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Italianos deixaram herança cultural e arquitetônica

Além da gastronomia, da língua e dos costumes, imigrantes construíram um verdadeiro patrimônio

Passear pelo interior e até pelas ruas centrais de Flores da Cunha é se deparar com enormes casarões de tijolos ou madeira resguardados pelos anos e pela persistência de seus proprietários. Embora muitas construções deixadas pelos primeiros imigrantes italianos se perderam pela ação do tempo e da modernidade, elas são a herança material daqueles que povoaram essas terras há 140 anos. O patrimônio arquitetônico é o objeto palpável dos descendentes e o tema da reportagem deste mês sobre o ano das comemorações da Imigração Italiana no Estado.

Um dos exemplos mais notórios dessas construções é o Casarão Veronese, que atualmente é restaurado. Erguido em 1898 por Felice Veronese no distrito de Otávio Rocha, ele é o representante típico da arquitetura da imigração e o único bem tombado pelo Patrimônio Histórico. Como centenas de outras construções, as paredes de pedra aparente foram construídas em basalto talhado regular e irregular com assentamento em barro, terra, areia e cal.

Tal como Felice, inúmeros imigrantes, logo que chegaram, viram-se circundados por montes e mato por todos os lados. Aos poucos, começaram a desmatar e a construir suas casas. Por falta de engenheiros e arquitetos, os próprios povoadores, com ajuda de um pedreiro ou conhecido no assunto, ergueram as moradias, o que garantiu nova linguagem à arquitetura. Conforme o escritor Júlio Posenatto em Arquitetura da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, essa nova arquitetura distinguiu-se em quatro períodos: o provisório, o primitivo, o apogeu e o tardio.

As provisórias foram as habitações rústicas, feitas de pau-a-pique, com chão de terra e cobertas com cascas de pinheiros. No período primitivo os imigrantes aproveitaram a grande quantidade de pinheiros e passaram a construir casas mais sólidas, edificadas em tábuas brutas e com alicerces feitos de toras de pinho ou com tijolos feitos a mão. Elas tinham os dormitórios separados da cozinha (fogolaro) para evitar os perigos de um incêndio. As coberturas eram feitas com scándole, pequenas tábuas de madeira, medindo 12cm x 40cm. Elas eram trocadas periodicamente, conforme apodreciam, para impedir a infiltração de água. Os porões eram de terra batida devido à necessidade de ter um lugar fresco para conservar os alimentos e o vinho que era produzido artesanalmente. Era no porão que ficavam as pipas e as esmagadoras manuais. O sótão servia para a secagem dos grãos, como o trigo.

No apogeu das construções, entre os anos de 1900 e 1920, as residências têm vários quartos e até quatro pavimentos com cozinhas separadas e porões erguidos com rochas basálticas, primeiro irregulares e depois entalhadas em blocos retangulares. As janelas são envidraçadas com tampões internos de madeira. Surgem os adornos e a ornamentação dos beirais. “Em Flores da Cunha existiu uma prevalência das construções em madeira, com o uso de lambrequins e formatos de tábuas, ora mais largos, ora mais estreitos. Geralmente, tinham dois ou três pisos, com janelas estreitas, vidros quadriculados e portas e paredes robustas. A pedra foi menos utilizada e era usada não para construir toda a moradia, mas pelo menos o porão da construção”, ressalta a professora de História Graziela Mazzarotto, autora do projeto Patrimônio Histórico de Flores da Cunha, sobre a arquitetura do município.



O apogeu
A fase seguinte das construções, que circunda as décadas de 1930 a 1950, revela o apogeu da arquitetura. As habitações eram erguidas em madeira, com cobertura de duas águas e telhas de barro, nem sempre pintadas. As que recebiam cor eram quase sempre em vermelho ou amarelo. A cozinha anexada em forma de um puxado tinha o ceccher (pia de madeira/lavatório de louças). As casas de alvenaria eram assentadas com pedras e rebocadas com cal e areia nas paredes de tijolos. A área construída é menor que o período passado, voltando a ter porões semiescavados com parede de pedra e um pavimento residencial. O sótão passou a ser usado como dormitório para os filhos mais velhos e a cobertura era de telhas de barro ou ferro galvanizado. Surgem as cantinas e os campanários feitos em pedra.

De acordo com Posenatto, a arquitetura colonial italiana tinha características essenciais, como o uso de técnicas artesanais, mesmo com a industrialização; uma linguagem própria; e a utilização de materiais encontrados no entorno. O grande destaque girava em torno das construções do meio rural. “No interior uma casa representava o volume principal da propriedade, tanto em suas proporções como no esmero de sua elaboração. Geralmente era constituída de mais de um pavimento, uma cozinha independente e instalações complementares na forma de abrigos para animais, depósitos para a produção agrícola”, explica Posenattto. Enquanto isso, na cidade, sem necessitar de uma estrutura produtiva de apoio e dispondo de lotes menores, a construção se resumia a uma residência que também era bastante elaborada, mas com estruturas secundárias reduzidas. “E no meio rural, ainda, por mais que as famílias já tenham uma nova moradia, a antiga continua sendo utilizada para guardar materiais. Isso possibilita a preservação. Existe também uma divergência de opiniões quanto às gerações que vivem nas casas. Os avós não percebem a necessidade de mudança, os pais, seja pela demonstração da conquista de fortuna tão buscada pelos imigrantes ou pelo conforto, almejam algo novo. E os netos crescem com ideia de conservação, talvez pela convivência com os avós, talvez pela conscientização de preservar a história. Afinal, só se preserva o que se ama, só se ama o que se conhece”, destaca Graziela.


De geração para gerações

Um dos orgulhos do agricultor Francisco Casa, 84 anos, morador no limite entre os municípios de Flores da Cunha e Caxias do Sul, são as quatro residências construídas pelo pai e pelo avô. A primeira delas feita com madeira de pinheiros cortada a facão data de 1878 e, apesar do telhado ter sido parcialmente destruído devido à queda de um coqueiro, segue conservada. Existe outra casa construída em 1914 com madeira bruta. A família de Francisco reside nas construções datadas de 1935 e 1939. São duas residências: uma em madeira sobre um porão de pedra e outra feita com tijolos. Com a esposa Helena, 80 anos, o filho, a nora e os netos, Francisco segue os costumes deixados pelos ascendentes.

Na casa de tijolos fica a cozinha e uma sala de estar. A casa de madeira (com oitos quartos e móveis feitos pela própria família) serve de dormitório. “Meu pai construiu tudo isso para a família e nós seguimos morando aqui. Foram usadas 2.400 pedras vindas do meio do mato e mais de 11 mil tijolos assentados no barro para a construção”, lembra Francisco. No porão de pedra, até poucos anos atrás, o agricultor elaborava vinho. Algumas pipas de madeira ainda continuam por lá. As casas mais antigas hoje servem para guardar as ferramentas de trabalho.


Casarão Laghetto

O Casarão Laghetto, na capela São Francisco, em Otávio Rocha, é um exemplo típico das residências com arquitetura colonial italiana. A construção começou a ser erguida em 1880 e ficou pronta em 1920. São duas casas: uma abrigava a cozinha e o sótão para guardar grãos e alimentos e a outra tinha porão para a fabricação dos vinhos e mais quatro andares onde ficavam os dormitórios. Para consumo próprio, a família Laghetto edificou uma usina elétrica movida com as águas de um córrego que passava nas proximidades.

Além desse casarão (foto abaixo), outras moradias grandiosas estão presentes em São Francisco, capela que é conhecida como ‘cuiúdo’, expressão que identificava uma população ‘cheia do dinheiro’ como os antigos moradores José Laghetto, Atílio Tonet, Modesto Sandi, entre outros.





Helena e Francisco Casa numa das residências da família, esta datada de 1935. - Danúbia Otobelli
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