Segurança

Não é não!

A voz feminina precisa ser ouvida e respeitada, essa é a única forma de diminuir os índices de violência contra a mulher, que ganharam destaque no município nos últimos dias

“Ela deve ter dado motivo”. “Estava usando roupas vulgares, inapropriadas”. “Andava sozinha à noite”. “Apanhou porque gosta, ficou quieta porque quis”. “Ela provocou”. Muito provavelmente você já tenha ouvido algumas dessas expressões no dia a dia, especialmente quando falamos sobre violência contra a mulher e em situações de estupro, nas quais, muitas vezes, elas passam de vítimas a culpadas em uma fração de minutos.
Mesmo com tantos avanços conquistados, e no ano de 2022, a cultura do machismo segue extremamente presente em uma sociedade que encara como natural as mulheres terem de enfrentar assédio sexual em espaços públicos, além da falta de respeito evidenciada pela não aceitação de uma negativa feminina por parte de muitos homens que, sim, ainda acreditam que elas nasceram apenas para servir.
Fatos que, para diversas pessoas passam despercebidos, são encarados com normalidade, ou, até mesmo, viram motivo de piadas, na verdade, são registros sérios de violência contra a mulher. E isso não acontece apenas em cidades grandes, Flores da Cunha com seus pouco mais de 30 mil habitantes vem contabilizando – desde o início deste mês – uma série de casos que envolvem ameaça, lesão corporal e desrespeito à Lei Maria da Penha.
Em uma das ocorrências a vítima chegou a ser atingida na face com uma cuia de chimarrão pelo seu companheiro, em outra, na área central da cidade e em plena luz do dia, uma jovem foi agredida com socos e empurrões por não ter aceitado “ficar” com um indivíduo. No entanto, os números da violência doméstica são ainda mais expressivos no município, prova disso, foram quatro registros recentes nos últimos dias. Nesta semana, durante discussão com o ex-companheiro, uma mulher chegou a ser agredida com um cabo de vassoura. Em outra situação violenta a vítima foi agarrada pelo pescoço, derrubada no chão, e diversos chutes teriam sido deferidos em sua face, vindo a causar, inclusive, a perda de dois dentes. O agressor: seu marido. 
De acordo com o Capitão da Brigada Militar de Flores da Cunha, Daniel Tonatto, os principais motivadores para essas ocorrências, bem como o perfil dos agressores, apresentam características em comum: “A gente sabe que essa relação é muito voltada para a questão emocional entre os casais, muitas vezes a própria vítima não faz o boletim de ocorrência. Casais que têm problemas com bastante frequência, desentendimentos, são vários fatores, é difícil precisar. O perfil desse agressor é com dominância sobre a mulher, ele acha que ela deve se submeter às vontades do marido pela situação de machismo”, revela.
No entanto, o que acaba dificultando e agravando ainda mais essas atitudes é a necessidade de denúncia o que, muitas vezes, não acontece: “Para nós a ocorrência existe só se houver o registro policial”, esclarece Tonatto. O capitão também frisa que os principais casos do município se referem a lesões corporais e ameaças dentro de casa: “Violência doméstica não é só de marido e esposa, mas também de ex-marido e ex-mulher – que também predomina bastante – além de namorados e casais que estão em união estável. Então grande parte das agressões é relacionada à violência doméstica, por causa desses desentendimentos”.
Nesse sentido, o papel da Brigada Militar é muito importante, não só nas cidades que contam com patrulhas Maria da Penha, mas também nas com mais incidência desse crime: “Realizamos várias ações em todos os municípios do estado, no que diz respeito ao monitoramento das medidas protetivas sobre esses maridos agressores. A Brigada Militar visita as mulheres, orienta e também dá dicas de segurança, de convivência e, principalmente, verifica se há descumprimento das medidas protetivas. Nestes casos a BM, imediatamente, se desloca para o local e, se for o caso, faz a prisão do agressor e sua condução para a delegacia de polícia”, ressalta
Ainda conforme Tonatto, no que 
diz respeito às denúncias, é fundamental que a informação esteja ao alcance de todas, fazendo com que não tenham medo de registrar uma ocorrência: “Que elas não tenham receio de procurar a polícia, a justiça, para resolver esse problema que, muitas vezes, pode desencadear uma agressão mais grave, ou, até mesmo um feminicídio. A Brigada Militar está preparada para atender as mulheres em violência doméstica, bem como para realizar o encaminhamento para a Polícia Civil, solicitar medidas protetivas, acompanhar as vítimas e fazer patrulhamento ostensivo. Todo esse trabalho é feito com uma atenção especial, uma vez que a atuação da BM é 24 horas, todos os dias da semana”, conclui o capitão.
As prisões em flagrante envolvendo violência doméstica e estupro costumam chegar até a Polícia Civil por meio da ação da Brigada Militar, a qual recebe os acionamentos feitos pela própria vítima, por algum parente ou vizinho. Segundo o delegado da Delegacia de Polícia de Flores da Cunha, Rodrigo Duarte, nos demais casos, onde não há o flagrante delito, os fatos chegam à polícia por ocorrências feitas pelas vítimas e que, posteriormente, são apuradas pela delegacia local.
Com o objetivo de proporcionar mais segurança para que as pessoas possam denunciar, o município oferece proteção por meio do encaminhamento dos requerimentos de medidas protetivas de urgência, os quais, conforme o delegado, são avaliados pelo Judiciário e, caso deferidos, os agressores são intimados da ordem judicial, cujo descumprimento pode acarretar em decreto de prisão preventiva.
“É importante apontar que a legislação penal possui diversos crimes contra a liberdade sexual e, dentre eles, tipos diferentes de estupro. O caso – registrado em abril de 2022 – se refere a figura do crime de estupro de vulnerável, no qual a vítima, via de regra, é menor de 14 anos. É importante indicar que esse tipo de crime, na maioria das vezes, repousa no âmbito doméstico e envolve integrantes da própria família (diretos ou indiretos) ou pessoas muito próximas a ela, sendo, assim, nestes casos específicos, fundamental a realização de denúncias (mesmo anônimas) por pessoas que tenham conhecimento dos fatos, haja vista a evidente hipossuficiência em relação aos agressores”, reforça Duarte.
Ainda no que se refere ao crime de estupro e ao fato de, por diversas vezes, as mulheres assumirem o papel de culpadas, devido aos pré-conceitos existentes, o delegado enaltece: “Acredito que, em nenhum caso de violência, o rótulo de culpado(a) deve recair sobre a vítima, visto que a ação egoísta e criminosa decorre exclusivamente do agressor. Entretanto, o referido pensamento, ainda é muito presente no meio social, sendo, por isso, fundamentais as campanhas de incentivo à denúncia e, principalmente, de orientação à comunidade sobre as mazelas da violência doméstica e os seus graves efeitos sobre a estruturação familiar”.
Por isso a importância de campanhas como o Agosto Lilás, que ocorrem anualmente com o intuito de encorajar ainda mais as mulheres, bem como combater e inibir tais situações no Brasil: “Qualquer tipo de campanha de incentivo é importante, pois, principalmente nos casos de violência doméstica, a decisão de dar fim às práticas criminosas reiteradas depende quase que exclusivamente da vítima. Salienta-se que a decisão de interromper o ciclo de violência é fundamental para o impedimento da reiteração de condutas violentas no seio doméstico”, finaliza Duarte.

Números não mentem
Mesmo com as recentes ocorrências relacionadas à violência doméstica, o município tem razões para comemorar. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS), Flores da Cunha não identificou nenhum caso de feminicídio consumado e tentativa de feminicídio no período de janeiro a abril, nos últimos três anos.
Os números de ameaças no primeiro quadrimestre também apresentaram redução, passando de 33 casos, em 2020, para 27 em 2021 e baixando para 20, neste ano. Já os indicadores de lesão corporal apontam uma estabilidade em 2022 em relação a 2021, em ambos foram 11 registros. Em 2020 esse dado foi um pouco acima, com 14 fatos. No que diz respeito ao crime de estupro, os números variam entre 2, 3 e 1, respectivamente. Confira as informações detalhadas na tabela abaixo:

“Precisamos dar um pontapé inicial”
A histórica luta feminina em busca de seus direitos, passando pelas discriminações ao longo de décadas e chegando ao denominador comum de que a desigualdade passa por um problema cultural, foram alguns dos fatores que serviram de inspiração para a delegada Aline Martinelli lançar, em 2020, o livro “Violência Doméstica e Atuação Policial”.
A obra foi escrita antes mesmo de Aline assumir a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), em Caxias do Sul, no período em que ela esteve à frente da Delegacia de Polícia de Flores da Cunha, na qual permaneceu por mais de 11 anos.
De acordo com a delegada, é importante que as mulheres sejam incentivadas a denunciar relacionamentos abusivos, ameaças, agressões físicas e verbais. E justamente para encorajá-las é que existem a Deams: “Elas destinam-se, exclusivamente, aos delitos ocorridos no âmbito familiar ou em relações íntimas de afeto, dessa forma, contam com ambiente muito mais humanizado e com equipe técnica mais atuante e especializada. Contudo, os demais agentes policias também recebem treinamento”, explica Aline. A delegada também complementa destacando que os espaços contam com uma rede de apoio em grande parte dos municípios, junto aos serviços municipais e da rede de saúde: “Existe atendimento psicológico inicial, atendimento médico, se necessário, e até mesmo, local de passagem às vítimas e seus filhos; em Caxias do Sul esse lugar é a Casa Viva Raquel”.
Além da necessidade de ambientes especializados para acolhimento, também é fundamental a realização de campanhas que visam informar a população acerca dos direitos das mulheres, bem como divulgar os canais de denúncia e as demais ferramentas disponíveis: “Infelizmente ainda temos muitos casos, trata-se de um problema não apenas criminal, mas também cultural, e as inúmeras campanhas vêm neste sentido, de forma a divulgarmos dados e prevenirmos a ocorrência dos crimes”, revela Aline.
E esse amparo deve acontecer nas mais variadas situações, prova disso é que, entre os registros policiais mais comuns da Deam, no ano passado e neste, destacam-se: “Ameaças, lesões corporais, vias de fato, injúrias, perseguições, e descumprimento de medidas protetivas de urgência. Mas existem casos mais graves de estupros e do próprio feminicídio”, elenca a delegada, ao mesmo tempo em que defende que a Lei Maria da Penha é a quinta mais efetiva do mundo na defesa dos direitos das mulheres que sofrem algum tipo de violência. “De fato, ela poderia ser melhorada, mas podemos dizer que é uma lei muito eficaz, na medida em que protege e traz um plus às vítimas. Ela trouxe a possibilidade da concessão de medidas protetivas de urgência e o afastamento dos agressores do lar, a proibição de aproximação, entre outras. Mas também criminalizou várias condutas como, por exemplo, o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência e a possibilidade de prisão do agressor”, enaltece.
O medo da exposição, dos julgamentos, da instabilidade emocional e financeira, além da própria ameaça e de que as manifestações violentas se agravem, são alguns dos fatores que fazem com que as mulheres hesitem na hora de registrar uma ocorrência. Por isso, Aline ressalta que elas podem ser feitas de forma remota, via telefone disque 100 e pelo 180, ou também por meio da Delegacia Online, pelo site www.policiacivilrs.com.br. No entanto, ela frisa que, seria importante realizá-la pessoalmente em qualquer Delegacia de Polícia: “Ao meu ver é a forma mais eficaz, uma vez que ela irá fornecer mais dados aos policiais (localização do suspeito, existência de armas, dados do fato, encaminhamento ao DML) e ao Poder Judiciário. Terceiros também podem denunciar, de forma anônima, o importante é registrar, afinal, todos temos responsabilidade em evitar a ocorrência de qualquer crime e o primeiro passo é a denúncia. Precisamos dar um pontapé inicial”, finaliza. 

 - Divulgação
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