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O amor pelo tradicionalismo registrado no nome

Gauchinho herdou do pai o gosto pela cultura rio-grandense e hoje, além de chamar a atenção por sua indumentária, ministra aulas de dança na Serra Gaúcha

Se você, estimado(a) leitor(a), é natural ou morador(a) de Flores da Cunha há algum tempo, certamente conhece ou, ao menos, já ouviu falar de Roberto Ricardo dos Reis, de 66 anos, não é mesmo? Para não forçar demasiadamente a memória, caso sua resposta inicial seja uma negativa, aí vai uma dica: ele carrega o amor pelo tradicionalismo rio-grandense em seu nome, ou melhor, apelido. Estamos falando do Gauchinho, cuja vestimenta chama atenção e dispensa apresentações.
Coincidência ou não, ele nasceu no mês Farroupilha, e no mesmo chão dos Irmãos Bertussi (considerados pioneiros na música nativista do RS): é natural do distrito de Criúva, no interior de Caxias do Sul. Mas, mesmo deixando a terra natal há mais de 30 anos, dos Reis continua vivendo, diariamente, o orgulho de ser gaúcho. Seja por andar pilchado, por ser um apaixonado pela dança gaúcha e pelos bailes, por tomar chimarrão, ou até pela decoração da casa, evidenciada na presença de rodas de carroça, que fazem às vezes de relógio e lustre, dentre outros ornamentos em madeira, que ele próprio produz ao lado da esposa, Carmen Maria Rech – outra admiradora da herança do nosso estado.
“O meu falecido pai, Domingos Ricardo dos Reis, tocava nos bailes e a gente gostava de dançar, íamos junto com ele, desde criança. Então eu digo que o gosto pelo tradicionalismo vem de berço, mas que, andar pilchado é uma opção minha. Tenho irmãos que não usam bombacha e eu já fui mais para o lado do meu pai e sempre gostei, tanto da música como da indumentária, da vestimenta. É herança de família”, emociona-se dos Reis, revivendo a origem de seu amor pela cultura gaúcha.
Contudo, ele começou a ser chamado de Gauchinho aqui por estas plagas, e o apelido não surgiu apenas de seu gosto pelas tradições: “Foi um termo usado pelo diretor de uma rádio, que trabalhei por anos. Como eu sempre usava bombacha e como não sou muito grande, esse chefe começou a me chamar de Gauchinho, e foi pegando, desde aquela época”, lembra, acrescentando que, de lá para cá, já se passaram mais de 30 anos e o apelido ganhou ainda mais força.
“Antes me chamavam de professor, porque eu dava aula de dança gaúcha. Depois ficou professor Gauchinho e, por fim, mais conhecido como Gauchinho”, conta dos Reis, ao mesmo tempo em que revela que alguns florenses ainda o chamam de professor, já que além de ter ministrado cursos em Caxias do Sul e Flores da Cunha, percorreu as cidades de: São Marcos, Farroupilha, Antônio Prado, Ipê, São Francisco de Paula, Lajeado Grande, Feliz e Garibaldi.
No entanto, para que pudesse ensinar outras pessoas, antes era preciso aprender as técnicas corretas, uma vez que ele dançava, mas, no ritmo dos demais, sem uma capacitação específica para isso. “Logo que comecei, em Caxias do Sul, eu tinha colocado uma escola só de dança gaúcha e 90% dos alunos eram crianças. As entidades só pegavam para as invernadas artísticas quem tivesse passado pela minha escola, porque não existiam outras. Então, como eu tinha feito curso pelo Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) juntamente com o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), eu era o único. Na verdade, nós fizemos uma turma no CTG Rincão da Lealdade e somente eu saí de lá dando aula. Quando eu fiz aquele curso, era muito caro, eu não tinha dinheiro, a gente é de família muito humilde e eu tinha que aproveitar e fazer valer a pena”, recorda dos Reis, com carinho, bem como de sua primeira turma de formandos, de quatro a seis anos, que emocionaram os pais durante a cerimônia.
E foi justamente a dança que trouxe Gauchinho para a Terra do Galo, em meados de 1987: “Foi através da 4ª DE (Delegacia de Ensino) – atual 4ª CRE – que as escolas florenses descobriram que tinha uma pessoa em Caxias que dava aula para as crianças, aí eu vim conhecer Flores da Cunha, foi a primeira vez que vim e fiquei até com medo de me perder”, lembra, ao mesmo tempo em que brinca que, naquela ocasião, por estar pilchado, ‘parou’ a cidade, pois, todos olhavam para ele.
A sensação de estranhamento dos florenses, aos poucos, foi sendo substituída pela curiosidade e interesse em aprender os passos da música nativista. “A pandemia fez parar as aulas, mas, antes, tínhamos uma turma grande. O pessoal gosta bastante de aprender e dos meus cursos, então o apelido ajudou até para divulgar, porque 90% das pessoas de Flores da Cunha e arredores não sabem o meu nome, mas sabem que eu sou o Gauchinho”, empolga-se, acrescentando que esse termo foi se popularizando e, mais do que gostar, hoje ele considera um elogio.
Como prova de que dos Reis realmente ‘pegou gosto’ pelo apelido, anos depois, prestou concurso público em Flores da Cunha, passou, e tornou-se servidor público por aqui – função que exerce até hoje –, mas, é claro, sem deixar a dança de lado. “Os últimos cursos aqui no município foram no Salão de Festas Zuppa, uma vez por semana. Eu sempre digo, turma quanto maior, mais é o rendimento do aprendizado e as minhas aulas são de duas horas cada, é puxado, mas, se tiver bastante gente, se distrai, porque é bem divertido, os alunos dançam e nem veem passar. Nessas 20hs de curso o pessoal já sai dançando”, informa, complementando que quando a turma é muito pequena o pessoal não se anima.
O servidor público também explica que o diferencial de seus cursos é que procura orientar sobre a maneira de se vestir, para evitar erros nos trajes da prenda e do peão: “Muitas pessoas confundem a vestimenta artística com a campeira, eu já corrigi muito isso aqui em Flores, que foi onde eu comecei com o pessoal adulto. Eu sempre brinco que, no fim do curso, quando vão comprar uma indumentária para o baile de formatura, os alunos chegam na loja e os vendedores oferecem diversos itens, mas, eles precisam saber que se forem comprar um traje só para baile eles não precisam de chapéu, até porque ninguém dança de chapéu – a menos que seja a céu aberto. Dançar de chapéu, de espora ou de pala é proibido pela tradição”, enfatiza Gauchinho.
Outro ponto destacado por ele, que também faz parte da indumentária gaúcha, diz respeito aos lenços, nos quais cada cor carrega um significado: os brancos fazem alusão aos Chimangos e os vermelhos, aos Maragatos, partidos que disputaram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, em 1923. Ainda conforme dos Reis, os nós também são cheios de simbolismo e determinadas tonalidades não admitem amarrações específicas, portanto, nem todos podem ser utilizados em qualquer ocasião. “Por exemplo, o nó comum para o lenço branco, se eu estou de vermelho com esse nó, eu estou traindo o meu partido”, contextualiza. 
“Temos nós que não podem ser usados no lenço preto, porque ele representa o luto, não é para baile. Claro que tu podes até ir de lenço preto para o baile, se faleceu alguém próximo, mas, tem muita gente que vai na loja e compra um porque vai ter rodeio e quer usar, não é isso. No lenço preto eu também não posso usar o nó pachola, que significa faceiro, pois, se eu estou de luto, não vou estar contente”, evidencia, ao mesmo tempo em que revela que existem diversos tipos de nós, tais como: Farroupilha, Assis Brasil, Lavoura e Quadrado.
Gauchinho, que sempre está pilchado no dia a dia, revela que alguns ajustes são necessários para que ele possa utilizar a indumentária no trabalho, por isso, por vezes, ele abre mão do lenço e opta pelas bombachas mais estreitas: “Já a bota e o cinto eu uso sempre, inverno e verão, sempre de bota, ninguém me viu ainda na prefeitura sem bota, nem no verão”, ressalta, complementando que não possui calças jeans em seu guarda-roupas que é, quase todo, ocupado pelos trajes típicos gaúchos, com exceção de dois ternos. “Posso ficar uns 20 dias usando que eu vou ter roupa, mesmo se o tempo não deixar secar”, conta, aos risos.
Apesar de ser avesso a competições, dos Reis – que já recebeu o prêmio Trajetórias Culturais do RS –  informa que não é contra entidades, muito pelo contrário, já ministrou muitas aulas ensinando as pessoas a declamar, dançar e, até, a dança da chula. “Particularmente acho que a tradição se desvalorizou um pouco, foi se perdendo por causa das competições, quem ganha está lá em cima, mas também no ano seguinte se não ganhar o compromisso é muito maior. Então eu sempre fui contra competição, mas sempre fui fã de apresentação. Eu admiro muito quando eu ensino alguém que dance melhor que eu, fico muito contente porque significa que ensinei bem e a pessoa se esforçou bastante”, comemora.
Questionado sobre o futuro das tradições gaúchas sua expressão muda e ele confessa se sentir preocupado, uma vez que acredita que apesar do bonito trabalho realizado pelos CTGs, logo, eles não conseguirão mais ‘dar conta’ sozinhos. “Uma vez era mais presente nas escolas o tradicionalismo, hoje em dia não. Muitas vezes se dá mais valor ao Halloween ou São João, estão copiando uma cultura de outro estado e não valorizando a nossa, isso atrapalha bastante. Então é preocupante porque tem que começar desde pequeno, na escola. Eu até lancei, em 2008, o concurso artístico florense, que incluía declamação, canto, dança, para que as escolas participassem, que fossem preparando os alunos desde o início do ano letivo, em março, até a Semana Farroupilha, mas, o pessoal foi deixando de lado”, lamenta Gauchinho, que foi até as escolas diversas vezes para preparar as crianças e finaliza afirmando que não descartaria a possibilidade de retomar essa rotina, no entanto, é preciso que haja mais interesse e iniciativas para que a tradição continue se perpetuando de geração em geração. 

A paixão pelo tradicionalismo também pode ser notada na decoração. - Karine Bergozza
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