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Falta interesse para reabrir Núcleo de Produção Audiovisual

Inaugurado oficialmente em 2007, o NPAV não é mais utilizado para documentação do legado da tradição italiana e muito menos para a elaboração dos vídeos do Astro. Prefeitura explica que falta um profissional para levar adiante os projetos propostos

Que povo é esse / Que esquece suas raízes / E abandona assim tão fácil / Suas origens / Que povo é esse / Que não lembra seu passado / Como se a história fosse / Um livro mal contado. Nos versos da canção A que horas passa o trem?, de Carlos Raimundo Paviani e Roque Alberto Zin, vencedora da Vindima da Canção Popular de 1985, se traduz a atual situação do Núcleo de Produção Audiovisual (NPAV) de Flores da Cunha. O espaço, inaugurado oficialmente em 2007 e com o objetivo de se tornar um centro de referência e fomentação da produção cinematográfica na Serra Gaúcha, está abandonado. Há pelo menos três anos o NPAV não é mais utilizado, nem para documentação em vídeo do legado da tradição italiana (um de seus objetivos), nem para a elaboração dos vídeos do Astro – Festival de Cinema Estudantil, feito pelos estudantes da Escola Estadual São Rafael. Os equipamentos – na época de sua aquisição – tidos como os melhores em infraestrutura audiovisual estão deteriorados e estragados. Das três câmeras, uma não funciona e as máquinas de gravação, a ilha de edição e os computadores estão em desuso. O espaço encontra-se fechado, com cheiro de mofo e goteiras pelo teto. Boatos apontam que muitos dos equipamentos que pertenciam ao NPAV sumiram. Hoje, se o Núcleo voltasse a funcionar nos moldes antigos, necessitaria de um novo investimento em tecnologia, afirma o produtor audiovisual e ex-diretor do espaço, Juliano Carpeggiani.

A Secretaria Municipal de Turismo, responsável legal pelo NPAV, aponta que a estrutura está fechada por falta de um profissional para levar adiante os projetos propostos. “Não conseguimos achar ninguém especializado para trabalhar e não há recursos. A única atividade mantida nos últimos anos é o empréstimo de material para o Astro. Infelizmente está fechado e não foi colocado em funcionamento. Os equipamentos estão lá e em condições de uso. Estamos aguardando o novo governo para ver o que irá acontecer”, aponta o secretário de Turismo, Floriano Molon, que destaca que R$ 6 mil serão investidos para arrumar a câmera danificada e outros materiais.

O gerente-executivo do projeto Urb-al e secretário de Turismo de Caxias do Sul, João Wianey Tonus, pontua que não houve nenhuma pendência em relação à União Europeia, já que os primeiros objetivos do projeto foram atingidos. “Mas, do ponto de vista da permanência, gostaríamos que o NPAV tivesse continuidade para atingir seus demais objetivos. Torço para que a administração volte a aproveitar o que está disponível e que o Núcleo continue frutificando como nos primeiros anos”, pondera.

Como tudo iniciou
Entretanto, antes de entrar na atual situação do Núcleo é preciso relembrar como um espaço que tinha tudo para funcionar caiu no esquecimento. Por volta de 2003, Flores da Cunha foi contemplada pelo projeto Victur/Urb-al, financiado pela União Europeia, com a instalação de um complexo audiovisual ímpar, o NPAV. A cidade ganharia uma estrutura para a realização de um projeto permanente: a formação, capacitação e fomentação da produção cinematográfica na Serra e a realização de produtos que valorizavam a identidade cultural da região. O espaço contemplava um convênio de 157,9 mil euros entre a União Europeia e a prefeitura de Flores da Cunha, sendo 70% investimento do órgão internacional e 30% do município. O convênio foi assinado em junho de 2006.

Conforme a pesquisadora da cultura italiana e escritora Gissely Lovatto Vailatti, quando o NPAV entrou em funcionamento o município estava esgotando as possibilidades de preservação do patrimônio material (móvel) e buscava novas formas de preservação, visando os imóveis antigos, a paisagem e o patrimônio imaterial. “O Núcleo foi o maior presente que a União Europeia e o município poderiam ter dado à cultura local nos primeiros anos do Século 21. Assim como o extraordinário projeto Resgate Histórico das Comunidades (desenvolvido pela Secretaria de Educação, Cultura e Desporto), o espaço é um poderoso instrumento de registro da história local para a posteridade, um elo entre a colônia e a cidade em busca das marcas sociais, culturais e econômicas”, afirma.

Os primeiros passos estavam dados e a proposta inicial foi ampliada para que os alunos do ensino médio da Escola Estadual São Rafael utilizassem a estrutura física e os equipamentos para elaboração dos vídeos do Astro – evento realizado desde 1999 e que ganharia um incremento com o apoio do Núcleo. “Se os filmes de 2007, 2008 e 2009 foram os melhores de todos os anos do Astro, a resposta não vem só da técnica apurada conquistada nas oficinas do Núcleo, mas também da lapidação do roteiro. O que fiz à frente do NPAV foi implantar a mesma estrutura profissional que o curso de Realização Audiovisual da Unisinos oferecia: a mesma metodologia de ensino e, inclusive, com equipamentos de gravação até mais sofisticados”, explica o ex-diretor do NPAV, Juliano Carpeggiani.

Com a nova proposta ficou definido que as principais atividades do Núcleo seriam o apoio integral aos estudantes, a produção de 12 curtas-metragens para a série Vindima da Imagem e a realização de oficinas, palestras e cursos na área. Na época, falava-se na hipótese de que a estrutura se tornaria, a longo prazo, uma escola de cinema.

Para concretização disso, foram investidos mais R$ 200 mil em equipamentos. O NPAV tem estação de trabalho para edição e finalização de imagens e som com computadores G4 e MacPro, estúdio de gravação de som, ilha de digitalização e tratamento de imagens, sala com projetor digital, duas câmeras JVC (atualmente uma não funciona), duas digitais Sony, tripés, monitores de vídeos e equipamento profissional para captação de áudio. Equipado, em fevereiro de 2007, o local de 146,7m² foi inaugurado com a alcunha de Espaço Maria Della Costa – uma homenagem a artista mais ilustre nascida em Flores.

Nos anos que se seguiram, o NPAV produziu a série Vindima da Imagem, composta por 12 curtas-metragens que retratavam temas vinculados à imigração italiana – um dos vídeos, justamente o de nome A que horas passa o trem? inspirado na canção que abre esse texto não chegou a ser finalizado –, ofereceu oficinas de roteiro, fotografia e direção, deu suporte e apoio total na produção dos vídeos do Astro, produziu vídeos institucionais, gravou entrevistas e realizou um circuito de produção audiovisual. Suas produções foram exibidas numa mostra itinerante pelo interior de Flores da Cunha e região e um de seus vídeos premiado na Itália.

O declínio do espaço
Houve um período em que a produção parou. Em virtude da troca de governo do ex-prefeito Renato Cavagnolli (PMDB) para o atual, Ernani Heberle (PDT), o então diretor do NPAV, Juliano Carpeggiani (sobrinho de Heberle) precisou deixar o cargo – pela impossibilidade de que sua contratação se classificasse como nepotismo. Um contrato terceirizado ainda foi mantido para que Carpeggiani auxiliasse no Astro de 2009. “A edição do Astro, em minha opinião, é a mais imbatível e excelente, tanto em produção como organização, teve um grande esforço da comunidade escolar (direção e Grêmio Estudantil) e da administração para acontecer. Nessa edição, tivemos a categoria estadual, que reuniu 12 obras de escolas do Estado e uma comissão julgadora formada por algumas das maiores autoridades do cinema gaúcho”, recorda Carpeggiani.

Entre 2009 e 2010, diversas reuniões foram feitas para dar sequência aos trabalhos. Um projeto para que uma empresa assumisse o NPAV foi cogitado. Nada saiu do papel. O NPAV, que surgiu por iniciativa da Secretaria de Turismo, foi lançado e mantido pela Secretaria de Educação e, tempos depois, retornou para a custódia do Turismo. Em 2010, foi firmada uma parceria com a Universidade de Caxias do Sul (UCS) para dar continuidade aos trabalhos, entretanto o espaço continuou fechado. No ano passado, um projeto de revitalização foi apresentado. Em parceria com a UCS, baseava-se no auxílio ao Astro e na realização de produções, oficinas, seminários e palestras. O projeto tinha orçamento de R$ 400 mil e previa uma duração de dois anos. Nada foi implementado. Neste ano, a parceria com a UCS foi desfeita. De acordo com o secretário de Turismo, Floriano Molon, o projeto de revitalização foi divulgado, sem ao menos ter sido aprovado para entrar em vigor. “O NPAV não tem pessoal para trabalhar e a única função é, na medida do possível, apoiar o Astro com o empréstimo de máquinas”, resume Floriano.

Conforme o coordenador do Astro 2102, Rodrigo Schiavenin, os vídeos deste ano serão editados de forma particular por um profissional da cidade – até o ano passado os curtas eram montados na UCS. Os alunos pagarão uma taxa (valor não divulgado) para a edição. Os equipamentos – uma câmera JVC, um tripé e canhões de luzes – para as filmagens foram emprestados pelo NPAV. “É uma pena ver o material do Núcleo parado, porque se ele estivesse funcionando as edições aconteceriam lá e seria muito melhor e mais prático para os alunos”, frisa Schiavenin. Uma verba de R$ 10 mil será repassada pela prefeitura para realização do Astro.

O que é o Projeto Victur
O projeto Victur do programa Urb-al, financiado pela União Europeia, foi criado em 1995 com o objetivo de promover o desenvolvimento dos países da América Latina para o turismo. O programa contemplava as cidades de Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Flores da Cunha. Para Flores ficou acertada a estruturação de um Núcleo de Produção Audiovisual para criação de documentários, que valorizassem a identidade cultural italiana na região. Em Bento foi estruturado um Centro de Empreendedorismo em Artes e Ofícios, na Fundação Casa das Artes. A Secretaria de Turismo de Bento e a assessoria de imprensa não souberam informar se o projeto ainda está em funcionamento. Em Caxias do Sul foi instalada a Escola de Agriturismo, localizada na Estrada do Imigrante e que atualmente está fechada.

De portas fechadas para a cultura
Com o NPAV de portas fechadas, a identidade cultural da cidade perde uma forma de registro. As séries produzidas nunca mais foram exibidas, as oficinas se perderam, as fitas foram abandonadas e as gravações de documentários estão paradas. “Não sei se acredito que as pessoas se darão conta um dia do que deixaram de ganhar. Refiro-me à memória histórica de nossa cidade e região. A Vindima da Imagem lotou os salões com a comunidade querendo se ver e ser vista no ‘cinema’. São registros da história viva, de pessoas, de lugares, de pontos de vista que talvez não existam daqui a 20 anos. Quando penso no que deixou de ser produzido e registrado não fico indignado, fico triste”, diz o publicitário Rodrigo Marcon, que trabalhou no Núcleo na produção de áudio.

Para alguns florenses, o NPAV também seria um espaço para a profissionalização. A presidente da Associação dos Produtores de Arte e Cultura (Apac), Shamila Carpeggiani, aponta que cresceram o número de fotógrafos na entidade e acredita que a maioria seja fruto do projeto Astro. “Com o Núcleo funcionando estas pessoas poderiam estar se profissionalizando na área audiovisual e atuando pelos projetos do espaço. Falta valorização do NPAV, falta reconhecer o valor dos recursos que estão investidos lá e, principalmente, o valor dos talentos e da cultura local que poderiam ter projeção com o andamento dos projetos”, destaca Shamila.

Na opinião do ex-diretor do NPAV, Juliano Carpeggiani, faltou interesse, seriedade e foco para dar andamento ao Núcleo. “Flores da Cunha deve ficar envergonhada pelo falecimento do NPAV. A culpa é de todos nós: empresários, pais, alunos, professores, e prefeitura, que assistimos com descaso um projeto de repercussão nacional e internacional virar pó”. Voltamos à canção: Que povo é esse / Que esquece suas raízes / E abandona assim tão fácil / Suas origens...

Pela valorização do Astro - Festival de Cinema
Os alunos são unânimes em afirmar que os melhores anos do Festival de Cinema Estudantil foram os que tiveram acompanhamento direto do Núcleo de Produção Audiovisual. Com a realização de oficinas de direção, fotografia e roteiro os estudantes produziram vídeos que foram reconhecidos nacionalmente, além de ter sido criada uma categoria Estadual, que apresentava vídeos de outras cidades. Para a estudante do 3º ano do São Rafael, Gabriela Tormen, 17 anos, foi uma atitude drástica Flores ter fechado o espaço depois de ter lutado tanto com outros municípios para sediar o NPAV. “Se investe, se busca, se constrói e se fecha. Cadê o interesse em manter o espaço?”, questiona a estudante.

Da mesma opinião compartilham os alunos Giane Alves Bertin, 18 anos, e Pedro Henrique dos Santos, 15 anos. Os dois, que produzirão vídeos neste ano, destacam a perda de qualidade dos curtas. “Todos os alunos sonham em fazer o Astro e participar, só que a qualidade do Festival se perdeu porque não existe mais a preocupação e o carinho em editar os filmes”, dizem. Os alunos questionam a parceria firmada com a UCS nos últimos anos para a montagem dos vídeos. “No filme (Seventeen) que fiz no ano passado fiquei até tarde com o pessoal da edição e, no final, muitas cenas foram tiradas e não ficou do jeito que prevíamos”, aponta Gabriela.

Mas nem só os alunos do São Rafael perderam com o fechamento do NPAV – a comunidade também. A estudante de design gráfico e fotógrafa Tuany Areze, 19 anos, recorda que seu interesse pela fotografia foi despertado justamente pelas oficinas oferecidas pelo Núcleo, durante a realização do Astro. Tuany pegou a época ‘áurea’ de 2007 a 2009, quando ajudou na produção dos vídeos Normal D+, Mundo de Maria e Cartas de Monte Castelo, este último como diretora. “Na época estava sempre no Núcleo participando das oficinas, da edição dos vídeos, aprendendo sobre fotografia. Se hoje estivesse aberto seria um espaço que poderia aproveitar para a minha área. É muito triste um local assim estar em desuso”, diz Tuany, que mesmo não estando mais na escola foi chamada para produzir a foto do cartaz de duas produções do Astro deste ano. “O futuro de muitos jovens florenses está ligado ao Astro porque muitos escolhem cinema, fotografia e jornalismo”, conclui Gabriela.



Gabriela Tormen, Pedro Henrique dos Santos e Giane Alves Bertin são alguns dos alunos da Escola São Rafael que poderiam usar o espaço. - Danúbia Otobelli
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