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Engrenagens que movem a história florense

Há mais de 60 anos, Moinho Carraro faz parte do dia a dia de Flores da Cunha. Na contramão da era digital, empreendimento segue produzindo farinha para consumo próprio

Enxergar oportunidades nas dificuldades. Essa premissa foi seguida à risca pelo florense João Rizzotto, hoje com 80 anos, que há mais de 60 idealizou a construção de um moinho de trigo na Terra do Galo. Aos 17 anos, motivado pelo fato de a mãe precisar fazer duas fornadas de pão por semana, já que a família era grande, ele convenceu seu pai, Dionízio Rizzotto, a registrar um moinho em seu nome, uma vez que ele ainda não havia atingido a maioridade para tornar-se proprietário do negócio. 
Antes disso, porém, era preciso encontrar um terreno para tal construção. “O prefeito era o Raymundo Paviani e ele liberou para nós construirmos onde o moinho é hoje. O terreno era do Luiz Argenta e ali era zona rural na época, nos arredores era tudo potreiro. O Paviani, que também era projetista, fez a planta dos quatro pavimentos do prédio, que foi a primeira construção de quatro andares do município”, conta Rizzotto, lembrando que outra opção cogitada para o local foi uma casa onde hoje funciona o Círculo Saúde, mas a alternativa foi descartada por estar no perímetro urbano, portanto, não poderia sediar uma indústria. 
Conforme o aposentado, o espaço começou a ser construído em 1960, mas passou a funcionar em 1962, quando foi adquirido o primeiro moinho, vindo de Paim Filho, no Norte do estado. “No início foi difícil, só podíamos trabalhar das 22h às 6h porque não tinha como usarmos energia elétrica durante o dia, dava sobrecarga, então nós fizemos um quarto no segundo andar do moinho, no meio do pó, e de noite dormíamos ali, eu e meu irmão Raimundo, porque tínhamos que moer toda a noite para que, na manhã seguinte, tivesse farinha”, recorda Rizzotto.
No começo, o estabelecimento trabalhava apenas com trigo, mas cerca de oito anos depois e após a aquisição de um novo maquinário da cooperativa de Galópolis, a moagem do milho também passou a fazer parte dos serviços oferecidos pelo moinho, que contava, inclusive, com marcas próprias. Segundo o idealizador, a farinha de milho ali produzida chamava-se Imaflor, já a farinha de trigo era denominada Florima. 
Rizzotto permaneceu à frente do moinho por 13 anos e conta que acabou desistindo por diversas questões. Quando isso aconteceu, Irineu Carraro passou a ser um dos sócios do empreendimento, por volta de 1975. 
Diferentemente do início, onde a fabricação de farinha de trigo se destacava, na década de 1970 a moagem de milho era superior e a produção total girava em torno de 6 mil quilos por dia – cerca de 1,5 mil de trigo e mais de 4 mil de milho. 
Hoje, aos 78 anos, Carraro recorda que, em um primeiro momento, havia conseguido comprar apenas uma das partes da empresa e que o negócio só foi adquirido por completo cerca de 20 anos depois, com dinheiro emprestado.  
A filha de Carraro, Idriane Carraro Bett, de 42 anos, que atualmente é gerente do moinho que carrega o sobrenome da família, recorda que o milho e o trigo não eram moídos diariamente, cada dia era dedicado a um deles e a procura pelo serviço era grande. “O pessoal plantava muito trigo na colônia e vinha no moinho para fazer a farinha e, com ela, poder fazer pão. Uma vez eles também plantavam arroz e traziam para descascar, já que nós tínhamos descascador de arroz. Mas essa demanda foi diminuindo, tanto que hoje ninguém mais planta arroz por aqui, aí optamos por descartar a máquina, mas tinha. Lembro que quando era pequena eu e minhas irmãs, Ivania e Ironite, vínhamos ajudar”, destaca. 
Com o passar dos anos, outras atividades foram sendo deixadas de lado, como a moagem de trigo, já que essa cultura também deixou de ser plantada na região e, com isso, as duas máquinas do estabelecimento foram adaptadas e destinadas para moer milho. Por outro lado, novos serviços foram inclusos: “Com o tempo foi começado a comercializar ração para porco, gado, farelo. A gente fabricava, tínhamos a fábrica de Rações Galo e depois, na década de 1980, ela foi vendida”, revela Idriane, completando que após a venda eles passaram a comprar rações de uma companhia de alimentos para, após, comercializar no local. 
Embora a moagem de milho continuasse, nos anos 1990 o empreendimento viu a necessidade de incrementar as vendas e, para isso, abriu espaço para um mercado – na parte que, antes, estocava rações. “Tanto que o nome era Moinho e Mercado Carraro, tinha açougue, enfim, de tudo, ficamos uns 20 anos e depois achamos melhor parar, eram muitas horas de trabalho. Também começaram a vir grandes redes de mercado para Flores da Cunha e, ao mesmo tempo, notamos que a linha pet aumentava muito. Então, em 2017, a gente reestruturou o espaço e veio com a loja pet, começamos só com os balcões e algumas prateleiras, mas a cada mês tínhamos que chamar alguém para colocar mais prateleiras porque tinha produtos novos, e assim continua sendo, todo dia tem novidades”, empolga-se a gerente, ao constatar que a nova aposta foi bem-aceita pelo público. 
No entanto, mesmo com tantas novidades nesse universo pet – especialmente para cachorros, gatos, passarinhos, coelhos domésticos e chinchilas – a família continua comercializando ração para animais de grande porte, como vacas, cavalos, porcos, galinhas. E, claro, segue com o moinho de milho, que é um dos poucos do município, quiçá o único ainda em funcionamento.  
O grande desafio do local, nos dias de hoje, é manter o público tradicional e atrair novos clientes: “Temos que ser bem diversificados, até o atendimento é diferenciado. O pessoal que vem da colônia, principalmente, quer uma atenção especial, às vezes os filhos trazem os pais e eles ficam aqui sentados, conversando com os funcionários, e acabam comprando ração para os animais grandes e pequeninhos também. Já quando vem alguém aqui da cidade eles procuram por coisas específicas ou que viram na internet”, explica Idriane, ao mesmo tempo em que revela que o espaço ainda funciona como ponto de encontro para muitas pessoas que vem do interior. 
Atualmente, as máquinas costumam funcionar uma vez por mês e o moinho é mantido mais pela tradição, uma vez que a farinha é produzida apenas para consumo próprio. Conforme a gerente, antigamente o empreendimento revendida o produto para diversos estabelecimentos da cidade, como mercados e padarias, além disso, muitas pessoas se deslocavam até o espaço para comprar farinha e, inclusive, tinha quem viesse de Caxias do Sul exclusivamente para isso. 
“A gente gosta, até que meus pais estiverem vivos temos que continuar com essa história, do contrário entristece eles, principalmente meu pai.  Mesmo que eles não precisem mais trabalhar, parece que se deixarmos de lado os moinhos ‘vai tirar um pedaço deles’, afinal esse foi o objetivo deles, que vieram da colônia, casaram, venderam tudo e adquiriram o espaço. Isso aqui é a vida deles. Minha mãe (Isolda Carraro, hoje com 70 anos) viveu aqui dentro, desde que nós éramos pequenas eu lembro que ela vinha trabalhar aqui”, emociona-se Idriane, frisando que já chegou a comentar com o pai sobre a possibilidade de comprarem a farinha de outro fornecedor, embalarem e comercializarem, mas ele diz que vai seguir fabricando até conseguir, porque só ele sabe o ‘segredo’ de algumas máquinas e, de acordo com o própio Carraro, isso não poderia ser ensinado. 

Idriane, Isolda e Irineu estão à frente do Moinho Carraro.  - Arquivo Pessoal/ Divulgação Moinho é mantido para preservar a tradição e a história. - Karine Bergozza O primeiro e o segundo proprietário do moinho, João Rizzotto e Irineu Carraro. - Karine Bergozza
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