Geral

Os jovens e o talian

Variante do dialeto vêneto, língua é preservada e torna-se objeto de estudo pela Universidade de Caxias do Sul

È dopo de tanti anni quiem ainda parla talian (E depois de tantos anos quem ainda fala talian)? Você, leitor, saberia traduzir a pergunta que abre essa reportagem. Pois é, o contigente de pessoas que ainda preservam ou falam a língua talian, uma variedade do dialeto vêneto, diminui a cada dia. A atual geração pouco conhece sobre a língua de seus antepassados e, muitas vezes, ouviu apenas os avós ou algum parente mais velho ainda falando. São poucas as famílias que ainda mantêm o hábito de conversar o talian em casa e quando os jovens começam a frequentar outros ambientes, como a escola, o costume acaba se perdendo. "Os jovens falam mais nas comunidades onde moram. Na cidade ou na própria escola são poucos que falam e são apenas algumas palavras. Mas, isso não atrapalha e deveria ser estimulado, porque daqui duas gerações esse dialeto irá se perder", salienta a secretária de Educação de Nova Pádua, Vivia Fabian Copelli. Mas, sempre existem exceções e alguns exemplos de preservação ainda podem ser encontrados, como é o caso da jovem Juliana Pandolfi, moradora do distrito de Mato Perso, e dos estudantes Samuel Tonello, Juliana Sonda e Micael Tormem, de Nova Pádua, que em meio ao jogo de bisca, não dispensam um "da me ponti (dá pontos)" e "guèto briscole (Você tem bisca). Conforme a professora e coordenadora científica do Projeto Talian da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Marley Terezinha Pertile, cada língua é a expressão única de experiência humana no mundo, pois toda as línguas e, cada uma delas, em particular, incorpora uma cultura e a sabedoria única de um povo. "No momento que se perde uma língua se perde todo um saber, um conhecimento. E muitas das seis mil línguas existentes no mundo estão sob ameaça de desaparecimento, inclusive as línguas da imigração, como o talian", destaca. Para a professora, atitudes positivas ajudam a manter uma língua, até mais que decretos governamentais. "E aqui entra o papel insubtituível da família. É no seio da família que a língua adquire status ou é vítima de preconceito. Para isso, é indispensável que a população seja informada sobre o valor de se manter a língua de origem e sobre o valor que é conhecer várias línguas", afirma. Talian em extinção O talian é uma variante da língua vêneta (língua do norte da Itália). É praticado na Serra Gaúcha e no oeste do estado de Santa Catarina. A variação nasceu no Brasil, entretando atualmente não há um registro oficial do número de pessoas que o utilizam. Estimativas apontam que cerca de 500 mil pessoas ainda usam a língua, sendo que a maioria é bilíngue, utilizando o talian e o português juntos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que em 1940 o censo populacional apontava que 458.054 pessoas – numa população de 50 milhões de habitantes – falavam italiano, ou algum dialeto. "Com o passar dos anos, a língua foi perdendo sua forma escrita e seu lugar nas cidades, passando seus falantes a usá-las apenas oralmente e é cada vez mais nas zonas rurais, em âmbitos comunicacionais cada vez menos extensos", escreveu o linguista e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina, Gilvan Müller de Oliveira, no estudo Brasileiro fala português: monolinguismo e preconceito linguístico. De acordo com a professora Marley Pertile a perda do talian, assim como as demais línguas da imigração, está ligada ao processo conhecido como "nacionalização do ensino". Durante o Estado Novo – período entre 1937 a 1945 – foi proibida a utilização de outras línguas, que não fosse a portuguesa. As escolas comunitárias foram desapropiadas, os jornais em outras línguas fechados e pessoas que falavam suas línguas maternas foram presas e torturadas. "Mas não foi um processo de incorporação de mais uma língua como um rico patrimônio linguístico e cultural, mas de glotocídio (morte das línguas) e de simples substituição e consequente perda da língua de menor poder, no caso, a língua de imigração", explica. Para a professora, alguns fatores ajudam a manter uma língua, como o alto grau de concentração étnica (distribuição da população falante) e o grau de isolamento da comunidade e a atitude dos falantes em relação à língua. "A questão da manuntenção de uma língua é um direito de escolha de todo o cidadão", pontua Marley. O Brasil tem hoje por volta de 200 idiomas. As nações indígenas falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones) e as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (denominadas de alóctones). "Essas línguas encontram-se em perigo de extinção e necessitam de medidas urgentes de revitalização. Uma delas é o inventário do Iphan (veja detalhes no quadro), que tornará público a existência da língua com tudo o que a ela se refere", frisa a professora. È ti, parla talian? Mantendo viva a cultura A estudante Juliana Sonda, 16 anos, acredita que falar o dialeto é uma maneira de manter viva a tradição. Ela comenta que na escola onde cursa o 2º grau em busca de formação na área de biologia não costuma falar muito o talian. No entanto, em casa, com a família, esta maneira de se comunicar vem sendo preservada, já que são descendentes de imigrantes italianos. Embora a tradição esteja sendo mantida pelas pessoas de mais idade, o costume de falar o dialeto aos poucos vai se perdendo, especialmente entre os mais jovens, muitas vezes por vergonha ou por motivos diversos, explica a estudante. De acordo com ela, o diálogo em dialeto ocorre mais no meio rural. “Como a gente vive nesse meio, onde todo mundo fala, a gente acaba acostumando. Mas na cidade é bem menos”, acrescenta. Apesar disso, não há nenhuma interferência nos estudos. Mas, os colegas de aula, que vieram de outros municípios, encontram dificuldades para compreender o que os outros falam em dialeto. Morador da comunidade do Travessão Mützel, em Nova Pádua, a exemplo de Juliana, o estudante Samuel Tonello, 14 anos, diz que o dialeto está presente em todas as comunidades, principalmente no interior, nos seus núcleos familiares. Além de falar o dialeto com os colegas de aula e com familiares, Samuel participa de eventos que mantém vivas as tradições e os costumes dos antepassados, como os jogos de cartas e bochas. No início do mês, Samuel e sua tia Marta Menegat Sonda, mãe de Juliana, participaram da primeira etapa do Campeonato Municipal de Bisca Trio, também conhecido como Briscolão, de Nova Pádua. “É uma maneira de manter a tradição”, garante o estudante da 8ª série, que pretende se formar em Agronomia. Entre uma jogada e outra de cartas é comum ouvir palavras como tchapa, tchapa (pega, pega), fazendo referência para que o companheiro jogue uma bisca e arrecade os pontos. Do outro lado da mesa, um dos adversários do trio responde: 'Giogare, liso, liso' (joga lixo, lixo). Desde pequeno com o dialeto na ponta da língua

Estudante da 2ª série da Escola Estadual de Ensino Fundamental Luiz Gelain de Nova Pádua, Micael Tormen, 8 anos, domina o dialeto. De acordo com a ex-diretora da escola e secretária de Educação, Cultura, Turismo e Desporto de Nova Pádua, Vivia Fabian Copelli, quando o menino ingressou na escola só falava o dialeto. “Le vero (é verdade), respondeu Mica, como é conhecido entre os colegas, ao ser questionado se costuma falar o dialeto. “Um pocheto (um pouquinho) porque quando estava no pré as professoras não me deixavam”, explica. O menino conta que desde pequeno fala o talian, que aprendeu com os pais Salete de Oliveira Tormen e Lourenço Tormen. Colega de aula de Micael, Ketlen Seibert, 7 anos, que veio da cidade catarinense de São Miguel do Oeste, diz que gostaria de aprender a falar o dialeto. A garota conta que não estranha ouvir as pessoas falarem porque em Santa Catarina seus vizinhos falavam a variação da língua italiana. Tanto Micael quanto Ketlen acham importante manter os costumes e levar adiante os ensinamentos adquiridos dos pais e avós.

Inventário da Diversidade Cultural Um projeto-piloto desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Ministério da Cultura, e que tem a UCS como parceira, irá realizar o Inventário da Diversidade Cultural da Imigração Italiana. Segundo o coordenador deste projeto-piloto, o professor, José Clemente Pozenato, "há uma política da Unesco de preservação da diversidade linguística, inclusive no salvamento de línguas em extinção. Coube a nós realizar o levantamento do talian, uma variante do dialeto vêneto". A professora e coordenadora científica do projeto, Marley Terezinha Pertile, explica que um grupo de bolsistas da UCS está trabalhando na localização da língua. Os pesquisadores estão coletando dados nas regiões Nordeste e Norte do Rio Grande do Sul, Oeste de Santa Catarina e Oeste do Paraná. A pesquisa iniciou em 2009 e tem prazo de um ano para ser concluída. "O talian está sendo a primeira língua de imigração a ser inventariada e passível de figurar no livro de registros das línguas como um patrimônio imaterial do Brasil", diz a professora. O projeto está sendo executado pelo Instituto Vêneto, por meio do grupo de pesquisadores da UCS. Está ligado ainda ao Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol) e ao Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística Nacional (GTDLN) e visa propor políticas públicas voltadas ao reconhecimento e promoção do multilinguismo do país. O inventário também irá incluir a culinária da imigração italiana. Cultivando a língua

- "Noaltri qui casa sempre parlemo talian" (Aqui em casa só falamos talian). Na primeira frase, a agricultora Santina Lusa Pandolfi deixa claro qual é a língua dominante da família. É por meio do talian que a família Pandolfi, moradora do distrito de Mato Perso, se expressa. A filha Juliana, de 13 anos, desde criança sempre conversou dessa maneira com a mãe Santina e o pai Oneide. Antes de começar a frequentar a escola, Juliana pronunciava apenas a variação do dialeto e nem sabia conversar em português. "Mas as professoras não entendiam o que eu falava e comecei a deixar o talian de lado", conta a jovem, que hoje está na 8ª série. Ela lembra que as professoras a xingavam quando não conseguia escrever uma palavra em português. "Em vez de escrever capim eu escrevia "herba" (erva) e as profes ficavam bravas", conta. Hoje, a jovem fala o talian apenas em casa, com os primos e com alguns amigos na escola. "As vezes falamos no recreio ou por brincadeira. Tem colegas que não entendem e ficam rindo de nós", revela. O pai conta que fica "cativo" (bravo) quando a família não "parla o talian" (fala o talian) em casa. "Com os meus pais eu só falava o dialeto. Depois comecei a ir para o colégio e não podia falar porque era castigado, mas voltava para casa e lá só falavam o dialeto. Mas, aqui em casa, gosto que a gente fale o talian", afirma. Mas o hábito tem se perdido. A própria Juliana, quando sai de casa para ir ao dentista ou outro lugar, não fala o dialeto. "Falamos em talian com ela, mas ela responde em português", conta o pai. Entretanto, a jovem sabe da importância de cultivar a língua e pretende ensinar aos filhos "para manter a tradição". "Qua coloni è pi facile parlar e tenere la tradicion, qua la città è pi fadiga" (Na colônia é mais fácil falar e manter a tradição, na cidade é mais difícil), finaliza a jovem, em talian.

Talian O talian é uma variante da língua vêneta falada na região sul do país. Ao chegarem ao Brasil no final do Século 19, não havia sido estabelecido um idioma italiano oficial na Itália e o uso de dialetos era predominante. Vindos do norte da Itália, a maioria da população falava a língua vêneta. Esta, com o decorrer do tempo, foi sofrendo alterações, devido ao contato com outros dialetos de imigrantes italianos, e com o próprio português. Embora ainda o talian continue bastante próximo aos outros dialetos vênetos, tanto oral quanto gramaticalmente, as influências externas fizeram nascer um dialeto peculiar, que ficou conhecido como talian.
Em Nova Pádua, estudantes aproveitam jogos de briscolão, típicos dos italianos, para falar dialeto. - Na Hora / Antonio Coloda e Danúbia Otobelli
Compartilhe esta notícia:

Outras Notícias:

0 Comentários

Deixe o Seu Comentário