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A autenticidade de ser quem é

Determinado, pe. Ricardo Fontana fala da importância de deixar um legado que marque a vida das pessoas

Em 18 de dezembro de 1998 o Jornal O Florense publicava: “O diácono Ricardo Fontana, 27 anos, natural de São Marcos, mas que residiu em Flores da Cunha dos dois aos 12 anos, será ordenado padre pelo bispo Dom Paulo Moretto, da Diocese de Caxias do Sul. A cerimônia será realizada na Igreja Matriz de Flores da Cunha, a partir das 9h de domingo, e é aberta ao público”. 
Vinte e cinco anos depois pe. Ricardo Fontana, atualmente reitor do Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, faz questão de manter viva a história familiar e religiosa que o une ao município florense. Com 52 anos de idade, no dia 9 de dezembro de 2023 ele celebra seu Jubileu de Prata – 25 anos dedicados ao Sacerdócio e 40 anos de seminário, um capítulo que começou a ser escrito nestas terras. 
Filho de Maria Baldissera Fontana, de 83 anos, e Nilto Fontana (In memoriam), Ricardo Fontana é o mais novo entre seis irmãos. A religião esteve presente em sua vida desde seu nascimento: seu pai era natural da Capela Santo Antônio, na Linha 80, em Flores da Cunha; sua mãe de Santo Antônio de Zamoner, em São Marcos; e pe. Ricardo nasceu no Capitel de Santo Antônio, no Boqueirão, em São Marcos. Fato que se torna curioso quando sabemos que a primeira grande missão do padre foi ser reitor do Santuário Santo Antônio, em Bento Gonçalves. 
Atualmente pe. Fontana mora em Caravaggio e, além do Santuário, é responsável por mais sete comunidades, entre elas Mato Perso, de Flores da Cunha. Ao todo, cerca de 800 famílias fazem parte da paróquia. O religioso também divide seu tempo livre com a família e costuma visitar o município florense aos fins de semana, por aqui ele frequenta a casa da irmã ou a colônia, onde mora sua mãe. Conheça a história de fé e amor ao próximo de pe. Ricardo Fontana, um florense de coração. 

Jornal O Florense: Qual sua ligação com o município de Flores da Cunha? 
Pe. Ricardo Fontana: Meu bisavô, Pietro, veio da Itália quando tinha 10 anos, casou com a Catherine e morou em Flores da Cunha. Eles tiveram vários filhos, entre eles o Victório, meu avô, e estão sepultados no cemitério florense. Quando o meu pai, Nilto Fontana, casou era costume os filhos ‘se virarem’, saírem de casa, e depois que ele trabalhou fora conseguiu comprar de volta a terra que era do meu avô. Era a madrasta que estava ali e vendeu para ele, isso em 1973. Eu nasci em 1971, em São Marcos, e em 1973 já voltamos para Flores da Cunha, então toda a nossa história, bisavós, avós, meu pai e a minha criação também foi aqui. Comecei a estudar em 1979, eu tinha 8 anos e estudei do primeiro até o quinto ano no Frei Caneca, depois fui para o seminário, com 12, 13 anos. A adolescência eu passei no seminário e como sai cedo de casa perdi muitos vínculos, vinha apenas um breve período de férias, no verão.

OF: Quando e de que forma despertou sua vocação para a vida religiosa? 
Pe. Fontana: Desde criança, isso foi muito forte quando voltei para Flores da Cunha. Na época, tinha os freis e as celebrações campais eram muito marcantes, como a Sexta-feira Santa e o Natal. Aos 5 anos de idade me recordo bem de ter participado de todas as cerimônias, por exemplo, no Natal tinha missa vespertina, missa da noite, missa do Galo, missa do dia e a gente ia e voltava, o Tio Itacir pegava o caminhãozinho e nós íamos e voltávamos com ele, então era uma participação muito ativa nas celebrações. 
Uma característica minha é que eu memorizava bem o sermão do padre, e quando nós íamos trabalhar na colônia, todos os primos juntos, tios, nas terras que antigamente eram do meu avô (tanto que tem a estrada que foi nomeada de Victório Fontana), eu lembro que eles levavam bergamotas para fazer um lanche da tarde, então paravam de trabalhar, de capinar, depois que terminavam as bergamotas eu botava o saquinho em cima da cabeça, imitava um bispo e fazia todo o sermão que o padre tinha feito na Sexta-feira Santa, e eles prestavam atenção porque eu memorizava bem. Depois, quando cresci um pouco mais, aí pelos 10 anos, tinha as filhas dos primos, eu brincava com as crianças de missa, a família tinha uns troféus da bodega que estavam reformando e eu fazia daquilo os materiais da missa.
Mas aí quando eu tinha 12 anos ficava pensando como iria ser padre se não sabia como fazer. Então apareceu um padre que foi trabalhar do lado de casa, ele estava contando para os colegas como era a vida no seminário, todo itinerário do dia, que aprendiam línguas, o que podia e o que não podia fazer. Naquilo eu parei e fiquei escutando, estava correndo com as outras crianças na olaria, brincando, parei e comecei a perguntar, ele ia trabalhando e conversando. Na manhã seguinte eu faltei aula para ir conversar com ele. Ao meio-dia, cheguei e disse para o pai e a mãe que no próximo ano iria para o seminário. Nossa, imagina, uma criança de 12 anos, eles disseram. Eu falei que com 13 anos já dava para entrar, então eles falaram que não tinham condições porque colégio de padre era muito caro, mas eu expliquei que lá era só três salários mínimos por ano e depois a gente trabalhava um mês nas férias e ajudava a pagar. Eu já tinha todas as respostas na ponta da língua, estava muito determinado e isso é interessante, fico impressionado. 

OF: Como foi sua trajetória religiosa e sua formação?
Pe. Fontana: Com 13 anos fui para a Congregação dos Josefinos de Murialdo, em Fazenda Souza, no interior de Caxias do Sul, terminei o Ensino Fundamental e fiz o Ensino Médio ali, toda minha formação foi com o Murialdo. Fiz 15 anos de seminário, em 1991, 1992 fui cursar Filosofia em Porto Alegre, no seminário de Viamão, depois voltei e concluí na UCS, licenciatura plena, e lecionava no Murialdo. Comecei a dar aulas muito jovem, com 21 anos de idade, em Porto Alegre, no segundo ano de Filosofia. Tive 14 anos de sala de aula, com as disciplinas de Ensino religioso, Filosofia e História. Depois disso, fui para Londrina (PR), estudar Teologia, fiquei quatro anos, de 1995 a 1998, e assim que terminei fui ordenado padre, em 20 de dezembro de 1998, em Flores da Cunha, aos 27 anos. Como padre trabalhei sete anos em Ana Rech, no Murialdo, na formação de seminaristas. Em 2006, fui para Porto Alegre fazer o mestrado e, nesse período, fiz também uma pós-graduação e formação para professores em Florianópolis (SC). Depois, fiz um mestrado em Teologia na PUC, em 2006, e no ano seguinte já vim para a Diocese.
De 2007 a 2011 fiquei na Catedral de Caxias o Sul, após fui para Carlos Barbosa, três anos, e quando Dom Adelar Baruff foi para assumir como pároco no Santuário de Santo Antônio, em Bento Gonçalves, ele foi nomeado bispo de Cruz Alta, então o bispo precisava de um padre para Bento e me achou em Carlos Barbosa, eu estava muito bem lá, estava feliz, em casa. E quando fui nomeado ele consultou outros seis padres e ninguém aceitou. Bento era uma paróquia de 70 mil habitantes com 26 comunidades, foi um desafio muito grande. Construímos cinco igrejas novas nos bairros, terminamos o restauro do Santuário e prestamos contas, construímos uma casa paroquial, novos centros de catequese, realizamos 18 reformas de igrejas, foi um trabalho imenso, mas uma experiência muito enriquecedora porque depois de cinco anos eu tinha conseguido resolver praticamente todos os problemas da paróquia, tive que aprender a ser um gestor, e aí veio a pandemia, em 2021. Mas, mesmo assim, a gente conseguiu manter a matriz muito acesa, muito dinâmica, e a paróquia se manteve de pé. Deu certo e tanto é que terminada a pandemia o bispo me pediu para assumir Caravaggio que também precisava dar uma ‘guinada’.

OF: O que representa ter sido escolhido para ocupar o cargo de reitor e pároco do Santuário de Caravaggio? 
Pe. Fontana: Eu estava aqui em Flores da Cunha quando o bispo me ligou para fazer o convite, ele já tinha conversando comigo um dia, disse que estava precisando de mim em Caravaggio, que lá tinha uma situação e que eu teria o perfil, a espiritualidade, disse que eu era um bom gestor. Aí ele me ligou um dia e queria agendar uma reunião, eu disse que para mim, uma vez decidido essa vocação de ser padre, se ele achava que eu tinha perfil para ir a minha decisão era a dele. 
Na verdade, durante aquele ano de 2021 veio vários sinais. Começou em junho, sempre no dia 26, que é o dia votivo. Eu acordei, estava de pé e quando voltei do banheiro, sentia algo, uma visão extraordinária, e me veio em mente Caravaggio. E aí, no 26 de julho, veio outra visão, depois em 26 de agosto, 26 de setembro e eu fui nomeado no dia 26 de novembro às 17h, exatamente a hora da aparição, e o bispo publicou as nomeações.
Por acaso eu abri um livro e caiu um folder que tinha sido inaugurada a Igreja Nossa Senhora de Caravaggio em um bairro muito pobre de Bento, o Vila Nova II, uma obra belíssima, um complexo que todo mundo dizia que nunca ia ser construído, e fui ver a data: era 26 de novembro de 2018 que nós tínhamos inaugurado, às 18h. Então são mistérios da minha vida que estão muito relacionados com algumas coisas de datas, horas, locais, é algo que a gente não entende porque é muito misterioso, a vocação, ser sacerdote é algo muito misterioso, porque a gente é humano e, ao mesmo tempo, tem a graça de Deus que te conduz. Eu estava muito cansado em 2021, eu queria ‘dar uma parada’, fazer um ano sabático, descansar, queria vir aqui para Flores ajudar um pouco na colônia. E até brinquei no dia em que tomei posse ‘eu disse que queria ir para casa da mãe e Ele me levou para a casa da mãe de Caravaggio’.

OF: Já imaginou, um dia, chegar a ser reitor do Santuário de Caravaggio?
Pe. Fontana: Jamais. Até porque, no início, o meu itinerário era totalmente outro, na Congregação dos Josefinos imaginei trabalhar na formação de escola, depois, quando vim para a Diocese, eu comecei do zero e como era dos Padres Josefinos, religiosos, pensei que ia pegar algumas paróquias muito simples, de distritos ou cidades pequenas, e de repente comecei auxiliando na Catedral, como pároco de Barbosa, no santuário de Bento, depois Caravaggio. Eu não imaginava toda essa responsabilidade, nem me sentia preparado para isso, mas acredito que Deus vai capacitando a gente no decorrer no caminho. Mas nunca tinha imaginado, pelo contrário, sempre dizia que jamais iria em um lugar isolado porque sou ‘meio urbanizado’, gosto do mundo, mas hoje estou amando esse lugar de paz, não sabia que iria gostar tanto. Para mim, foi o melhor lugar para viver, com certeza, é uma paz do espírito. 
Hoje, ao olhar para trás eu vejo com muito orgulho porque foram desafios sempre superados, concluídos com chave de ouro. Olho para esses 25 anos de sacerdócio e se tivesse que morrer hoje eu morreria feliz. Foram três ou quatro grandes desafios de conseguir reorganizar, deixar em ordem e foram conquistas para as comunidades, porque hoje eu as vejo muito felizes com as entregas e eu tenho saudade. Ao mesmo tempo, quando saio da paróquia, penso que somos servos e fizemos aquilo que devíamos ter feito, acho que a gente não tem que se apegar nem as pessoas, nem as coisas ou lugares, somos muito vulneráveis, então o apego não faz bem, você precisa amar, amar intensamente, mas não se apegar porque o amor verdadeiro é desapegado, é livre, então sou muito livre. 

OF: Se pudesse dar um conselho de vida, qual seria? 
Pe. Fontana: Ser aquilo que você é. Ser autêntico, ser determinado, porque todo ser humano não veio por acaso neste mundo. Acho que o bonito é a gente passar por esta vida deixando um legado, deixando algo. O que vai marcar? Então é você fazer com o máximo de empenho, com o máximo de dedicação aquilo que Deus te deu como um dom para você desenvolver, porque o dom que você tem não é seu, é algo que Deus te deu para colocar a serviço dessa humanidade, desse planeta, então nós precisamos cuidar bem da gente para poder cuidar bem do próximo. Mas, em primeiro lugar, amar a Deus, que significa amar esse dom, esse talento que Ele te deu, e aí você também vai cuidar bem do outro, do próximo, desse mundo maravilhoso. Eu acho que nesse mundo tão agitado, de barulho, a gente tem que perceber a força do silêncio, do coração, então se as pessoas pudessem tirar mais tempo para a contemplação e para descobrir o propósito que vieram para este mundo, encontrariam um grande sentido de viver. As pessoas, hoje, estão muito voltadas sobre si mesmas e a grande alegria do ser humano é poder abrir-se à novidade, ao novo.  A gente tem que se encantar mais com a vida dos outros, com a vida da natureza, e sair da superficialidade. Santa Terezinha tem uma frase interessante que diz que devemos florescer onde Deus nos plantou. 

OF: O que te motiva diariamente?
Pe. Fontana: Quando eu estou um pouco abatido, e até aconselho isso para as pessoas, reativo a força de espírito que está dentro de mim. Espírito Santo é harmonia, ele é a beleza. Santo Agostinho diz que o mundo será salvo pelo belo. E o livro de Isaías diz ‘não tinha figura, era desfigurado, mas ali estava a própria beleza do crucificado’. Então, minha razão de viver e de ser é por Jesus Cristo. Considero Ele o nosso senhor, nosso Deus, que semelhante a nós assumiu a humanidade por inteiro, então Ele é a razão dessa renúncia que fiz em vista de um bem maior que o dinheiro. Eu confio muito na providência no futuro, o passado a gente não muda e o futuro pertence a Deus, mas temos que confiar na providência. Então, o que me motiva é viver intensamente este presente da melhor forma. 
Tenho um sentimento de gratidão e todas as manhãs faço uma oração. Aquilo que sou tem muito daquilo que as pessoas passaram para mim, então eu agradeço, acho que essa palavra é uma marca minha: gratidão.

Pe. Ricardo Fontana com a imagem de Nossa Senhora de Caravaggio. - Karine Bergozza
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