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Mortes no trânsito são acidente ou consequência?

Número de ocorrências fatais, principalmente de motociclistas, tem aumentado no país segundo dados do Ministério da Saúde. De acordo com especialista, Lei Seca não ajudou a reduzir os óbitos

O número de acidentes de trânsito com morte, principalmente de motociclistas, têm aumentado no país, segundo dados divulgados no início de novembro pelo Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Em 2010, 40.610 pessoas foram vítimas fatais, sendo que 25% delas em ocorrências com motocicletas. As informações revelam que em nove anos (de 2002 a 2010) a quantidade de óbitos ocasionados por acidentes com motos quase triplicou no país, saltando de 3.744 para 10.143 mortes.

O mestre em Sociologia e especialista em segurança e educação no trânsito, Eduardo Biavati, destaca que na última década as mortes de motociclistas cresceram mais de 800%, ultrapassando, nacionalmente, o total de mortes de pedestres, que, historicamente, sempre foi o grupo mais vulnerável do trânsito. “A tragédia sobre duas rodas encontrou terreno fértil no frágil processo de habilitação dos motociclistas e na hostilidade dos demais usuários a compartilhar a via com esse novo elemento – do mesmo modo como ainda resistem a fazê-lo com as bicicletas”, cita.

Na visão do especialista, o que torna o trânsito brasileiro caótico e perigoso, contribuindo para que o índice de mortes seja tão alto, na verdade, é uma mistura de falta de educação para o assunto e de falta de planejamento do poder público para lidar com a mudança do perfil da frota e, também, do padrão de acidentalidade. “Não há uma única cidade no país que tenha uma política de segurança para motociclistas e uma estratégia de uma fiscalização minimamente eficiente da conduta dos mesmos. Isso tudo aponta para a necessidade urgente de revisão do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que é uma lei do tempo em que praticamente não existiam motocicletas”, evidencia Biavati.

Velocidade em excesso
O especialista destaca que, ao contrário do que muitos imaginam, a implantação da Lei Seca há pouco mais de três anos (junho de 2008) não reduziu as mortes em níveis nacionais. A redução foi percebida apenas em alguns Estados, com grande destaque para o Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul e demais, a medida proporcionou uma modesta redução das mortes e das internações, resultado do baixo esforço e investimento em fiscalização.

Na visão do especialista, ainda que a Lei Seca tivesse sido implementada e fiscalizada com o máximo rigor em todo o território nacional, o índice de mortes no trânsito seria elevado em virtude de que o álcool é apenas um elemento contribuinte de uma colisão ou atropelamento. “Muito mais eficiente teria sido espalhar centenas de milhares de radares de controle de velocidade em todo país. O que mata no trânsito é a velocidade em excesso”, aponta.

Contudo, Biavati destaca que muito se tem a comemorar nesses três anos, pois a Lei Seca foi responsável por uma quebra de paradigmas. Segundo ele, antes dela as pessoas simplesmente ignoravam que beber e dirigir eram fatos incompatíveis. “Antes da Lei, em 2008, os órgãos de trânsito de todo o país ensinavam que se o sujeito bebesse ‘com moderação’ estaria tudo bem – algo como duas latas de cerveja ou uma dose de uísque. Era uma mensagem incompreensível, equivocada e solenemente ignorada por todo mundo”, critica.

A realidade de Flores da Cunha
A receita perigosa de bebida mais direção pode ser conferida com facilidade junto aos jovens que frequentam os postos de combustíveis nos finais de semana e feriados em Flores da Cunha. Eles param nas esquinas, em portas de estabelecimentos e em carros, quase na maioria das vezes acompanhados de uma ‘cervejinha’. Entre uma latinha e outra, eles entram em seus veículos e partem para ‘dar uma volta’ – inclusive com a própria latinha ainda em mãos.

No último domingo, dia 13, a reportagem do jornal O Florense percorreu as ruas da área central do município à tarde para observar a movimentação. As pessoas chegam nos postos aos poucos, sendo que o maior movimento de jovens é registrado depois das 18h. Naquele dia, a Brigada Militar (BM) esteve presente e fez rondas em praticamente todo o turno.

A prática de beber em postos é comum. Os jovens se reúnem antes de baladas – o famoso ‘aquece’ – e, mesmo com pouco dinheiro bebem antes irem para bares ou boates. De acordo com a BM, principalmente nos domingos são registradas diversas ocorrências envolvendo jovens, bebida, veículos e, algumas vezes, som alto.

No dia 13, três amigos com idades diferentes pararam em um posto. Eles chegaram em três motos. Dois deles entraram na loja de conveniência e compraram uma lata de cerveja cada. O terceiro, porém, comprou refrigerante – com 41 anos, diz que não bebe há 16 anos e prioriza a importância de ter consciência no trânsito. “A minha segurança é a segurança dos outros”, resume o motorista de profissão. De acordo com ele, o índice de mortalidade em duas rodas nas ruas e estradas se deve pela falta de conscientização de muitos motoristas que misturam o álcool com a direção e, infelizmente, acabam aumentando as estatísticas fatais.

O técnico em montagem de 33 anos, que segurava uma latinha na mão, ficou incomodado com a pergunta: Você não tem receio de beber e dirigir? A resposta veio de modo enfático: “Se for daqui direto para casa, tudo bem. O que não pode é pegar a estrada”, argumenta. Questionado sobre a perda de reflexos ocasionada pelo consumo de bebidas alcoólicas, ele destaca que essa ‘medida’ é diferente para cada pessoa. “Vai da consciência e do organismo de cada um. Claro que existe um limite”, opina o motociclista. Assim, consciente ou inconscientemente, é que se origina a maioria dos acidentes onde estão envolvidos veículos e condutores alcoolizados. Motoristas que abusam da bebida e, mesmo assim, assumem a direção e pensam: nunca vai acontecer comigo. Esses são apenas alguns motivos que fazem com que os números do Ministério da Saúde sobre óbitos no trânsito fiquem, infelizmente, cada vez mais altos.

Perfil dos mortos no trânsito
A morte do mecânico florense Fabiano Lodeas, 22 anos, ocorrida em Flores da Cunha no dia 14 de outubro (a moto na qual estava foi atingida por um carro com um condutor embriagado), somada à morte de outros quatro rapazes, todos com menos de 30 anos, registrada recentemente em Caxias do Sul, ampliou o alerta para a questão de que os jovens estão bebendo mais e assumindo a direção. O especialista em segurança e educação no trânsito, Eduardo Biavati, explica que as estatísticas apontam que mais da metade das vítimas fatais do trânsito no mundo são de homens entre 15 e 44 anos. “Eis o perfil trágico que nos custará muito no futuro, principalmente na próxima década. Basta observar a distribuição etária por sexo da população brasileira no último Censo 2010. Facilmente se perceberá que já há mais mulheres do que homens no Brasil e ainda mais mulheres idosas do que homens idosos. Por quê? Porque os homens morrem cedo, por violências ou por álcool e cigarro”, constata.

Biavati concorda que o consumo de álcool é um dos fatores que contribuem para o quadro atual do trânsito no país. Contudo, chama atenção da sociedade para o excesso de velocidade, prática que tem tornado-se comum, especialmente na saída de festas, independentemente do uso de álcool ou não. “Onde está o controle da velocidade?”, questiona o especialista.

O sociólogo, que de 1993 a 2004 foi coordenador nacional do Programa de Prevenção de Acidentes de Trânsito da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, considera o trânsito brasileiro um exercício de violência coletivo. “Nós gostamos de pensar que somos um povo de paz e do bem, que somos alegres e amigos, mas a chance de alguém morrer no trânsito aqui é quase cinco vezes maior do que no Japão e quatro vezes maior do que na Inglaterra”, assinala.

Lei mais rígida para quem dirige alcoolizado
No dia 9 de novembro o Senado aprovou um projeto de lei de autoria do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) que prevê a tolerância zero para o álcool na direção. A medida aguarda votação da Câmara dos Deputados e, após, a sanção da presidente Dilma Rousseff (PT). Caso isso ocorra, conduzir veículos após consumir bebidas ou drogas psicoativas (que alteram o equilíbrio cerebral) será considerado crime, passível de pena de seis meses a três anos de prisão, variando de acordo com as circunstâncias do flagrante.

Aqueles que provocarem uma morte no trânsito, sob efeito de álcool, a condenação poderá ser de 10 a 16 anos de prisão. O projeto também acaba com a obrigatoriedade do bafômetro para comprovar a embriaguez, tornando possível como prova o uso de imagens, vídeos, testemunhas e exames clínicos de sangue.
No início do mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia confirmado que o motorista que dirigir embriagado estará cometendo crime, mesmo que não coloque em risco a vida de outras pessoas. Para o especialista Eduardo Biavati, a medida aponta para uma mudança importantíssima de interpretação da realidade. “Na prática, isso significa o fim do conceito arraigado de ‘acidente’ ou de acaso, que sempre marcou o julgamento de cada ato dos cidadãos no trânsito. Acidentes de trânsito não existem – até que se prove que aquele atropelamento ou colisão ocorreu de fato, objetivamente, por acidente. Nós (a mídia, as pessoas, a justiça, os especialistas) temos que abandonar essa palavra e passar a compreender as mortes e as lesões como algo que pode ser evitado, prevenido e previsto”, pondera.
Atualmente, a lei define como crime dirigir com uma concentração de álcool maior que seis decigramas por litro de sangue, ou 0,30 miligramas por litro de ar expelido pelos pulmões. A pena prevista varia de seis meses a três anos de detenção, multa e suspensão da habilitação para dirigir. Caso o novo projeto seja sancionado, não será permitida a presença de nenhuma quantidade de álcool no organismo.



Projeto de lei já aprovado no Senado prevê tolerância zero para os motoristas que forem flagrados na direção após consumirem bebidas alcoólicas. - Na Hora / Antonio Coloda
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