Geral

Quando a colônia se aproxima da cidade

Cada vez mais as pessoas buscam centros urbanos para morar e muitas fazem manobras para permanecer com seus negócios na área rural. O reflexo disso é que alguns jovens estão percebendo que trabalhar no interior pode ser um bom e lucrativo negócio

Aquela velha história do sonho de ter uma casa no interior, respirar o ar puro todas as manhãs ouvindo o som dos passarinhos cantando não é uma realidade absoluta. Cada vez mais as pessoas buscam centros urbanos para morar. Muitos fazem manobras para permanecer com seus negócios na área rural, conciliando a vida urbana. O caminho inverso também ganha força, ou seja, moradores do interior que acordam cedo e se deslocam para a cidade em seu emprego ou estudo. A facilidade das estradas ajuda na pequena viagem diária que faz parte da rotina de cada um. Um reflexo disso é que muitos jovens, mesmo não morando mais no interior, estão percebendo que trabalhar na colônia pode ser um bom e lucrativo negócio.

“A contradição entre viver no campo ou na cidade, entre ser e ter, entre pensar e fazer, mostra o quanto o ser humano vive entre dois polos. O desafio é encontrar o equilíbrio, o meio termo, a difícil arte de ir nem tanto ao campo, nem tanto à cidade.” Esse é um trecho do livro Sementes do Tempo – Agricultura lucrativa familiar, que teve a organização da psicanalista Márcia Tolotti e do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Flores da Cunha e Nova Pádua (STR), Olir Schiavenin.

O estudo abordou a agricultura familiar do modo lucrativo e os motivos pelos quais se registra o êxodo rural. “O projeto como um todo teve um resultado bastante expressivo com a intenção de fazer com que as pessoas percebessem a qualidade da vida no campo de um ponto de vista profissional. O agronegócio é o setor que mais movimenta dinheiro no mundo. Então, se os jovens perceberem a possibilidade econômica e, aí sim, estudarem e fizerem um retorno com essa técnica aplicada, isso vai ter um sentido mais interessante”, resume a psicanalista.

O permanecer na colônia
O projeto apontou a vontade de grande parte dos jovens de deixar o campo para trabalhar e morar na cidade. Rural e urbano há anos marcavam duas situações distintas de ser no mundo: ser da cidade e ser do campo. Morar na cidade era trabalhar na cidade e morar no campo era trabalhar no campo. Hoje essa visão se modificou e já não está mais determinada com tamanha força. “Na cabeça do jovem o trabalho na cidade ainda é muito forte por ser um trabalho mais limpo, menos pesado e isso é uma visão mítica na medida em que as horas de trabalho na área urbana muitas vezes são maiores e o rendimento não alcança o que a produção na colônia acaba alcançando”, pondera Márcia.

Diante desse quadro, foi se percebendo que os jovens, muitas vezes, não conheciam a própria realidade buscando por uma vida idealizada nos centros urbanos. Os projetos têm como objetivo evitar essa migração do campo para a cidade pelo menos não antes dos jovens analisarem bem sua realidade. “Alguns jovens começaram a perceber e se dar conta de que é possível sim ter uma rentabilidade boa, porque é isso que interessa a eles, e ter uma qualidade de vida melhor do que morar na área urbana”, enfatiza a psicanalista.

Um dos aspectos sentidos no estudo, que explicam o êxodo rural, é em decorrência do preconceito linguístico. “Muitos jovens abandonam o interior por vergonha, uma decorrência desse preconceito. A percepção é que esse movimento de saída é muito mais uma relação afetiva, por vergonha e preconceito, do que por impossibilidade financeira ou trabalho”, sustenta a especialista.

A saída da colônia na busca por cursos profissionais e educação muitas vezes faz com que o jovem perceba no interior uma oportunidade lucrativa de negócio, retornando para a colônia para trabalhar. “Eu espero que essa seja uma tendência, isso é um trabalho de qualificação do agronegócio. Se por questão de estilo de vida esses jovens resolvem morar na cidade, que mantenham como ofício e trabalho a agricultura ou algum setor ligado a isso. Nessa tendência ele pode sim estar desenvolvendo uma visão estratégica, transformando essa pequena propriedade em um negócio, rompendo justamente essa questão de preconceito. Alguns movimentos ao longo dos anos conseguem captar e perceber a viabilidade econômica que existe na área rural”, acredita Márcia.

Estudar e ficar no interior?
Segundo o presidente do STR, Olir Schiavenin, a pergunta é frequente: Estudar e ficar na colônia? Para manter a juventude é necessário que o rural seja um local atrativo, bom de viver e morar. Para isso, é necessário oferecer as condições para que o jovem se sinta seguro em relação ao futuro. “Dessa forma é necessário garantir uma série de pontos, tais como inclusão digital, educação, segurança, renda, infraestrutura, pesquisa, assistência técnica, agregação de valor ao produto (agroindústria), lazer. Oferecer ao meio rural tudo o que existe no urbano”, resume Schiavenin. Dos itens citados e vindo de encontro à pesquisa, o mais importante para os jovens é a renda.

Um dos motivos que está diretamente relacionado ao êxodo rural é a educação. Acompanhando a evolução das atividades produtivas, basicamente agrícola, até seis ou sete décadas atrás a população urbana foi se deslocando do campo para as cidades. A decisão de imigrar normalmente tomada em nível individual ou familiar, traz implícita expectativa de melhoria de vida e tem longa data o consenso de que os motivos econômicos predominam sobre os demais, além do acesso à educação. “A educação que eles (filhos de agricultores) recebem é quase totalmente voltada para o urbano. Se a pessoa não tiver perspectiva de renda não permanece em atividade nenhuma. Deve também gostar do que faz. E o conceito de trabalhar na colônia e estudar é quase sempre algo que não soa muito bem perante os colegas. Sou testemunha disso, pois cursei faculdade morando na colônia durante vários anos”, complementa Schiavenin.

Para o líder sindical, casos de jovens que saem para estudar e depois retornam para o interior não são tantos. “A verdade é que a maioria que sai para estudar não volta a trabalhar na colônia. Acho que o retorno não é uma tendência generalizada e nem espelha a situação da maioria. Aqueles que voltam é porque têm uma propriedade bem estruturada e diversificada com boas perspectivas de futuro e de renda. E têm, acima de tudo, apoio da família, especialmente dos pais, pois são poucas as famílias que estimulam o jovem estudante a trabalhar na agricultura. Infelizmente a maioria dos pais prefere que eles trabalhem em atividade urbana. Ouvimos seguidamente a afirmação de que eles não querem que os filhos passem o que eles passaram antigamente. O que acho ser um grande equívoco”, acredita Schiavenin.

Investimento na qualidade de vida

Ilustrando bem a situação de morar na cidade e trabalhar no interior, o vitivinicultor Vilmar Ulian, 43 anos, acrescenta mais um atributo proporcionado pela pequena viagem diária: a qualidade de vida. Para ele, o caminho de ida ou volta é uma forma de esquecer os problemas e ir para casa ou para o trabalho com mais tranquilidade. Os cerca de 28 quilômetros percorridos diariamente não são encarados como algo negativo.



Há anos Ulian saiu da propriedade dos pais, na Linha 80, em Flores da Cunha, para trabalhar em outro negócio. Nesse período fez o caminho inverso: saía da colônia para trabalhar em Flores. Anos depois resolveu voltar e investir, com os pais, na vinícola da família, porém, residindo com a esposa Rosane na cidade. Hoje Ulian trabalha no interior tem a ajuda, além de Rosane, dos filhos Carla e Eduardo.

A opção de morar na cidade e se deslocar para o interior veio primeiramente devido à facilidade do estudo para os filhos. “Na parte da manhã era feito o trabalho de banco da vinícola; agora não é preciso se deslocar, já estamos na área urbana. Morar na cidade e trabalhar aqui é bom para você se desligar um pouco de onde você está, a ida e a volta são importantes para espairecer e poder me desligar da empresa. A tranquilidade de você estar fora de onde trabalha é diferente. Faz bem para mim e para a minha família”, destaca Ulian.

Para o vitivinicultor, a vida entre o interior e a cidade é perfeitamente ajustável a uma rotina saudável. “Hoje dá para conciliar muito bem o trabalho na colônia e a residência na cidade, ou vice versa. A colônia hoje é informada, tem computador com acesso à internet, jornal na porta, coleta de lixo, abastecimento de água... Nosso interior está muito privilegiado. As estradas estão, em sua maioria, asfaltadas, facilitando a ida e vinda”, opina o empresário.

Os gastos com o deslocamento são encarados como um investimento em qualidade de vida, além das oportunidades de estudo e aperfeiçoamento. “Um dos pontos que me fez sair da colônia foi a busca por conhecimento. Eu estava estudando e quis me aprimorar e também conhecer pessoas e contatos que até hoje auxiliam aqui na empresa. É bom buscar um conhecimento fora, é um estágio importante para conhecer, mudar e voltar com uma visão bem diferente e aberta”, complementa o agricultor urbano.

Números apontam o crescimento das cidades

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população rural que havia diminuído nos anos 1980, cresceu 0,5% na década seguinte. O levantamento mostrou também que embora a população rural tenha crescido, as pessoas não continuavam trabalhando na agricultura – buscavam trabalho nos centros urbanos.

De acordo com levantamentos apurados pela ONU-Habitat (programa da Organização das Nações Unidas para assentamentos humanos), cerca de 90% da população do Brasil e do Conesul viverá em cidades em apenas oito anos. Em toda a América Latina – região mais urbanizada do mundo – a taxa de população urbana chegará a 89% em 2050. Em Caxias do Sul, por exemplo, 96,3% dos quase 450 mil habitantes moram na cidade, segundo o Censo 2010 (eram 92,6% em 2000). O relatório intitulado O estado das cidades da América Latina revela ainda que o número de cidades na região aumentou seis vezes em cinco décadas.

No censo do IBGE de 2000, Flores da Cunha contava com 23.678 habitantes. Desses, 40% residiam no interior e 60% na área urbana. No Censo de 2010, a população total era de 27.126 pessoas, e a diferença refletiu na situação dos domicílios: apenas 23% residiam no interior enquanto que 77% moravam na cidade. A área rural perdeu 17% de sua população, ou seja, mais de 3 mil pessoas deixaram a área rural na última década em Flores da Cunha.

O município de Nova Pádua ainda possui a maior parte da população habitando a área rural, porém, a colônia também perdeu moradores. Em 2000 eram 2.396 paduenses, sendo 22% na área urbana e 78% na rural. No Censo de 2010, a população subiu para 2.450 habitantes: desses, 30% estão morando na cidade e 70% no interior. O município paduense perdeu pouco mais de 7% dos moradores da colônia, ou seja, 140 pessoas deixaram o interior.

Caminho inverso

Pessoas que saem da cidade para trabalhar no campo não estão sozinhas. Existem as que fazem o caminho inverso, saem da área rural para trabalhar na cidade. Segundo a psicanalista Márcia Tolotti, as pessoas que procuram a área rural não como trabalho, mas sim como local para morar, seguem muito mais um estilo de vida diferente. “Para quem nasceu na área rural isso fica como uma marca e muitas vezes são predominantes para se pensar nesse estilo de vida”, aponta.

Em âmbito nacional, quase 80% da população vive em cidades, geralmente em busca de empregos e condições de vida. Em cidades maiores os principais problemas estão nos congestionamentos do trânsito e falta de segurança. O que os centros urbanos oferecem em oportunidade acabam tirando em qualidade de vida. Assim pensam muitas pessoas que tentam unir as qualidades de ambos os locais – buscam nas cidades certo comodismo, com farmácia, mercado e comércio na porta de casa, e a calmaria no interior.

Família unida na cidade e no interior

O agricultor Vanderlei Orso, 27 anos, também encara a estrada todas as manhãs. Ele, a esposa Gabriela e o pequeno Vítor, de um ano, se revezam entre as propriedades da família dele e dela. No distrito de Otávio Rocha, a 17 quilômetros do Centro de Flores, os pais de Vanderlei produzem e vendem uvas in natura, e na comunidade de Sete de Setembro, a sete quilômetros dali, a família de Gabriela cultiva uvas cobertas. A jovem família passa o dia na colônia e retorna à noite para casa.



A facilidade de morar na cidade atraiu o casal que, no início da rotina, tinha trabalho fora do interior. Com o retorno para as atividades na área rural a rotina continuou incluindo a área urbana. “Na cidade é tudo mais perto. Se você precisar de uma farmácia ou hospital, ou qualquer outra coisa, está disponível. Ainda mais quem tem um filho pequeno”, avalia Gabriela.

O deslocamento diário é considerado cansativo, ainda mais com os aparatos que envolvem o filho. “Acordar cedo no inverno e vir com ele é cansativo, mas é uma opção de vida. Crescemos no interior e temos as propriedades da família. Quando casamos, tínhamos dúvidas se continuaríamos atuando na colônia. Hoje não temos mais dúvidas”, constata Orso.

Vanderlei Orso, a esposa Gabriela e o filho Vítor se deslocam diariamente às propriedades em Otávio Rocha e no Travessão Sete de Setembro. - Camila Baggio
Compartilhe esta notícia:

Outras Notícias:

0 Comentários

Deixe o Seu Comentário