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“Foram as 20 horas mais longas da minha vida”

Vanessa Carra conta, em entrevista exclusiva, sobre os momentos de pavor que viveu no dia 20 durante enxurrada no município de Sapiranga. O namorado, Breitner Bortoluzzi Bender, morreu

Recuperando-se da trágica experiência vivida no final da tarde do dia 20, quando sobreviveu a uma enxurrada enquanto fazia uma trilha na companhia do namorado e de outros cinco amigos no interior do Vale do Sinos, a universitária Vanessa Panizzon Carra, 20 anos, tenta encontrar forças. Com o apoio de familiares e amigos, ela diz que está consciente do que viu – e da saudade que ainda irá sentir. A jovem de Flores da Cunha conta que suportou a angústia até receber a informação de que o namorado, o caxiense Breitner Bortoluzzi Bender, 21 anos, não havia sobrevivido à tragédia. Vanessa e mais quatro jovens foram resgatados por bombeiros. Cristiana Reis, 20 anos, de Caxias do Sul, ainda está desaparecida.

Vanessa recebeu a reportagem do jornal O Florense na tarde de quinta, dia 24, para relatar o que viveu no meio da mata. Ela, o namorado e um grupo de amigos foram surpreendidos pela enxurrada quando faziam uma trilha às margens do Rio Feitoria, no limite entre os municípios de Sapiranga e Dois Irmãos, em área pertencente ao Sítio da Família Lima (formada por músicos). “Fiquei sozinha na mata, no escuro. Depois de ser resgatada, esperei por notícias do Breitner. Foram as 20 horas mais longas da minha vida. No dia seguinte eu soube que ele tinha morrido”, conta Vanessa.

Ela recorda que sobreviveu porque foi a primeira a cair nas águas, antes da avalanche de lama, pedras e galhos de árvores levar os amigos e o namorado. “Parei em uma pedra. Eu só escutava gritos. Depois vi geladeiras e churrasqueiras serem levados pelo mar de lama”, cita. A enxurrada foi provocada pela grande quantidade de chuva que caiu no início da tarde de domingo em cidades da Serra – mais tarde as águas chegaram ao Vale do Sinos. O Sítio da Família Lima está fechado por tempo indeterminado. Confira a seguir os principais trechos da entrevista com a florense Vanessa Carra, que completou um ano e meio de namoro justamente naquele domingo.


O Florense: Como surgiu a ideia de fazer o passeio?
Vanessa Panizzon Carra:
Nós sete éramos muito unidos. Então, decidimos ir para lá passar o dia (domingo) e retornar por volta de 18h. Era para ser um dia legal, com sol, cachoeira e diversão. Ao chegarmos lá vimos que era um lugar lindo, tranquilo e tinha muitas pessoas. Tinha tudo para ser um domingo perfeito.

O Florense: Vocês estavam acompanhados de alguém experiente?
Vanessa:
Estávamos nos sentindo muito seguros, pois estávamos com o Joe Campos, um parente da família Lima, que conhece o rio desde pequeno. Ele estava nos guiando pelos caminhos mais seguros. Em cada queda (são cinco cachoeiras) havia dois salva-vidas. Praticamente todos os pontos do rio davam pé e todos do grupo sabiam nadar. O passeio estava bem legal. Não tinha chovido. Então não tinha motivo para ficarmos preocupados.

O Florense: O que aconteceu depois?
Vanessa:
Descemos o rio e chegamos até a quarta queda. Até ali estava tudo bem. Paramos para descansar. Nesse momento perguntei ao Joe se faltava muito, pois já estava ficando cansada e com algumas câimbras. Ele disse que faltava pouco, no máximo 30 metros, e depois já voltaríamos. Minutos depois eu senti muita água nas minhas costas. Nisso eu escorreguei e fui. Só que nessa hora eu não me preocupei, pois achei que logo daria pé. Então comecei me bater nas pedras. Foi aí que eu me desesperei, pois começou a vir uma correnteza muito forte. Eu afundava e voltava. Vi uma pedra gigantesca na minha frente. Bati com as pernas nela para me apoiar. Nessa hora, a própria correnteza me segurou na pedra. Então eu fui me apoiando, em direção à margem. Nadei um pouco e consegui me agarrar a um cipó.

O Florense: Nesse momento você estava sozinha? Seus amigos estavam perto?
Vanessa:
Logo que eu escorreguei, ouvi um deles gritando para o meu namorado: se joga, vai atrás dela e pega ela. Do nada alguém gritou: está descendo muita água. Eu não via nada. A minha sorte foi que eu desci na correnteza do rio mesmo. Quando me agarrei no cipó, consegui subir na pedra. Naquilo eu vi aquela onda gigante de lama e nela estavam meus seis amigos descendo rio abaixo, como uns gravetos. Meu namorado gritava meu nome com toda a força.

O Florense: Eles te viram em cima da pedra?
Vanessa:
Não. Foi tudo muito rápido. Cerca de três segundos e eles foram. Como eu fui a primeira, eles imaginavam que eu havia descido rio abaixo.

O Florense: O que passou na sua cabeça nessa hora?
Vanessa:
Fiquei completamente apavorada. Só que eu nem lembrei que ainda tinha uma quinta cachoeira. Então eu achei que uma hora eles iriam parar, se agarrar em alguma coisa, como aconteceu comigo.

O Florense: Você conseguiu sair da água. Como procedeu depois disso?
Vanessa:
Eu sentei em uma pedra e fiquei olhando para o rio, pensando no que fazer. Estava sozinha no mato. Não tinha a menor noção de onde vinha aquela água, se tinha chovido, se era uma barragem que estourou, se era normal acontecer aquilo. Olhava para o rio para ver se eu via mais gente descendo, para tentar ajudar, mas não vi mais ninguém. O que me tranquilizava era que uma hora o resgate me acharia. Fiquei umas duas horas no claro. Depois começou a escurecer.

O Florense: Você ficou parada esperando o resgate?
Vanessa:
Não. Subi uns 30 metros pelo mato, porque eu sentia frio. Estava só com um biquíni, um vestidinho por cima e sem calçado. O mato chegava a ser trançado. O chão uma hora tinha muita água, outra tinha muita pedra. Até que dei de cara com um imenso paredão de pedras. Não tinha como seguir. Então voltei e fiquei no ponto inicial.

O Florense: Como estava seu emocional nesse momento?
Vanessa:
Estava calma. Tinha em mente que eu passaria a noite ali. Por isso, procurei me manter calma e encontrar um lugar em que eu pudesse ficar quando a noite chegasse. Tirei toda a roupa, torci, coloquei de volta e fiquei esperando.

O Florense: O que passava na sua cabeça nesse momento?
Vanessa:
Eu rezava, pedia pelo bem de todos, agradecia, gritava. Não sabia o que fazer. Tenho certeza que naquele momento tinha alguém do meu lado me guiando. Fiquei cerca de uma hora e meia no escuro. De repente, comecei a escutar barulho do mato quebrando. Olhei para cima e vi uma luz azul. Na hora gritei de felicidade. Só que as luzes mudavam a direção quando eu gritava. Então, comecei a bater palmas. Até que eles me acharam.

O Florense: Algum amigo seu estava junto?
Vanessa:
Não, só os bombeiros. Um deles me segurou, olhou nos meus olhos e disse: ‘agradece a Deus por você estar viva. A gente só te achou porque erramos o caminho’. Era umas 21h30min.

O Florense: Para onde você foi levada?
Vanessa:
Primeiro me levaram para a casa da família Lima. Depois, para o posto de saúde de Dois Irmãos. Apesar de não conseguir mais encostar o pé no chão, não tinha nenhuma fratura. Somente arranhões.

O Florense: Quando a sua família foi avisada?
Vanessa:
Cerca de uma hora depois do resgate. Quando cheguei ao posto pedi para que ligassem para meus pais. A primeira pessoa que chegou, três horas depois, foi minha sogra, a mãe do Breitner.

O Florense: Como foi quando você encontrou seu amigo, Bruno Rossi, que foi a segunda pessoa resgatada?
Vanessa:
Quando ouvi a voz dele fiquei muito feliz e nos abraçamos. Até rimos da situação. Imaginávamos que como ele caiu e sobreviveu teria acontecido o mesmo com os outros. Depois chegou o Joe, o Rafael Sokabe, depois o Bruno Selau e nada do Breitner. Já era madrugada quando os bombeiros falaram que iriam encerrar as buscas. Daí me desesperei. Fomos para a casa de uma família, próxima ao local onde tudo aconteceu. Lá ficamos esperando notícias do meu namorado.

O Florense: Quanto tempo vocês esperaram até ter notícias do Breitner?
Vanessa:
Foram 20 horas de agonia. Mas eu não perdi as esperanças até ver o último bombeiro sair de lá. Eu fechava os olhos e tentava falar com ele, tranquilizá-lo. Foram as 20 piores da minha vida.

O Florense: Em que momento você recebeu a notícia de que haviam encontrado o corpo dele?
Vanessa:
Nós já tínhamos almoçado, não sei a hora, quando os bombeiros chegaram procurando a família do Breitner. Daí eles reuniram-se e vi que eles começaram a se desesperar. Quem me deu a notícia foi a Juçara, mãe do Joe. A dor foi terrível. Entretanto, agradeço a Deus por terem encontrado ele, pois imagino o sofrimento da família da Cristiana, que deve estar desesperada.

O Florense: Você acompanhou o velório ou preferiu não ir?
Vanessa:
Não quis ir reconhecer o corpo, mas fui ao velório. Estava com muito medo. Meus amigos disseram que a fisionomia dele estava boa e que eu tinha que enfrentar essa situação.

O Florense: Vocês namoravam há quanto tempo?
Vanessa:
Fez um ano e meio no dia da tragédia.

O Florense: Aparentemente, você parece estar tranquila. De onde está tirando forças para passar por tudo isso?
Vanessa:
Muitas pessoas estão me dando força. Centenas de pessoas estão me adicionando nas redes sociais e mandando recados de apoio. Pessoas que estavam lá e cinco minutos antes saíram e escaparam. Minha família, amigos... Agradeço a todos e digo àqueles que querem notícias minhas que estou bem. Vou viver com saudades, mas sei que estou encaminhando ele para a luz, agradecendo pela pessoa que ele foi e o quanto ele mudou a minha vida. Tenho certeza que o Breitner cumpriu a missão dele aqui, que era a hora dele e que ele está em um lugar lindo.

O Florense: Com relação a sua amiga que ainda está desaparecida, você ainda tem esperanças?
Vanessa:
É difícil crer que ela ainda está viva. Talvez seja melhor pensar que ela também virou um anjinho que vai iluminar a gente. Mas continuo mandando luz e força para a família dela.

O Florense: Que lição você tirou de tudo isso?
Vanessa:
Essa é uma lição para todas as pessoas que ouviram essa história. Se eu fui escolhida para ter essa lição de vida, se eu perdi o amor da minha vida para aprender que a gente deve viver cada momento como se fosse único, digo a todos que não sejam tão materialistas, que valorizem as pequenas coisas da vida, que valorizem o amor e que respeitem o próximo. Não deixem o tempo passar, não deixem de dar aquele abraço, de dizer um ‘eu te amo’. Peço que tomem por exemplo a minha lição e não esperem. Abram seus corações.



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