por ali todos os dias parecem nem notar a sua existência.
Categoria Crônica – Olhares cruzados, de Ronaldo Velho Bueno e Jennifer Buaer Eme
Mesmo longe da vida do interior, onde cresci e passei a juventude, gostava de manter alguns de meus velhos hábitos. Cultivava flores do campo em pequenos vasos espalhados pelas janelas, que me faziam lembrar a antiga casa de meus pais. Agora em minha em casa, as janelas se tornaram meu lugar favorito, especialmente aquela que tinha vista para a rua principal, lugar movimentado, com carros, ônibus e pessoas.
Para passar o tempo, aproveitei o calor de fim de tarde, regando aqueles pequenos pontos coloridos que sobressaíam dos vasos cor de terra. Ao entrar na sala novamente, percebi que ela estava mais iluminada do que quando havia saído. Com uma xícara de café entre as mãos, me encaminhei até a janela à frente, seguindo como se estivesse hipnotizada pelo pôr-do-sol que começava a se desenhar no horizonte. Meus olhos percorreram a paisagem por inteiro, e os feixes luminosos invadiram minha retina ao passarem entre os prédios.
*
Eram mais dúvidas do que certezas; o ronco do motor do ônibus em que eu estava era o único sinal que ainda me atrelava àquele emaranhado de aço e concreto que costumavam chamar de cidade. Os veículos amontoavam-se como abelhas cinzentas, sem colmeia, sem destino e sem mel. À sua volta, comerciantes prometiam vender da esperança à alegria, enquanto mulheres carregavam crianças penduradas como sacolas. O céu alaranjado queimava-me os olhos, enquanto um velho sol insistia em não morrer. Aquele calor angustiante era o único espectro que tornava visível as mazelas que todos se esforçavam para esquecer: os gritos, o choro e as sirenes, além das moedas que repicavam em calçadas sujas, para a festa de meninos que estavam presos sem o saber. Se o cheiro da fuligem ainda servia para completar essa minha náusea urbana, ao menos a lembrança do ensopado de ervilhas de minha tia consolava essas desesperanças.
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Voltei os olhos para a rua, onde o cotidiano levava as pessoas para seus destinos. Fiquei me perguntando qual seria o traçado de cada um. O som abafado que vinha de fora entrava em meus ouvidos como melodia regida por aquelas vidas. Os casais de mãos dadas, o sorriso da mãe ao escutar as histórias do pequeno filho, o colorido dos cabelos das jovens que voltavam da escola se faziam para mim nostalgia que embalava o adormecer calmo daquele dia. E embalava também minha esperança de que esse momento se eternizasse em mim, assim como as doces lembranças que eu tinha da vida tranquila do interior.
Acompanhar os finais de tarde na janela, me consolavam. Assim, eu podia me sentir, ao mesmo tempo, no meu próprio universo e inserida no universo peculiar que era a vida urbana. Um sorriso espontâneo se formava em meus lábios. Decidi, então, ficar mais um tempo ali, parada admirando a vista, misturada à paisagem.
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A lentidão do trânsito fazia com que o ônibus se arrastasse pela larga rua como uma serpente que busca por seu covil. Era incapaz de causar inveja ao enferrujado semáforo, que permanecia sempre imóvel, piscando suas luzes de forma preguiçosa, regendo a vida apressada daquelas pessoas. O sinal vermelho significou nova interrupção no trajeto do veículo. Cansado de aborrecer-me com aquele cenário sem vida e sem cor, voltei os olhos ao céu, na esperança de encontrar alguma águia de brandas asas que pudesse me levar dali. Aceitaria o lugar que fosse, inclusive a cidadezinha sem nome onde passei minha infância e de onde fugi aos dezessete anos.
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Se nome não possuía, ao menos uma lembrança de vida ainda deveria morar por lá.
Foi durante essa abstração de meu pensamento que me deparei com uma imagem nunca antes vista em todos esses meus anos de metrópole. Uma imponente estrutura de concreto erguia-se sobre todos os demais edifícios. Suas curvas faziam-lhe parecer um projeto insustentável, pois seu topo era horizontal e de maior tamanho do que sua base. Assemelhava-se a um grande número sete desenhado em estilo modernista. O mesmo formigamento intelectual que sinto ao desfrutar de um livro tomou-me conta enquanto eu admirava aquela construção. Pelo breve momento que se estendeu pela eternidade do sinal fechado, senti-me traído pelas musas da sabedoria. Fui mergulhado no mais profundo sentimento de incapacidade, na escuridão da ignorância. Como pode uma imagem dessas, plena manifestação da liberdade, ter-me passado despercebida até aquele dia? Somente não sucumbi à dúvida por não conseguir estruturá-la naquele instante. Eu presenciava, ao certo, o nascimento de um novo Niemeyer. Meus olhos não tinham outra reação exceto o exercício do diálogo imagético.
*
A luz que refletia nas vidraças dos prédios e nas janelas dos veículos criava espectros a minha frente, como se tudo fosse um grande cristal. O gosto do café em minha boca, a imagem do sol em seu adormecer, as linhas desenhadas pelo destino, o conjunto dos acontecimentos… Tudo fazia eu me sentir leve.
O contexto formado por todos aqueles elementos me engoliu de tal forma que eu não percebia o tempo passar. Tinha a impressão de que cada segundo durava uma eternidade, mas que esse era o tempo suficiente para sentir os raios de sol escorrerem entre meus cabelos, cobrirem com seu calor meu corpo ainda marcado de rua, de vida, de cotidiano, inclusive dos que não me pertenciam. Esperava o tempo passar, contando os goles de café. Só sairia da janela quando a xícara estivesse vazia.
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Minha fruição só foi interrompida ao me deparar com um radiante contorno humano em uma de suas fulgurantes janelas. De aparência frágil, contrastava com aquela estrutura, ao regar suas flores enquanto dirigia seu olhar ao pôr-do-sol. Era a primeira fagulha de vida que eu via em meses. Saberia essa pobre dama, subjugada à imponência do edifício, que meus olhos perpassavam aquela estrutura, e não seu belo rosto? Naquele momento, teria eu o conhecimento de que meu pobre coração tecia o olhar voltado diretamente ao dela, e não às formas curvilineares daquele projeto arquitetônico de anônima autoria? Não tenho esperança de obter essa resposta; seu jeito único de admirar o horizonte soube roubar minha atenção.
*
E então fez-se o momento. O café acabou, e o sol já desaparecia no horizonte. Era hora de sair do conto e voltar para casa. Uma sensação estranha me invadiu quando dei o primeiro passo e me posicionei de costas para a abertura na parede que havia me proporcionado a experiência mais autêntica que eu poderia ter. Nem na casa do sítio com todo o pomar em volta, com suas planícies servindo de berço, nem na calmaria da vida simples que eu adorava levar havia presenciado tal momento. Aquele, com certeza, era o pôr-do-sol mais cheio de esperança que vi. Senti que, ao deixar o lugar, uma parte de mim ficou presa nele. E ao sair incompleta do choque com o pôr-do-sol percebi que já não podia mais viver sem aquele espetáculo. Voltei a construir minha rotina, mas com a certeza de que estaria presente no próximo crepúsculo, inserida novamente na paisagem, admirando novamente o céu laranja entre os prédios e compondo a vida das pessoas sem nomes que passavam pelo meu caminho sem ao menos saber que eu estava lá, tentando ver o desenho embaixo dos seus pés.
*
O mesmo verde do ensopado de minha tia sinalizou a liberdade para os veículos seguirem seus destinos. E eu, cativo da prisão daquele olhar, senti um amargo desgosto ao ver o ônibus mover-se. Ao reiniciar seu trajeto através do imenso rio de asfalto, um novo ângulo de vista desfez a excitação de meu intelecto. Visto frontalmente, o ousado edifício fez-se dois. A ilusão de ótica que enganou a minha subjetividade acabou também por sepultar o novo Niemeyer, antes mesmo de seu florescer. O enigmático vulto na janela, por sua vez, deu as costas ao pôr-do-sol e voltou para o interior de seu apartamento. Nem mais uma força era capaz de prender-me àquele cenário. Qual seria seu nome? Chamei-a de Águia; a ave formosa que me levou para casa, enquanto um último raio de sol chicoteava o topo das torres de concreto, dando lugar à noite que se despia em céu estrelado. E não mais a vi.
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