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Conheça os trabalhos vencedores do Concurso Literário

Tânia Scuro Mendes escreveu a melhor crônica, Maria do Carmo Curra Zorgi ganhou na poesia e Ivo Gasparin venceu com o melhor conto

O Concurso Literário de Contos, Crônicas e Poesias de Flores da Cunha teve os vencedores divulgados no dia 26. Na categoria Crônica, o 1º lugar ficou com Tânia Scuro Mendes e, o 2º, com Gisleine Regina Soares Antunes. Na Poesia a vencedora foi Maria do Carmo Curra Zorgi e, no Conto, o professor Ivo Gasparin.

A atividade foi promovida pela Secretaria de Educação, Cultura e Desporto, por meio do Departamento de Cultura e da Biblioteca Pública Érico Veríssimo – o tema deste ano foi 140 Anos da Imigração Italiana. Além de troféu, os ganhadores receberão um certificado. Confira a seguir a íntegra dos trabalhos premiados.


1º lugar na cateria Conto, por Ivo Gasparin

La Prima Semensa (A Primeira Semente)
Giuseppe
Olhos paralisados, dedos trêmulos, Carlo ia devorando sofregamente, uma a uma, as palavras contidas naquela carta. Eram notícias de seu primo Giácomo que há um ano e dois meses havia partido para a América. "As colônias aqui são muito boas...É verdade o que dizem que com poucas videiras fazem muitos barris de vinho. Com 15 vinhas, em 3 anos, se consegue um barril de vinho... No rio de nossa colônia pode-se montar um moinho e uma serraria... Já somos mais de 1.400 entre italianos e tiroleses e pensamos até em formar uma nova Itália. Estamos pensando até em construir um pequeno capitel em homenagem a São Valentim... Tomem cuidado em Gênova, há muitos ladrões. Chegando em Gênova, tratem de vir o quanto antes. Providenciem pelas coisas necessárias lá, em Bassano del Grapa. Se puderem, comprem ferramentas em Gênova para trabalhar a terra: enxadas, foices, serrotes e rodas de carroça, que o resto nós fazemos aqui. Chegando ao Brasil lembrem desses nomes: Rio Grande do Sul, Porto Alegre, São Sebastião do Caí e Campo dos Bugres, onde vou esperá-los".
Tão entretido estava com as notícias da América, que nem percebeu a presença de Verônica, com a filha Antônia, de dois anos e meio, agarrada em seu colo:
– Varda, nantra carta de Giácomo. (Olha, outra carta de Giácomo)
– De Giácomo?
– Sì, de Giácomo, co le notìssie de la Mérica. (Sim, de Giácomo, com as notícias da América)
Carlo já tinha decidido: não queria repetir a mesma vida do seu falecido pai Honório, uma vida inteira a serviço dos senhores da terra. A carta de Giácomo era um convite à liberdade.
Faltavam exatamente quarenta e cinco dias para a partida. Iria ele, sua esposa Verônica, embora estivesse em seu segundo mês de gravidez, a filhinha Antônia e a mãe Assunta.

Em Bassano del Grapa, ficariam seus dois irmãos Fiorindo e Vicenzo, sua irmã Giùlia, seus primos, seus amigos e seus trinta e dois anos de vida.
Na noite que antecedeu à partida, Carlo não conseguia conciliar o sono. Sua cabeça fervilhava. Sua mente retorcia-se em meio a mil conjeturas, dúvidas, interrogações. Sabia que era um salto no escuro, mas precisava ser forte, ter fé.
– Sito mia bon de dormir? – (Não és capaz de dormir?) Perguntou-lhe Verônica, ao perceber que ele se remexia demasiadamente na cama.
– E el nostro fioleto? (E o nosso filhinho?)
– El nostro fioleto nasserà in Brasile e se ciamarà Próspero. (O nosso filhinho nascerá no Brasil e se chamará Próspero.)
– Próspero Castelli!... Che bel nome! Nome de segnore... Ma, e se nasse na toseta? (Próspero Castelli! Que bonito nome! Nome de senhor... Mas e se nasce uma menina?)
– Alora se ciamarà Vitòria. (Então se chamará Vitória.)
– Pròpio!... Vitòria, el nome de la mia nona. Vitòria in Brasile!...(Verdade!... Vitória, o nome da minha avó. Vitória no Brasil)
Na manhã do dia 23 de janeiro de 1883, acordaram cedo. Um pouco estonteados, tomaram o seu último café na terra natal e, depois de um derradeiro e angustiante adeus, com os olhos em pranto, acomodaram-se na carroça puxada por quatro mulas, tomaram a estrada em direção à ponte do Rio Brenta. Adeus Vila natal, adeus, adeus vales, adeus montes, adeus igreja de São Valentin onde todos foram batizados.
Depois de um percurso de sete quilômetros, chegaram a Maróstica, seguindo depois por Sandrigo, penúltima etapa antes de chegarem à cidade de Vicenza. Faltavam ainda 14 quilômetros, seguindo por estradas ao sul, costeando o Rio Bacchilione e assim estaria terminada a viagem de aproximadamente 35 quilômetros.

Durante todo o percurso, Carlo, que já tinha ido a Vicenza por diversas vezes, ia falando dos lugares por onde passavam. Antônia era a mais feliz, a mais curiosa, a mais participativa nas conversas com o pai. Verônica mostrava-se preocupada com o balançar da carroça, pois levava em seu ventre a esperança de uma nova vida. Assunta, permaneceu quase o tempo todo calada, talvez imaginando como seria bom se o falecido Firmino estivesse junto dela, encorajando-a; ele que tantas vezes havia alimentado a esperança de um dia ir à América e ter sua própria colônia. Seguidamente Assunta repetia uma frase que deixava a todos aflitos e condoídos:
– E i me fioi Fiorindo e Vicenzo, son secura che no i vederò pì...poareti...Sensa pupà e sensa mama...(E os meus filhos Fiorindo e Vicenzo, estou certa que não os verei mais... Pobrezinhos... Sem pai e sem mãe...)
Depois voltava ao seu sofrido silêncio.
Chegaram a Vicenza altas horas da noite.
O carreteiro conduziu-os a uma cocheira de cavalos de um conhecido seu e ali, naquela estrebaria, acomodaram-se e passaram algumas horas da noite.
Às duas horas da madrugada foram acordados e imediatamente recolheram as bagagens e deslocaram-se até a estação ferroviária, pois o trem partiria às três horas em direção a Verona, passando depois por Brescia, pelas planícies da Lombardia, por Milão para, enfim, chegarem a Gênova, onde encontraram outras famílias vindas de Friul, Treviso, Belluno e de outras localidades.

Depois de algumas horas, foram transportados em carros, a um lugar chamado Malassana que fica a uns cinquenta metros do nível do mar com seu grandioso e movimentado porto. Foram alojados em um amplo salão. Todos apreensivos, perguntavam-se uns aos outros quanto tempo ficariam ali. Ouviam-se os mais estranhos comentários sobre o futuro.
– Ze belche due mesi che son quà co la me fameia – ( Já são dois meses que estou aqui com a minha família) dizia um.
– Mi son quà co la me dona, co la nona, con quatro fioi, e le me economie le ze ndrio fenirse – ( Eu estou aqui com a minha esposa, minha avó, com quatro filhos e as minhas economias estão acabando) dizia outro.
Mas, talvez pela fé de Carlo, pelas orações da nona Assunta, depois de 28 dias chegou a notícia:
– Stimana che vien, riva el bastimento. (Na semana que vem chega o navio.)
Carlo, que sempre fora de boa convivência, já havia feito diversos amigos: Francesco Basso, de Feltre; Caetano Bassani, de Belluno; Clementino Bavaresco e Caetano Barcarollo, de Cremona, entre outros menos aconchegados, oriundos de Pádova, Treviso, Bergamo, Schio e de outras localidades. Davam-se ao luxo de jogar cartas na maioria do tempo.

Verônica, por sua vez, vivia de conversas muito íntimas com uma senhora de uns trinta anos, Paulina Barbieri, que também estava grávida.
Antônia, muito extrovertida e faladeira igual ao pai, já tinha feito diversas amiguinhas e quase não percebia a penúria pela qual estavam passando.
Assunta era a mais reservada. Vivia mais concentrada em seus pensamentos e só entabulava alguma conversa com alguma senhora de mais idade que se aproximasse dela.
No dia 5 de março receberam a notícia de que a partida para o Brasil ocorreria no dia 7 e que estivessem preparados. E já no alvorecer desse dia começou um grande burburinho de pessoas que corriam de um lado para o outro andando em direção ao porto, onde se encontrava o vapor de nome “Garibaldi”. Crianças choravam, mulheres chamavam pelos filhos. Muitos, com lágrimas nos olhos, pensavam na incerteza do futuro; quase todos estavam no fim de seu dinheiro. Alguns mostravam-se alegres, pensando que se aproximava o término de suas atribulações.
Como uma choca que cuida dos seus pintinhos, Carlo estava sempre atento a tudo. Andava muito preocupado com Verônica temendo que ela passasse mal. Mas Verônica não se abalava:
– No stà preocuparte, Carlo, el nostro tatin nasserà in Brasile, belo e com salute.(Não te preocupes, Carlo, o nosso bebê nascerá no Brasil, bonito e com saúde)
– Sì, gràssie a Dio! E ti, Antônia, resta sempre tacada a la nona. (Sim, graças a Deus. E tu, Antônia, procura ficar sempre grudada na avó.)
Ao meio dia, com o sol a pino, foram conduzidos para dentro do vapor. Os imigrantes, aproximadamente uns 1.200, vagueavam na coberta, olhavam-se uns aos outros. Aos poucos, todos puderam unir-se, família por família, com suas bagagens. Às 15 horas, um agudo apito anunciou a partida do vapor.

Na primeira tarde tudo transcorreu normalmente, mas, à noite, o mar começou a ficar revolto. Todos tiverem que descer nos porões do navio. Não podiam ficar no convés porque, devido às grandes ondas, o navio sacudia muito e era perigoso, pois podiam cair no mar. O furor do mar pôs tudo em desordem: caixas, baús, objetos de toda a espécie. Um inferno. Ouviam-se gritos, choros. Alguns, com o terço nas mãos, rezavam. Outros, estáticos de pavor, esperavam ser tragados pelas ondas. Carlo estava abraçado a todos os seus, rezando, pedindo calma e dizendo que logo, logo isto passaria. Viam-se por toda a parte, mulheres, crianças e moças rolarem ao chão no meio de trouxas, gamelas, bolsas, livros de devoção, garrafas.... Naquela noite, quase todos sofreram de enjoos. Felizmente o dia amanheceu com um céu azul ensolarado e o mar manso.
Assim se passaram 59 dias entre o céu e o mar. Com dias de sol, dias de chuva, dias de serenidade e dias de tormentas. A comida era pouca e medida. A água que tinham para tomar estava numa pipa e todos iam saciar sua sede diretamente na torneira, pois não tinham copo. Como Antônia era ainda muito pequena e a torneira ficava alta, a vó Assunta ia lá na torneira, enchia a boca de água e a despejava na boca na menina. Verônica ficava comovida com esse gesto:
– Varda a nona! No la par mia un ozeleto ndrio darghe de magnar a i fioleti? (Olha a vó, não parece um passarinho dando de comer aos seus filhotinhos?)
À noite, muitas famílias faziam grupos separados a rezavam o terço. Aos domingos, as orações eram mais intensas. Cantavam cantos sacros e entoavam até as ladainhas em latim.

Assim passavam os dias: conversando, fazendo planos, jogando cartas. Mas os dias mais tristes não eram quando ocorriam tempestades, era quando morria alguém. Para Carlo, o dia mais triste foi o dia em que morreu a irmã de seu amigo inseparável, Francesco Basso, vitimada pela febre amarela. Colocaram-na dentro de um saco e a jogaram no mar, como faziam com todos os que ali morriam. O que aconteceu para Verônica foi muito mais marcante. Sua amiga, Paulina, que estava já de oito meses, teve seu bebê numa noite de turbulência, porém, devido às más condições, o bebê nasceu morto e, no amanhecer do dia seguinte, depois de uma cerimônia simples feita pelo capitão, foi jogado ao mar, enrolado num lençol branco.
Chegando ao Rio de Janeiro, tiveram talvez a pior das surpresas; os 1.200 imigrantes deveriam abandonar o “Garibaldi” e embarcar em outro vapor brasileiro, uma velha carcaça, denominada “Calderon”, que os levaria ao Rio Grande do Sul, em companhia de outros imigrantes desembarcados do vapor “Itália”. Se as condições de vida no “Garibaldi” eram ruins, no “Calderon” tornaram-se muito piores.
Ao meio-dia estavam todos a bordo do novo vapor junto aos que haviam chegado. Quase todos tiveram que descer aos porões. Ali foram acomodados desordenadamente, sem leitos e sem repartições para as famílias. Pensavam no incerto futuro e olhavam-se silenciosamente. `
À noite deitavam sobre o duro pavimento, em todas as direções. Às vezes ouvia-se uma voz de mulher recitando o rosário, outra que procurava aquietar uma criança que as picadas dos piolhos não deixava dormir, outros, com tocos de vela, perambulavam pelo porão escuro.
– Dio Santo, Carlo, gò tanta paura de perder el nostro tatin! (Santo Deus, Carlo, tenho tanto medo de perder o nosso bebê!
– Nò, Verônica, nò... Adesso nò! P’amor de Dio!... Coraio che ghe manca poco! (Não, Verônica, não... Agora não! Pelo amor de Deus!... Coragem que falta pouco!)
Verônica continuava em suas intermináveis e silenciosas orações.
Finalmente, a 11 de maio, o navio entrou na Barra e chegou ao porto da cidade de Rio Grande. Os imigrantes desembarcaram e foram confinados em um barracão denominado Casa dos Imigrantes, um barracão sem paredes divisórias, bastante sujo, onde entravam e saíam, à vontade, as vacas e os cavalos, seja de dia ou de noite. Imediatamente, os imigrantes procuraram vassouras feitas com ramos de árvores para varrer aquele lugar imundo. Em seguida, aquelas fragilizadas famílias procuraram um canto para fixar sua provisória morada.

Depois de uma quinzena naquele fétido barracão, em 26 de maio, chegou o aviso de que deveriam se preparar para partir. Foram embarcados desordenadamente em um outro vapor, que entrou na Lagoa dos Patos, em direção a Porto Alegre. Como essa Lagoa é de navegação um tanto difícil pelos seus bancos de areia finíssima, os imigrantes foram obrigados a se desfazerem de seus pertences mais pesados como máquinas de costura, arados e jogá-los na água. Seguiram até a embocadura do Rio Guaíba e, depois de aproximadamente 24 horas, vislumbraram as primeiras casas da Capital. O navio encostou na ponte de desembarque e os imigrantes foram conduzidos à Casa da Imigração, que apresentava um aspecto bastante descente, pois tinha repartições para cada família, com camas rústicas.
– Gràssie a Dio semo rivai – (Graças a Deus Chegamos) - disse Carlo para Verônica.
– Te gò dito che’l nostro tatin nasceria in Brasile. Ghe manca solo um mese, par le me conte. (Eu te disse que o nosso bebê nasceria no Brasil. Falta apenas um mês pelas minhas contas.)
Dias depois, veio a ordem de nova partida. Ordenados em longa fila, atravessaram algumas pontes pênseis, denominadas de “trapiches”, para chegarem ao vapor que tinha o nome de “União”. Era um pequeno barco fluvial que possuia rodas nas laterais para facilitar o transporte.
Por volta das 10 horas, através do Rio Caí, o vapor adentrou por uma região de bosques. Nas margens via-se somente mato virgem. De vez em quando, via-se uma casinhola construída de barro e coberta com folhas de palmeiras.
Depois de quase uma centena de quilômetros, às 9 horas do dia seguinte, o “União” deu o aviso de chegada ao povoado de São Sebastião do Caí e os imigrantes foram conduzidos à Casa da Imigração, uma verdadeira barraca, sem trincos nas portas e janelas.

No dia seguinte, o empregado da Imigração avisou que daquele ponto em diante, a viagem até o destino, seria feita em cavalgaduras. Cada cavalgadura, com sela, além de carregar uma pessoa, levava dois cestos, onde, às vezes, eram colocadas crianças. Por não haver cavalgaduras suficientes, os homens seguiriam a pé.
– Verônica, monta sù nte che a mula lì che, me par che, la ze mansa. (Verônica, monta naquela mula ali, que me parece ser mansa.)
– Nò, assa che vae la nona, che la ze intrigada de caminar. (Não, deixa que vá a vó Assunta que está com dificuldade de caminhar.)
Ao que a nona Assunta imediatamente retrucava:
– P’amor de Dio! Vuto ndar sù pa i monti a piè par perder el tatin? (Pelo amor de Deus! Você quer subir os morros a pé para perder o bebê?
– E se a mula la se rabalta, no l’è mia pedo? (E se a mula cai, não é pior?)
– A mula no a se rabalta, nò... La ze costumada. (A mula não cai, não... Ela é acostumada.)
Alguns caixões, que vieram da cidade natal, tiveram que ser desmontados para poderem levar o que cabia nas cavalgaduras. E assim, guiados por um tropeiro moreno, que comandava uma pequena tropa de burros e mulas, iniciaram a subida da serra. A tropa encaminhou-se por uma estrada que, pouco a pouco adentrou no mato, transformando-se em estreito trilho cercado de ervas, arbustos e espinheiros. Verônica, com o peito apertado e com o coração em frangalhos, pedia a Deus e à Virgem do Bom Parto que a protegessem de todo e qualquer mal. Os homens, cabisbaixos, ora adiante, ora atrás daquela pequena tropa, seguiam pela subida molhada e escabrosa, cheia de degraus e buracos feitos por cascos de cavalos.
Carlo, conversando com o homem dos burros e das mulas, ficou sabendo que era o mesmo tropeiro que, há mais de um ano, havia levado o seu primo Giàcomo até a localidade de Nova Milano e depois até o Campo dos Bugres.
Quando Verônica ficou sabendo da conversa de Carlo com o tropeiro, não conseguiu mais conter as lágrimas. O sonho estava para se realizar.

Repentinamente, porém, ouviu-se um grito sufocado. Toda a tropa parou. Carlo, enlouquecido, jogou-se no pequeno precipício por onde a cavalgadura de Verônica havia deslizado. Verônica encontrava-se caída, ainda com as pernas prensadas sob o corpo da mula. Soltava pequenos gritos de dor e orava a Deus. Quando Carlo a alcançou, pediu que mantivesse a calma que logo, logo ela sairia de lá. Auxiliado por outros homens, aos poucos, conseguiu que Verônica se desvencilhasse. Colocou-a sentada sobre uma pequena tábua, amarrou umas cordas feito um balanço, e assim foi retirada do buraco. O tropeiro, vendo a profundidade do pequeno precipício, com muita frieza, sacou do cinturão uma enorme pistola e acabou com o sofrimento do animal.
Quando tudo parecia serenado, houve uma pequena correria e um aglomerado de pessoas procuravam reanimar Verônica que se encontrava desmaiada. Quando a nona Assunta percebeu que escorria sangue pelas pernas de Verônica, entre soluços e súplicas pediu para que as pessoas se afastassem e que permanecessem apenas duas mulheres que tivessem coragem de ajudá-la. Para ela, que havia feito tantos partos na Itália como parteira, tinha chegado a hora de receber em seus braços o seu primeiro neto. Depois de quase duas horas de insistência, de luta, de quase desespero, de ansiedade, Verônica acabava de parir o seu sonho: Próspero havia nascido “in Brasile”. Mas quando Carlo veio correndo para conhecer seu filho e ao ver a nona Assunta abraçada fortemente em Verônica em pranto descontrolado, teve uma súbita desconfiança. Por não escutar choro de criança e ao ver, ao lado do corpo de Verônica um pequeno embrulho envolto em panos, teve a certeza: seu filho não tinha resistido a tantas tribulações. Paralisado, extasiado diante de tanta desgraça, precisava ser mais forte do que a fragilizada esposa. Abraçou-se a ela e choraram copiosamente perante o respeitoso silêncio dos demais.
– Cara, adesso bisogna enteralo, cara...(Querida, agora precisamos enterrá-lo, querida...)
– Nò... enteralo quà nò... (Não, enterrá-lo aqui não...) – Como uma onça felina que defende o seu filhote, agarrou-se fortemente ao pequeno embrulho. – El me fioleto vegnarà insieme con mì! (O meu filhinho virá junto comigo!)
Todos ficaram estupefatos olhando aquela comovente cena. O tropeiro, sabendo que ainda demorariam mais alguns dias para chegarem ao Campo dos Brugres, prontamente tirou sua capa de couro e ofereceu-a a Carlo para que o filho fosse embrulhado nela e pudessem continuar a viagem.

Tiveram a sorte que, logo após a chegada ao Barracão dos Imigrantes, apareceu o primo Giácomo que, volta e meia, vinha ao Campo dos Bugres para ver se Carlo havia chegado. Foi como se tivesse chegado o socorro a um punhado de náufragos no meio do oceano. Todos desandaram a chorar, a dar graças a Deus, a dizer coisas desconexas. Só depois de muitas lágrimas, Giácomo, vendo que Verônica permanecia triste, de cabeça baixa, segurando em seus braços um pequeno embrulho, perguntou:
– E ti, Verônica, sito mia contenta? (E tu, Verônica, não estás feliz?)
Imediatamente Carlo arrastou-o para um lado e lhe falou tudo o que acontecera.
Depois de eternos minutos de um silêncio comovente, Giácomo disse:
– Alora, ze meio che partimo. (Então é melhor partirmos.)
A colônia destinada à família de Carlo era a do número 10, no Travessão Barra, mas, falando com o representante do Governo encarregado da distribuição dos lotes, chegaram a um acordo que era melhor trocar pela colônia de número 25, perto da colônia de Giácomo, que era a de número 26, no Travessão Leonel.
Seguiram a pé, e depois de um dia e meio de viagem, para cima e para baixo de montes, caminhando sobre o trilho feito pelos cascos de cavalos, no meio de florestas, ouvindo-se apenas o ronco dos macacos, o cantar dos pássaros e ruídos estranhos de animais desconhecidos, chegaram a um exíguo galpão, que era a primeira moradia do local, de propriedade do primo Giácomo. Ali ficaram por diversos meses até que Carlo construísse sua própria casa. Mas, a primeira providência a ser tomada, foi abrir uma pequena cova, sob a guarda de um frondoso pinheiro, para que o pequeno Próspero tivesse, enfim, descanso. Era a primeira e próspera semente italiana a ser plantada no alto da serra gaúcha, de onde brotaria tanta prosperidade.
(Conto baseado em fatos e depoimentos reais dos livros “Entre o passado e o desencanto” e “Cozì vive i Taliani”, incluindo pequenos textos, ad literam.)


1º lugar na categoria Poesia, por Maria do Carmo Curra Zorgi

Lições das águas e da terra
Pseudônimo: Felicitá

O céu se faz poente...
singram cascos,
inertes,
quilhas de andanças,
abrigo de almas partidas,
alimento da esperança.

Faces marcadas,
espelham-se em águas profundas,
guardam segredos,
suprimem alegrias,
na espera que anseia
a sonhada travessia.

Cerzem estrelas,
sonhos calados
em vestes de pranto,
mãos se afinham,
na prece dos dias
invocam as bênçãos
do Deus criador,
nas Aves Marias.

Abraços inteiros
tal frágeis guaridas,
sublimam as perdas,
veladas,
amadas...
libertas em dor,
da carga contida.

Desperta o céu
olhos mantidos
de azuis infinitos,
na luz,
na nudez,
revelam-se à terra
virgem,
gigante,
impondo-se ao mito.

Jornadas incertas
à saga imigrante
gavinha-se em fé
ao cansaço da vida,
rogando a esta terra
a guarda querida.

O verde imperioso
espaça caminhos,
oferta seus frutos,
fomenta raízes
acolhe sementes
que jorram em flores.
Em castas fecundas,
na mesa, então posta
celebram o vinho
repartem o pão
saciam a fome,
na alma que importa.

Da pátria distante
o heroi imigrante
circunda as serras
refaz-se em fibras,
povoa,
constrói...
faz a história
e a herança de sangue
bagagem retida,
derrama-se em glórias,
consagra-se em vida.


1º lugar na categoria Crônica, por Tânia Scuro Mendes:

Para além das palavras
Entre tantos eventos comemorativos ao tempo destinado a construir descendências e cidades; culturas e progressos, há um sentimento de nostalgia que me pega pelo braço e pelo coração e me leva ao encontro com minha história. Nessa jornada de resgate, pergunto às minhas lembranças quando me sinto, realmente, descendente daqueles italianos que se desafiaram em busca de vidas melhores.
Na tradição retratada em cada época espiralada pela história, reconheço-me personagem e não mais uma turista em meu ninho. Aqueles rostos estão espelhados no meu e conversam sobre suas linhas de expressão. E eu me flagro interlocutora de suas falas que anunciavam novos tempos.
Reencontro passos restaurados, guiados por sentidos e lições, sempre que revisito o que fui aprendendo com aquelas palavras estranhas, engraçadas, quase absurdas. Ainda ouço os timbres, entonações, as vozes das nonas. Eram elas que falavam o dialeto, repleto de italianidade. Suas narrativas abriam espaços nas rezas, canções, poesias, leituras, animadas conversas, segredos cochichados, palavrões irritados, receitas de família, motivos do filó, linguagens essas que falavam todas ao mesmo tempo, quando o assunto era disseminar o dialeto.
Cada vez que, atenta, o escuto nas entrelinhas, ecoando nos cento e quarenta anos plantados aqui, nesta serra tão parecida com aquelas de onde partiram e onde ancoraram histórias, reedito sensações que as palavras de tantas linguagens não traduzem. Há um hiato entre o corpo e a compreensão a percorrer o caminho de uma língua que atravessou um oceano de vivências e aportou em mim. Ressoa como um código que os dias revigoram, compondo um elo de comunicação com o tempo, concebido e construído por muitas vozes familiares.
Elas, as vozes em dialeto, me trazem para este convívio com meus momentos, alguns distantes, mas tão presentes. Falam com minha infância e contam o tempo dos antepassados. E a criança que mora na minha personalidade segue seus conselhos, persegue seus enredos que ainda conhecerei.
Não mais guardadas apenas em livros, há cantigas soletradas e poesias escritas com os olhos no meio do descanso na roça, que reprisam tantas cenas e traduzem destinos, quase esquecidos, desvelados na língua ainda viva, hoje talian.
É o dialeto que se comunica com meu passado e retoma meus caminhos. Neles habitam a colônia, a vila, a cidade, o município e, sobretudo, as sementes cultivadas por esses imigrantes. Descendente, trago em meus genes o sentimento de ser filha legítima dessa aventura desbravadora.
Do que aprendi na familiaridade com a trajetória cultural, revivo e alimento a ética do trabalho, a fé no futuro, os sabores da uva e do vinho, do sangue e suor, maturando a colheita, enquanto se forjam a ferraria e a metalurgia que se reinventam e coexistem na vida citadina. Tudo isso me convida a compreender o esforço da dedicação e me auxiliam a construir o sentido de pertencimento a essa cultura conectada com a realidade. Permeando toda essa rede cultural, articula-se o dialeto.
Sim, o dialeto fica comigo e me ajuda a contar a minha história com o som desse tempo, semeado e tão presente, dos italianos que imigraram para a minha vida. E são muitas sensações sem versões, mas que, conciliadas consigo mesmas, falam comigo suas emoções e pronunciam a previsão do que se realizou.
Desejo apreciar,por anos afora, a melodia do dialeto!
Mas uma interrogação me alça à incerteza: as novas gerações estão sendo chamadas para esse diálogo com seus antepassados que se comunicavam com o dialeto?
Diferente do retrato, do documento, do prédio tombado como patrimônio histórico, o dialeto só terá futuro se for mantido vivo, agora nas vozes das novas gerações.
Parla talian?




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