Travessão Martins: Onde se repousa a história
Campo Santo dos Imigrantes, cemitério antigo do Travessão Martins, foi o primeiro patrimônio histórico tombado no município
O primeiro cemitério da capela São Martinho. O último cemitério de imigrantes italianos mantido com as características originais. Por esses e outros motivos, o Campo Santo dos Imigrantes virou, mais de 100 anos após sua construção, ocorrida no final do século XIX, o primeiro patrimônio histórico municipal tombado de Flores da Cunha.
E nesse local, por trás do túnel de árvores, o que não falta é história. Cercado por uma taipa de pedras, o cemitério abriga em torno de 80 italianos enterrados entre os anos de 1890 e 1940, além de 40 revolucionários mortos em uma emboscada durante a Revolução de 1923, que dividiu o Rio Grande do Sul entre chimangos e maragatos. Esses jazem no limbo, local reservado para os desconhecidos, os não-batizados e os pecadores públicos, uma particularidade da cultura religiosa italiana.
Os mortos eram enterrados a sete palmos do chão, até onde se acreditava que ia a terra abençoada. Outras características do cemitério são a lápide em pedra grês, os epitáfios escritos em talian e as cruzes de ferro confeccionadas artesanalmente. “Muitos imigrantes eram artesãos. Os ferreiros da região até competiam para ver quem fazia a cruz mais bem feita. Lembro que quando eu era pequena, havia mais de 100 cruzes, hoje acredito que tenha 16, porque o pessoal ia lá buscar o ferro para fazer as ferraduras dos cavalos”, conta a historiadora Fátima Caldart, que aprendeu com o pai, Domingos, a valorizar a tradição do local.
Desde criança, ela o acompanhava na limpeza do cemitério, na véspera do Dia dos Finados. “O pai nos levava lá, nós capinávamos tudo, deixávamos tudo limpo. Depois, fazíamos as covinhas de terra e, com o cabo da enxada, a cruz em cima. Era um ritual. Enquanto se fazia isso a gente não ria, não gritava, a gente tratava com muito respeito”, recorda Fátima.
Com a construção do cemitério atual da comunidade, que teve o terreno doado pela avó da historiadora, aos poucos foi se deixando de lado o cemitério antigo, localizado ao lado da antiga estrada que ligava as famílias Panizzon e Gazzi, a cerca de 50 metros da estrada Ricardo Panizzon. Ao todo, a comunidade já teve quatro cemitérios, sendo que apenas o atual está ativo, próximo à Capela, na beira da estrada que leva a Nova Pádua.
Esquecido pela comunidade, o Campo Santo dos Imigrantes foi, durante muitos anos, mantido pela família Caldart, em especial por Seu Domingos, conhecido como o guardião do local. “Meu pai nunca esqueceu desse cemitério. Ele seguidamente ia lá, roçava. Aí o vizinho derrubou um pedaço da taipa para que os animais pudessem entrar e comer os pastos. Era uma maneira de alimentar as vacas e também de manter o local limpo”, diz Fátima.
Com o amor herdado do pai, Fátima passou a se dedicar para manter viva a história do cemitério através da Associação Amigos do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi, que articulava com o prefeito da época, Lídio Scortegagna, maneiras de preservar o local. “Por crescer junto com o meu pai, eu comecei a ver a importância que ele tinha. Não é só um cemitério antigo, nem dos meus antepassados: é a história do município, uma coisa espetacular, que não se vê mais”, comenta Fátima, cujas famílias do pai e da mãe estão enterradas ali.
Mas o tombamento histórico enfrentou vários percalços. O terreno teve cinco proprietários até chegar às mãos da família Molon. Herdeira da terra, a viúva de um deles, que não era dali, queria vender a propriedade, mas quando possíveis compradores viam o cemitério, encerravam o negócio na hora. Então, a proprietária foi para a Justiça, que concedeu a ela uma liminar para demoli-lo.
“Fomos chamados de surpresa. Nós tínhamos cinco dias para retirar os nossos mortos e depois ia ser passada a patrola. Aí foi uma luta. Fomos em uma comissão de 30 pessoas falar com o juiz. Ele até nos deu mais um mês para resolver o problema, mas a advogada da proprietária reduziu esse prazo para cinco dias. A única solução era encontrar alguém que comprasse essa terra sem demolir o cemitério”, detalha Fátima.
No mesmo dia, por uma incrível coincidência, Fátima foi a um velório e encontrou por lá um membro da família Venturin, a quem pertenciam as terras ao lado do Campo Santo. “Eu pensei: eu vou falar com ele para que eles comprem essa propriedade. Chorei, implorei. No dia seguinte, os irmãos se reuniram e decidiram comprar. Então, antes dos cinco dias de prazo, fomos avisar a advogada de que nós tínhamos um comprador”, ela conta.
Segundo Fátima, a família, que também tinha antepassados enterrados ali, colocou apenas uma condição para que o negócio fosse feito: “a de que nós fizéssemos um trabalho junto à prefeitura para se desapropriar do terreno e fazer dele um patrimônio histórico. Um deles me disse: eu e meus irmãos valorizamos, mas daqui a 30, 40 anos, vai acontecer a mesma história, alguém vai querer vender”.
Assim, no dia 11 de agosto de 2018, o prefeito Lídio Scortegagna assinou o decreto do tombamento do primeiro patrimônio histórico municipal de Flores da Cunha: o Campo Santo dos Imigrantes – o Casarão dos Veronese foi tombado em 1986, mas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae). Depois, viraram patrimônios municipais o Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi e o Campanário da Igreja Matriz.
Os trâmites do processo se prologaram até novembro de 2019, quando enfim houve a inauguração da revitalização do cemitério. A cerimônia não pôde contar com um participante ilustre, que seria o mais importante de todos: “Quando acabou o restauro, meu pai morreu. Ele não estava para a inauguração. Eu me lembro que ele já não conseguia caminhar porque doíam as pernas dele, mas ia lá de trator, com o cachorro, acompanhar as obras. Quando estava restaurado, ele se entregou”, diz Fátima sobre o pai, falecido em setembro daquele ano.
A ligação umbilical da historiadora com o Campo Santo vem também do avô, que acompanhou o enterro dos 40 revolucionários acolhidos pela comunidade em 1923. Mas ela se entrelaça com uma história ainda mais antiga: a dos seus antepassados italianos. “O cemitério tem essa conotação de um lugar triste. Mas quando eu entro lá, eu sinto a alma de todos os imigrantes. Eu tenho a impressão de ver a memória deles, deixando a terra natal e indo para o desconhecido, com pouca esperança de verem aqueles que deixaram por lá”, diz Fátima sobre o local onde hoje repousa a história.
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