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Entre palavras e construções

Conheça a história e as edificações do pedreiro João Tormen que, aos 97 anos, não abre mão do jornal impresso

Um leitor assíduo do Jornal O Florense, João Tormen, mesmo com seus longevos 97 anos, ainda folheia as páginas das edições impressas às sextas-feiras e se depara com histórias de pessoas da comunidade de Flores da Cunha e Nova Pádua, muitas, claro, conhecidas suas. Tormen lê as edições desde a época da fundação do jornal Vindimeiro, que antecedeu este periódico. Hoje, ele confessa que a idade avançada faz com que fixe seu olhar nas imagens e palavras maiores, mas admite que o jornal vai deixar saudade: “E agora, sem jornal? Eu não gosto de olhar a televisão, só algumas notícias, e ultimamente só tem notícias ruins. Não se sabe mais nem o que é certo ou errado hoje em dia”, reflete, ao mesmo tempo em que sua filha, Zenita Tormen Tomé, de 70 anos, acredita que a alternativa seja comprar um celular maior para que o pai possa ler o jornal pelo site.
Pai e filha lamentam que esta seja a última edição do jornal impresso que, por mais de 37 anos, contou a história do município. História que Tormen também ajudou a escrever e, por meio de suas construções, deixou um legado concreto que muito fala sobre a cultura local. 
Ao andarmos pelas ruas de Flores da Cunha e Nova Pádua, mesmo sem perceber, o trabalho do pedreiro João Tormen pode ser visto em todos os lugares. Ao longo de mais de cinco décadas ele construiu dezenas de casas, cantinas, pavilhões, a igreja da linha 80, a parte antiga do Hospital Beneficente Nossa Senhora de Fátima, o convento dos Freis Capuchinhos, a torre do distrito de Mato Perso e a do Travessão Carvalho, em Flores da Cunha; o antigo Salão Paroquial, o Cemitério Municipal e a Igreja Matriz de Nova Pádua, de onde é natural. 
João, que é o segundo dos sete filhos de Ricieri e Helena Tormen, lembra que iniciou no segmento por volta dos 20 anos de idade: “Comecei tirando pedra em uma pedreira e fomos fazendo ‘aqui e lá’. Depois segui a vida de pedreiro, sempre gostei de trabalhar com pedra e tinha que trabalhar onde havia serviço. Quando saí da pedreira eu já tinha outro convite, afinal quando a gente sai de um emprego já tem que ter outro meio certo e essa era uma coisa que precisava naqueles anos, as pessoas vinham pedir para fazer”. 
De acordo com Tormen, na época a maioria das edificações eram feitas em madeira, mas com as cantinas ‘de material’, aos poucos, foi tendo início a construção de casas de alvenaria, nicho no qual ele viu uma oportunidade, ao lado de seu mestre, o projetista e construtor Raymundo Paviani (In memoriam): “Iniciei como pedreiro junto com o Paviani, em uma vinícola de Nova Pádua, a Cooperativa Vinícola Riograndense. Depois tinha outras filiais dela no Travessão Alfredo Chaves, fizemos em Antônio Prado, aqui em Flores da Cunha e uma em Caxias do Sul. Então foram seis obras só dessa cooperativa e foi ali que dei o primeiro passo para ser pedreiro”, recorda o paduense, acrescentando que entre uma construção e outra ele aproveitava para erguer moradias, ou ainda, para trabalhar na colônia. 
“Naquela época não se perdia tanto tempo, a gente trabalhava dia e noite, era direto. Eu também não tinha muito concorrente porque todo mundo achava que pedreiro era uma profissão que valia pouco”, revela Tormen, acrescentando que logo após ter casado veio morar em Flores da Cunha, portanto, reside por aqui há 74, 75 anos. 
Mas o pedreiro também deixou sua marca no município de Caxias do Sul, onde trabalhou na edificação de cantinas, entre elas Cooperativa Vinícola Riograndense: “Trabalhei para construir a vinícola em Caxias e tive que ficar lá durante seis meses. A gente tinha que fazer a comida e éramos em quatro homens, porque eu não trabalhava sozinho, tinha outras pessoas que me ajudavam, três ou quatro, mas não eram sempre os mesmos, até porque o trabalho era muito puxado e as pessoas iam embora”, relata, acrescentando que o mesmo aconteceu na construção da igreja da linha 80, mas que o frio daquela comunidade era muito intenso, o qual parece sentir ainda hoje. 
Naqueles anos, pernoitar nos locais próximos às construções era uma alternativa comum, uma vez que as dificuldades de deslocamento eram muitas. “Não tinha transporte para ir e voltar, então quando ia para Mato Perso fazer o campanário, tinha que ir de bicicleta. E assim também foi com muitas outras obras”, recorda Tormen, acrescentando: “Depois da bicicleta eu ia trabalhar de motociclo, fui o segundo motoqueiro da cidade. Quando avancei um pouquinho comprei uma moto para o trabalho... ah, a vida é uma história”, reflete o pedreiro. 
Autodidata, Tormen aprendeu muito com Paviani, mas também a partir de suas próprias vivências, em cima disso foi adaptando e criando o seu próprio jeito de construir. Jeito que formou gerações de profissionais: “Aprendi a trabalhar e ensinei o Marin, o Sogari, o Zamboni, o Bergozza, o Pradella, o Gelatti, e muitos outros. Alguns pais me pediam para chamar seus filhos para trabalhar comigo, e eles aprendiam, se esforçavam, alguns davam certo, outros não. Às vezes, tinha funcionários que eu achava que não ia dar certo, e aí, quando via, eles sabiam, não precisava dizer duas vezes que eles faziam o que tinha que fazer”, orgulha-se o pedreiro. 
Lembranças de um período em que o trabalho na construção era quase totalmente braçal, exigindo muita força e habilidade de quem o praticasse. “Não tinha as máquinas que tem hoje, era tudo ‘no braço’. Teve uma época que nem carriola (carrinho de mão) tinha, era no que a gente chamava de ‘paviola’ (uma caixa de madeira que tinha duas hastes na frente e duas atrás) daí a gente fazia a massa dentro de uma caixa maior de madeira depois transferia com a pá para dentro e em dois carregavam a massa onde tinha que trabalhar. Quantas ‘pavioladas’ a gente fez para ajudar a construir o hospital”, destacam Tormen e sua filha, Zenita.
Nesse sentido, o pedreiro também frisa o campanário de Mato Perso, com suas pedras grandes de cerca de 350kg, que eram manobradas por um guincho manual, requerendo muita prática. 
“A primeira betoneira que  usei veio de Porto Alegre, pensa que não tinha betoneira nem aqui, nem em Caxias do Sul, ela era a gasolina.  Quando chegou todo mundo queria ver como era a tal betoneira. Estavam curiosos, naquela época era uma novidade, queriam saber como funcionava”, ressalta o pedreiro, que acredita que se hoje as construções tivessem que ser feitas ‘no braço’ novamente não daria certo, afinal as máquinas vieram para ajudar: “Aí morreria todo mundo de fome, né?”, brinca. 
De acordo com o pedreiro, outra diferença de antigamente para os dias de hoje é em relação a liga utilizada nas construções, uma vez que, atualmente, o concreto já vem pronto: “Na época tinha que fazer o concreto, dependendo de quanto peso carregava o piso, quanto cimento ia, quanto cal tinha que colocar, mas aprendemos de tudo e fizemos de tudo um pouco”, aborda, feliz com seus aprendizados.
O pedreiro se dedicou ao ofício até os 75 anos de idade e, depois disso, continuou fazendo um serviço ou outro para amigos, vizinhos e conhecidos. Tormen tem sete filhos, nove netos e duas bisnetas e, mesmo aposentado e com 97 anos, revela que a vontade seria de pegar sua caixa de ferramentas e voltar a trabalhar.  
Mas, mesmo que ele não possa fazer isso, a história da família com a construção continua viva por meio de um de seus filhos, Eitor Tormen, que herdou o gosto pela profissão exercida pelo pai. Além disso, Eitor também dá continuidade ao hobby de Tormen que, na verdade, iniciou com o avô: a apicultura. Inclusive Eitor já foi entrevistado pelo Jornal O Florense para falar sobre isso no caderno especial do Colono e Motorista, em 2022. Outra razão que faz a família ter uma forte ligação com o impresso e sentir-se triste com seu término, mas também feliz por estar presente nesta última edição.

João Tormen dedicou mais de cinco décadas ao ofício de pedreiro. - Karine Bergozza Construção da igreja do Cemitério de Nova Pádua. - Arquivo Pessoal/ Divulgação Obra em fase de finalização. - Arquivo Pessoal/ Divulgação
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