De setembro passado ao final de janeiro recente, o índice de chuvas na Serra Gaúcha – registrado pela estação agroclimatológica da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves – foi equivalente ao dobro do que é normal no período, prejudicando seriamente a viticultura. No término de janeiro surgiu uma ‘centelha no fim do túnel’: a previsão do tempo, para fevereiro, era de chuva pouco abaixo do padrão na maior parte do Estado. Contudo, na principal região vitivinícola do país, considerando as informações dos dois maiores municípios produtores, o prognóstico não se confirmou. Em Flores da Cunha, a estação da Prefeitura apontou um nível de precipitação pluviométrica, no mês passado, de 241,2 milímetros – diante de uma média, de 2002 a 2009 (veja mais na tabela abaixo), de 123,05 milímetros. Em Bento Gonçalves, novamente conforme a estação da Embrapa Uva e Vinho, choveu 161,4 milímetros em fevereiro, quando a ‘normal climatológica’ (a média para o mês, calculada com base nos dados de 1961 a 1990) é de 139 milímetros.
Em resumo, o que se deu neste ano foi um quadro climático absolutamente indesejável para o cultivo da videira. “Esta foi uma das piores safras que acompanhei como enólogo”, diz Antonio Salvador, na condição de quem detém 38 anos de profissão. Na posição de quem presta serviços em enologia a 16 estabelecimentos (de 4 municípios: Caxias do Sul, Farroupilha, Flores da Cunha e Nova Pádua), além de ser proprietário e diretor-geral da Vinícola Salvador, em Flores da Cunha, ele é alguém, portanto, com autoridade para falar do padrão de vindima que se teve este ano na região. “Foi uma safra difícil, sim, mas foi possível fazer vinhos de qualidade”, sintetiza ele. “Mas isso graças a todo o conhecimento técnico e tecnologia de que se dispõe atualmente: se fosse há 30 anos, diante da matéria-prima que, em regra, se teve este ano, não se poderia ter um vinho bom, porque os recursos eram limitados”, acrescenta. “Com as dificuldades climáticas, tivemos de triplicar os cuidados com o manejo da videira, para obter matéria-prima dentro de nosso padrão de qualidade”, ratifica a engenheira agrônoma Roberta Boscato, da Boscato Vinhos Finos, de Nova Pádua. “Também para nós, nesta safra, foi muito difícil chegar aonde chegamos”, completa o enólogo Clovis Boscato, pai dela e diretor da casa, reconhecida por seu senso de perfeccionismo.
Mas lançar mão do suporte enológico para transformar em algo melhor uma matéria-prima aquém das expectativas tem seu preço... “Há um custo alto para se elaborar um vinho razoável quando a uva teve a sua qualidade prejudicada”, assinala Salvador. De acordo com ele, neste ano, além de uma correção inicial com açúcar, a chaptalização (permitida por lei para aumentar a graduação alcoólica do vinho até certo limite – 3ºGL, no caso), foi preciso também corrigir o vinho ou suco com álcool vínico ou suco concentrado, respectivamente.
Casos e casos
Conforme Antonio Salvador, as variedades que talvez tenham sido mais afetadas pela ‘falta de colaboração’ do clima sejam a tinta Bordô e a branca Niágara. Da primeira, conta ele, chegou a ter de vinificar cargas de uva com apenas dez graus babo. De outra parte, a cultivar Vitis vinifera Moscato branco apresentou (ou tem apresentado: dependendo da microrregião, a colheita ainda não acabou) boa condição enquanto matéria-prima para a elaboração de espumantes. A tinta também vinifera Merlot (com uma média de 17 graus babo, apta, assim, apenas à elaboração de ‘vinhos jovens’, para consumo até dois anos depois da safra) é por ele citada como outra cultivar cujo padrão acabou se sobressaindo. Em relação a mais conhecida variedade Vitis vinifera, a tinta Cabernet Sauvignon, ainda por colher em boa parte da região, Salvador diz que irá acompanhar o andamento da safra, para definir se, em seu estabelecimento, receberá a uva. “Mas certamente há quem tenha estrutura em viticultura e enologia para mesmo nessa safra elaborar vinhos de guarda”, ressalva, citando, como exemplos locais, as vinícolas Argenta e a própria Boscato.
As causas da baixa qualidade da matéria-prima, detalha o enólogo, foram a alta umidade associada ao calor excessivo e um elevado índice de precipitação pluviométrica durante praticamente todo o ciclo da videira – a partir de setembro. Tendo em conta tais elementos, a uva foi atacada por doenças como as podridões (Botrytis) e a mufa (também conhecida por peronóspora ou míldio). Salvador, todavia, afirma que o quadro poderia ser ainda pior: “Se a chuva em excesso tivesse começado ainda na floração e continuado como de fato ocorreu, não teríamos produção nenhuma esse ano”, avalia.
Exceções à regra
A produção de uva pode ser simbolizada por um triângulo, cujos vértices seriam o solo, a condição da planta (videira) e o clima, tendo o fator humano como um elemento comum, que interage sobre todos, por meio do manejo da videira. É por ter essa filosofia como diretriz que a Boscato Vinhos Finos, de Nova Pádua, está concluindo (nesta ou na próxima semana, com a variedade Cabernet Sauvignon) a safra 2010 com “a consciência de que o melhor foi feito e que será possível oferecer bons produtos ao mercado”, afirma a engenheira agrônoma do estabelecimento, Roberta Boscato. Ainda em relação ao conceito utilizado pela empresa, ela assinala que “o que se tenta não fazer na Boscato é analisar as coisas somente sob um ângulo: é uma ilusão pensar que o clima, por si só, responderá pela qualidade da produção”. Assim, a casa monitora permanentemente 82 parâmetros (como o Índice de Polifenóis Totais (IPT), por exemplo), para determinação do ponto de colheita e destinação da uva, quanto às categorias (três no caso, relativas às suas marcas: Boscato, Reserva Boscato e Gran Reserva Boscato) adotadas pela empresa para posicionamento de seu vinho.
Para se ter uma noção das minúcias usadas na produção vitícola: em 2006 a casa implantou sistema de irrigação automática por gotejamento em seus vinhedos próprios. Também naquele ano, instalou estação meteorológica, para controle das diversas variáveis de clima (temperatura, umidade do ar, radiação solar, ventos, umidade dos solos etc.). O sistema, automático, permite definir, por exemplo, a variedade, o clone e o porta-enxerto que serão implantados em determinada parcela dos 14 hectares de vinhedos próprios, dos quais sai entre 30% e 40% da matéria-prima utilizada pela vinícola na elaboração de vinhos finos.
Em relação a esta safra, Roberta concorda que o clima não foi bom. “Parreirais que não estavam com 100% de sua plenitude tiveram, realmente, problemas”, diz, usando, como analogia, o que acontece com o ser humano no caso de uma patologia (se o organismo está são, é mais difícil ficar doente). “Para nós, os problemas com o clima significaram uma diminuição da produção”, complementa ela, detalhando que o estabelecimento produz, anualmente, uma média de 400 mil litros de vinho, volume cuja queda ainda não foi estimada pela vinícola.
Revolta contra a mesma remuneração desde 2007
Recentemente, o Conselho Monetário Nacional anunciou o valor de R$ 0,46 ao kg de matéria-prima de cultivar americana ou híbrida com 15 graus glucométricos como preço mínimo da uva. Com o anúncio, foi mantido valor praticado desde 2007.
Tanto quanto lamentar a medida, o líder principal dos viticultores teme que nem o mínimo seja cumprido, como afirmam os produtores em relação à safra 2009. “Vai ter de novo, sim, gente que não vai cumprir com o preço mínimo da uva”, prevê, indignado, o coordenador da Comissão Interestadual da Uva e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Flores da Cunha e de Nova Pádua, Olir Schiavenin. “Se o governo não faz cumprir a lei, quem poderá fazê-lo?”, segue, apontando que nesta safra os viticultores contabilizam perdas devidas à redução de volume e qualidade na produção paralelamente a um aumento significativo no custo de produção (por conta das adversidades climáticas). Ele reclama, ainda, da falta de apoio político, seja na Assembléia Legislativa ou Congresso, aos viticultores.
Em relação ao volume da vindima, Schiavenin estima uma perda considerável, que “irá surpreender”, acima de 30%. O diretor-executivo da Associação Gaúcha de Vinicultores (Agavi), Darci Dani, acredita que não haverá quebra da safra. Para ele, uma das principais ‘lições’ da vindima é a constatação de que “os benefícios propiciados por sistemas de condução do vinhedo como o Y ou a espaldeira, neste tipo de vindima, se potencializam”.
“Esse ano não temos safra nem preço”, queixam-se viticultores
Um caso de viticultor que sofreu perdas por causa do grande volume de chuva e alta umidade associada ao calor excessivo desde setembro é Idalino Izéria, do Travessão Divisa, de Nova Pádua. Dos 230 mil kg previstos para esta safra, apenas 120 mil serão colhidos. “É uma das piores vindimas dos últimos anos. No ano passado tínhamos safra, mas não tínhamos preço. Esse ano não temos safra nem preço”, queixa-se o agricultor, que produz uvas das variedades Niágara, Isabel, Moscato Embrapa e Couderc 13, entre outras. Segundo Izéria, as cultivares mais prejudicadas foram as tintas. “Não têm gosto de uva e ainda estão verdes. As brancas ainda estão melhores”, afirma ele.
As perdas ainda não foram contabilizadas, mas o produtor já teve que recorrer ao seguro, por conta das chuvas de pedra, e aponta dificuldades para o próximo ano. “Esse ano, o mesmo que ganhar vou gastar: o problema não é perder, mas não conseguir repor para a próxima safra”.
Uva jogada fora
Uma situação extrema a que se assistiu nesta safra foi a protagonizada por Avelino Cassol, 52 anos. A produção de uva nos cerca de dez hectares na propriedade da Sulvin, na Linha 80, era o pouco de esperança que ainda restava ao agricultor para reaver dinheiro a ele devido pela empresa – que fechou as portas há quase um ano –, parte do qual reivindica na Justiça. No entanto, mais de 40 toneladas da fruta ficarão nas parreiras devido a sua má qualidade. Além disso, mais de 3 mil kg foram jogados fora porque nenhuma vinícola quis receber. De acordo com Cassol, que diz que usou o pouco de dinheiro que ainda tinha na compra de insumos e tratamento para as videiras, a produção, de qualquer modo, será insuficiente para cobrir as despesas. Ele estima uma colheita de cerca de 45 mil kg, especialmente das variedades Bordô e Isabel.
Premiação na Festa da Uva
No dia 27 de fevereiro, Aurélia Mazzarotto Araldi recebeu o troféu ‘Festa da Uva 2010’ pelo 3° lugar no concurso de uva Bordô. Entre os vencedores, Aurélia era a única mulher. (Foto/Divulgação)
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