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Persistência e coragem para uma nova safra da uva

Daniel e Tatiana Giotti estimam perda de 50% na produção deste ano, por outro lado, a qualidade da fruta deve ser alta

Contrariando o ditado popular, na agricultura nem sempre se colhe tudo aquilo que se planta. E os produtores de uva de Flores da Cunha que o digam. Reféns das condições climáticas, eles travam verdadeiras batalhas diárias contra estiagem, granizo, temporais e geadas, tudo isso movidos pelo amor à terra e, claro, sem perder a fé. 
Assim pode ser definido o dia a dia do agricultor florense Daniel Giotti, de 43 anos, que se orgulha em seguir a tradição herdada do pai e do avô. Ele possui parreirais na localidade de Santa Líbera e, ao lado da esposa, Tatiana Andréia Biazus Giotti, de 28 anos, dá continuidade à produção vitivinícola na propriedade familiar de pequeno porte. Seus pais, já idosos, ajudam como podem, e na hora da colheita o auxílio de parentes e a contratação de mais dois safristas costuma ser suficiente para dar conta do trabalho. “A gente começou no último dia 30, alguma coisa nós colhemos antes, mas muito pouco. Isso porque nós dependemos de funcionários e a maioria das vinícolas abriu a partir dessa segunda-feira para receber”, explica Giotti, acrescentando que a produção está um pouco atrasada em comparação aos últimos anos, especialmente no que diz respeito ao teor de açúcar da uva.
“Temos cinco hectares plantados com as variedades Bordô e Niágara, mas 85% é Bordô. Essas uvas vêm praticamente juntas, e temos em torno de 20 dias para colher as duas. Então quando começa a safra trabalhamos de segunda a segunda, não tem sábado, nem domingo”, revela o agricultor, que também já chegou a cultivar alho e cebola, mas reforça que a principal fonte de renda é a uva. 
Renda que é comprometida pelo clima, uma vez que a propriedade não conta com sistema de irrigação, apenas com um açude localizado em uma área mais afastada. “Eu digo que o agricultor tem que ser teimoso, porque ele persiste na esperança de que o ano que vem seja melhor; esperando que o dia de amanhã seja melhor do que o de hoje. Então a ideia é, futuramente, pelo menos uma parte da produção não depender tanto do tempo, ter um respiro com a irrigação”, adianta o produtor. 
Se em 2022 ele colheu 108 mil kg de uva, neste ano ele gostaria de chegar a marca dos 70 mil, (sua produção é para 150 mil kg), mas acredita que a quantidade será ainda menor, já que além da estiagem as parreiras sofreram com duas geadas fortes, em 20 de agosto e 4 de setembro de 2022. “Isso prejudicou bastante, porque interferiu nos melhores cachos e os galhos novos, que já estavam sendo emitidos, foram queimados. Então acabou vindo uma produção menor e o cacho ficou mais curto. Eu calculo 50% de perda na minha propriedade, porque a gente já vem de anos de estiagem, a parreira está fraca e isso dificulta a formação de novos frutos”, relata Giotti, complementando que sua produção anual vem caindo desde 2018. 
“Eu acho que em termos de produtividade essa safra vai ser baixa, mas em qualidade deve ser melhor. Claro que dependemos do clima, se começar a chover uma semana direto aí não temos o que fazer. Por isso eu digo que de 100% da agricultura a gente faz 30 ou 40% e os outros 60, 70% é o clima”, ressalta. 
O agricultor também defende que o cultivo da uva é uma loteria e depende muito da sorte, que deve acompanhar o produtor na hora da colheita, para que a qualidade se mantenha alta: “Eu cheguei, no ano passado, a fazer cargas de Bordô com 17 de graduação, o que é bastante por ser Bordô. Em compensação eu levei umas de 13, porque quando começa a chover no meio da safra a uva perde grau, que foi o que aconteceu”, revela.  
Em relação ao granizo, o florense acredita ser muito pior para a planta do que as geadas. “A gente fica chateado, porque pensa que poderia ser um pouco diferente, um pouco melhor, e como não dependemos de recursos que podem mudar o clima, irrigação ou cobertura, dificulta ainda mais para o pequeno produtor, para o agricultor familiar”, salienta Giotti, lembrando que sua região é propícia ao granizo, que a cada três anos costuma causar prejuízos em sua produção. 
E quando o clima não colabora, as esperanças se concentram na definição do preço mínimo da uva industrial (divulgado em R$ 1,58 pelo Conselho Monetário Nacional, em 2 de dezembro de 2022). No entanto, Giotti tem conhecimento que diversas vinícolas não vão conseguir pagar esse valor. “Eu já entrei em contato com algumas vinícolas e soube que eles têm uma tabela paralela que estão lançando em R$ 1,40; um valor que fica bem abaixo para nós. Como é que vamos conseguir tocar a propriedade assim, a gente tem o clima que não está colaborando, quebra de safra por causa da geada que esse ano foi grande, o custo dos insumos que também é alto, e no final tu acaba entregando teu produto por um valor que nem chega a uma parte dos aumentos”, desabafa o agricultor, acrescentando que a mão de obra e a adubação (eles também utilizam cobertura verde embaixo dos parreirais, com a plantação de aveia e azévem para deixar o solo mais úmido e a terra reter mais líquido para as parreiras) é o que mais pesa na produção, afinal, os reajustes são frequentes e um saco de adubo, por exemplo, pode chegar a custar R$ 300.  
“Apesar de todas as dificuldades que a gente tem, de clima, de mão de obra, de preços que não ajudam, porque eu sempre digo que o vilão não é só o clima, é o valor que a gente ganha também, eu espero que, pelo menos, essa tabela do governo seja cumprida pelas vinícolas. Aí vamos poder respirar um pouco melhor”, conclui Giotti, emocionado.

O Sindicato e a Agavi 

Geadas tardias, frio que se estendeu além do dinício da primavera e períodos de calor antecipado, favorecendo a brotação, são algumas das razões pelas quais a safra deste ano terá perdas consideráveis: “Principalmente nas variedades mais precoces que seriam a Bordô e a Niágara aqui na nossa região. Estimamos em torno de 30% de quebra em relação a uma safra normal, mas estamos esperançosos quanto à qualidade da uva”, revela o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares (STR) de Flores da Cunha e Nova Pádua, Ricardo Pagno.
Qualidade que acaba sendo elevada com um clima mais seco e algumas poucas chuvas: “Poderia até chover um pouco mais, mas acreditamos que será uma safra de ótima qualidade se continuar dessa forma”, explica Pagno, complementando que a colheita está bem no início e que o forte da safra deve ser nesta primeira quinzena de fevereiro.
No que diz respeito ao preço mínimo da uva industrial, o presidente do STR evidencia que a classe ficou satisfeita com o valor estipulado pelo governo e que ele fica próximo ao custo de produção. “A remuneração por qualidade também será boa, afinal, se a uva fizer uma graduação maior que 15 graus o agricultor vai receber mais, consequentemente se for menor, receberá menos. O que nos preocupa é que algumas cantinas acabaram emitindo uma tabela paralela, alegando não terem condições de cumprir o preço mínimo. Então ficamos apreensivos, pois sempre esperamos que o agricultor tenha remuneração justa”, defende Pagno, que acredita que logo a situação se regularizará, pois, a quantidade de uva ofertada será menor, o que vai acabar nivelando o preço.
Por outro lado, o diretor executivo da Associação Gaúcha de Vinicultores (Agavi), Darci Dani, explica que a entidade vem tentando acordos com os representantes dos produtores, ao valor de R$ 1,40: “Eles não aceitaram e foram a Brasília reivindicar um preço maior. As empresas prometem pagar o valor de R$ 1,40, mantendo a proposta já feita, essa foi a decisão tomada na reunião da Agavi”, evidencia. 
Conforme Dani, isso acontece devido a diversos fatores que impactarão no preço final do produto: “O mercado não aceita aumentos, os vinhos importados estão cada vez mais baratos e o mercado está diminuindo em relação ao ano passado. Os estoques estão elevados, em 2022 tivemos um aumento de mais de 20%, e este ano oferecemos um aumento acima da inflação que, pela nossa avaliação, é um valor possível de pagar”, defende. 
Flores da Cunha, o município maior produtor de vinhos do Brasil, produz em torno de 100 milhões de quilos de uva em apenas uma safra e possui cerca de 1,2 mil famílias que se dedicam à produção da fruta. A cidade vizinha, Nova Pádua, colhe em torno de 35 milhões de quilos anualmente e reúne cerca de 400 famílias no cultivo das variedades. Estes dados, informados pelo STR de Flores da Cunha e Nova Pádua, só reforçam a importância da produção de uva para a economia local. 

A Cooperativa

A expectativa de uma boa safra também está alta para quem recebe a fruta. “Isso é muito em função do clima, que foi mais seco, e fez com que a uva produzisse mais açúcar, aroma, cor e ajudasse a amadurecer melhor a fruta”, comemora o agricultor e vice-presidente do conselho de administração da Cooperativa Nova Aliança, Joel Panizzon, de 35 anos. 
Por outro lado, no que diz respeito a quantidade, Panizzon destaca que ocorre uma variação dependendo da região em que as videiras estão localizadas: “Em lugares onde os vinhedos foram atingidos por geadas tardias – no ano de 2022 em algumas localidades chegaram a ser contabilizadas cinco geadas fora de época –, o volume de produção está bem abaixo da média, se comparado às safras que os vinhedos não foram atingidos”, explica, acrescentando que a previsão da Cooperativa florense é receber cerca de 10% a menos que o ano passado. 
Conforme o vice-presidente do conselho de administração, as uvas entregues são originárias de mais de 18 municípios do estado: “A grande maioria está localizada na Serra Gaúcha, mas também temos vinhedos na região da Campanha Gaúcha e Serra do Sudeste. Os municípios em que a Cooperativa possui mais associados e concentra maior produção são Pinto Bandeira, Nova Pádua, Flores da Cunha, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves e São Marcos”, destaca, informando que os municípios florense e paduense, juntos, somam 240 produtores que fornecem para a Cooperativa Nova Aliança as variedades Isabel, Bordô, Niágara Branca, Cora e Moscato. 
De acordo com Panizzon, anualmente  são compradas, em média, 40 milhões de quilogramas da fruta, que serão transformadas em vinhos, sucos e espumantes. Em 2023, a cooperativa iniciou o recebimento de uvas na matriz de Flores da Cunha no dia 16 de janeiro e a previsão de término para a safra é no fim de março.
O agricultor caxiense, Nestor De Gregori, de 65 anos, entregou uma carga da sua produção na última semana para a Cooperativa e reforçou os benefícios de ser um associado: “Meu avô, Valentim De Gregori, foi um dos fundadores da Aliança, em Caxias do Sul, na época em que tinha três ou quatro cantinas lá, e nós nunca vendemos um quilo de uva fora, eu não sei o que é vender uva fora da Cooperativa”, conta o produtor da 6ª Légua, que também destacou as perdas devido ao frio, que se prolongou por sete meses, e a seca que, apesar de ter iniciado mais tarde, causou um impacto cumulativo não só nas parreiras, mas também nas demais frutas que cultiva, como pêssego e ameixa.

O ciclo da uva

No período de maturação da uva é importante que se tenha volumes relativamente baixos de chuva, assim a fruta ficará com uma graduação maior que, de acordo com o secretário da Agricultura, Ismael Fortunatti, é o que tem acontecido no município. “O fator clima, junto com o manejo, é muito importante para a qualidade das uvas que depois vão resultar em uma qualidade dos vinhos. É fundamental que a colheita seja feita dentro do ponto ideal de maturação, não deixando passar”, evidencia Fortunatti, acrescentando que a safra deste ano está um pouco atrasada, cerca de 10 dias em comparação a 2022, mas dentro da média geral de outras safras. 
Já em relação à quantidade de uva colhida, o chefe da pasta prospecta que seja um pouco inferior ao ano passado, considerando as geadas que atingiram diversas propriedades, mas ressalta que vai depender muito do teor de açúcar que a fruta conseguir sintetizar. No caso de agricultores que sofreram perdas com estiagem na última safra, Fortunatti avalia que em 2023 a intensidade da seca está menor para o cultivo da uva: “Em 2021, a última chuva expressiva foi em setembro, mas já vinha de julho e agosto com níveis bem abaixo da média, cenário que se repetiu no mês de outubro. Em novembro, por exemplo, choveu 42mm e em dezembro 25mm, muito pouco. No último ano, para termos uma ideia, em novembro tivemos 93mm e em dezembro 134mm, claro que existe uma grande variação nas propriedades, mas podemos notar chuvas bem expressivas desde maio, que foram se mantendo dentro da média até setembro, com 164mm. Foram dias de chuva considerável, que fizeram com que a planta não tivesse tanta deficiência hídrica”.
É claro que as propriedades que foram bastante prejudicadas na safra passada podem sentir um pouco mais os reflexos do clima nesta, afinal, os efeitos acabam sendo cumulativos para a planta. Contudo, conforme Fortunatti, isso depende muito do tipo de solo de cada variedade, principalmente o da Bordô. “Se for um solo mais argiloso ele sente mais essa falta de água e comparado com o ano passado, que elas sofreram bastante, neste ano foi bem menor a interferência da estiagem para o cultivo da uva”, pontua.

Daniel e Tatiana Giotti  destacam que a produção anual vem caindo desde 2018. - Karine Bergozza
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