O caminho das pedras
Na antiga estrada para Vacaria, sobrevivem as ruínas da casa da família Scortegagna
São 3km de um tortuoso caminho de pedras, tomado pela vegetação nativa, que só é vencida pelo facão que Alfeu Scortegagna, 84 anos, leva consigo para abrir caminho. O trajeto é o mesmo feito por tropeiros e suas boiadas que, por volta de 1893, tornou o Alfredo Chaves a principal ligação entre os Campos de Cima da Serra e o Vale do Caí, de onde a produção serrana saía para os grandes centros de consumo. O destino são as ruínas de pedra próximas à margem do Rio das Antas, que um dia já foram o lar da família Scortegagna.
Mas na viagem, o que importa é o caminho – e ele é preenchido por histórias que Alfeu compartilha nos 60 minutos de caminhada, saltos e escorregões até o lote colonial nº 52, onde o bisavô, Giuseppe Scortegagna, se estabeleceu no ano de 1885. “Mas por que lá? Porque era terra fértil, tinha caça e tinha pesca. No local, ele montou um engenho de cana. Como tinha essa estrada para Vacaria, o pessoal ia lá beber cachaça”, conta o bisneto, aos risos.
“A Estrada para Vacaria”, também conhecida como “Estrada Geral”, começou a ser desenhada com a abertura do Passo do Simão, no Rio das Antas, em 1886, quando o Império procurava expandir o núcleo colonial – a via permitia o acesso a Antônio Prado e, a seguir, Ipê e Vacaria. Mal Giuseppe Scortegagna terminou de construir sua casa e o governo de Vacaria abriu uma nova estrada que, ao atravessar o rio, seguia em direção à vila de Nova Veneza, como era conhecido o Travessão Alfredo Chaves – o caminho fora aberto a facão e a picão pelos Scortegagna, que quebraram as pedras com marretas.
Para os que vinham de Vacaria em direção a São Sebastião do Caí, a parada em Nova Veneza após a subida do rio era muito importante para a continuação da viagem, que ainda duraria dois ou três dias. Na época, o Travessão Alfredo Chaves tinha até pousada, se fixando como um importante centro comercial até 1905, quando a antiga estrada foi substituída por um trajeto mais curto (pela vila de Nova Trento) e, gradualmente, abandonada e esquecida.
Mas não por Alfeu que, aos 84 anos e de facão na mão, encara desafios maiores do que os enfrentados pelos tropeiros no caminho, deteriorado pelo tempo e pelo descaso. “Antigamente, nós andávamos 3km para ir à escola. Hoje, o pessoal se queixa quando o ônibus não passa na frente de casa”, diz ele, que também saía do Alfredo e ia a pé até Sete de Setembro, onde morava a namorada Lea, com quem completou 57 anos de casado. “Nunca meus sogros me convidaram para dormir lá, nem quando estava chovendo”, ele brinca.
A caminhada de uma hora com Alfeu é uma viagem ao passado de Alfredo Chaves. Ele conta de um tempo no qual se tomava banho uma vez por semana e dá a localização exata dos primeiros banheiros construídos na comunidade. Também conta como o avô, Reinaldo, pegava areia do Rio das Antas e, em sacos de estopa, a transportava para a construção da Igreja e do Campanário. “Para essas igrejas do interior, ninguém cobrou nada, foi tudo doado”, afirma.
Daquela época, Alfeu valoriza a seriedade e o voluntarismo das pessoas. Ele conta que comprou as terras onde mora com dinheiro emprestado de um vizinho: “Eu perguntei se ele tinha dinheiro para me emprestar. Ele nem levantou a cabeça quase, estava cortando trigo, mas disse que sim. Mandou eu ir na casa dele e explicou que a mulher guardava 80 contos dentro de uma caixinha. Eu estava quase saindo e ele me perguntou se eu era um Bordin. Veja: ele me emprestou 80 contos sem saber quem eu era. Naquela época, valia o bigode”, recorda Alfeu.
Entre tantos causos pessoais, ele não tira os olhos do caminho. Em um determinado ponto, lembra que uma mulher deu à luz por ali, usando as pedras para cortar o cordão umbilical do filho. Alceu fala também do local, às margens da antiga estrada, onde estão sepultados revolucionários mortos, homenageados com cruzes de madeira. “Apelidaram um homem de “Beca Morti” porque construiu uma casa lá. Dizem que os mortos são de 1923, mas para mim é mentira. Minha mãe já tinha dez anos nessa época, ela se lembraria”, argumenta Scortegagna.
De fato, é difícil saber quem sabe mais sobre a história da comunidade, se Alfeu ou os livros. E é ao chegar ao lote nº 52, onde nasceram sete dos oito filhos de seu bisavô, que fica claro como ele conhece cada palmo daquele chão. Como se visse a construção erguida, Alfeu detalha cada parte da casa, da qual restam apenas as pedras de fundação, já que a madeira foi consumida pelo tempo. Com o facão, Alfeu aponta a sala, a cozinha, o poço de 9m, a casinha da montaria, o chiqueiro – e ainda, ao lado das ruínas, o que restou do forno e da base do engenho.
Depois de apresentar a casa, ele oferece água e biscoito às visitas, dois jovens repórteres, em seu merecido descanso. Ao tirar o galho de uma árvore, que servirá de apoio pelo caminho de volta, ele olha ao redor e revela: “Essa será a última vez que eu venho aqui”. E se vira de costas, pronto para enfrentar mais 3km de caminhada, dessa vez morro acima, levando na bagagem uma coleção de histórias que, enquanto viver, permanecerão firmes como as pedras da família Scortegagna.
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