Comunidades e Bairros: Dedicação múltipla
Durante mais de 25 anos, Zeli Pinzon Tonet dirigiu a Escola Marcos Martini cuidando da sala de aula, da cozinha e até da limpeza
Fundada em 1955, desativada em 2019 por falta de alunos, a escola Marcos Martini, na Linha 60, sempre funcionou com turmas multisseriadas. Por duas décadas e meia, essa realidade se manteve graças à dedicação de uma educadora que também desempenhou múltiplas funções: além de diretora, Zeli Pinzon Tonet dava aulas para alunos de todas as séries, preparava a merenda e ainda fazia faxina no colégio.
“Eu cuidava mais da escola do que de casa”, afirma Zeli, contando que não foram poucas as vezes em que foi à instituição em plena madrugada para conferir se estava tudo dentro dos conformes. “Durante dois anos, eu tinha que chegar, dar uma atividade para as crianças, correr até Flores pegar merenda como uma desesperada, voltar e continuar a minha aula. Era uma loucura. Eu dava atenção integral aos alunos e depois fazia os trabalhos de direção, de limpeza, tudo fora do horário. E sempre deu certo”, explica a professora.
A certeza de que fez um bom trabalho, segundo ela, vem do desempenho dos alunos além das paredes do colégio da Linha 60. “Quando eles saiam daqui, eles iam para a escola Matteo Gianella em Caxias do Sul, porque não tinha ônibus para Flores. Nas reuniões, eles me elogiavam porque os melhores alunos eram os da Linha 60. Eu era muito exigente, tratava os meus alunos como tratava meus filhos”, conta Zeli.
Entre os ensinados pela diretora estão médicos, engenheiros, advogados. Alguns espalhados pelo mundo em países como Nova Zelândia e Itália, outros remanescentes na comunidade, se estabelecendo como lideranças locais. Motivos de orgulho para uma história letiva que começou em Santa Justina, onde Zeli deu os primeiros passos na profissão, depois de concluir o magistério em Caxias do Sul. Mas logo no segundo ano dentro das salas de aula, seu destino se cruzou novamente com a da Linha 60, voltando para a terra natal, dessa vez como educadora.
“Nós tínhamos muito amor à camiseta”, comenta Zeli sobre os professores de antigamente. Quanto ao ensino multisseriado, sistema em que lecionou até a aposentadoria, ela não tem ressalvas: “Eu acho que foi muito válido porque as crianças participavam mais, tinha mais integração. Claro que quem começa agora prefere uma turma só, mas como tinha poucos alunos nós agrupávamos, era muito bom, bem proveitoso” diz, explicando que a escola da Linha 60 era a única a ainda funcionar no modelo na época em que foi fechada.
A desativação se deu em 2019, quando a instituição tinha apenas quatro alunos. O número baixo de estudantes sempre foi uma preocupação e um argumento a favor do fechamento, que não ocorreu antes pela luta da comunidade em mantê-la funcionando. “Eu senti muito quando fecharam. Só aguentei porque eu já tinha me aposentado”, lamenta Zeli.
Passados mais de dois anos do encerramento das atividades, a ex-diretora evita passar pelo lugar. “Nem fui mais lá ver porque tiraram tudo, então a escola está vazia. Trabalhei 26 anos como uma louca, tinha tudo na minha escola. Quando estava tudo pronto eu me aposentei. Tinha biblioteca, sala de vídeo, tudo pequeninho, mas tinha tudo”, comenta a professora, que não se arrepende dos anos dedicados à escola: “Não foi fácil, mas eu gostava. Acho que se eu tivesse que voltar, faria a mesma coisa”.
Muito além da educação
Filha da Linha 60, Zeli expressou seu amor pela comunidade não apenas na escola Marcos Martini – sim, além das tarefas acumuladas como diretora, ela ainda arranjou tempo para se dedicar a outras atividades. Uma delas é o Clube de Mães Unidas, criado há 45 anos e que há 30 realiza um famoso café colonial, organizado pelas associadas, em todo o mês de junho – à exceção dos últimos dois, devido à pandemia.
O evento realizado no salão da comunidade, sempre ao meio dia, já foi classificado pela imprensa paulista como o maior café colonial do mundo. “Nós colocamos mais de 800 pessoas no salão e, quando termina, já tem 300 reservas para o ano seguinte. O pessoal fica louco porque enchemos uma mesa de 40 metros com cuca, café, chá, torta, sobremesa”, explica Zeli, que também participa de grupos de oração, campanhas do agasalho e de alimentos, além da associação que cuida da água que abastece o local.
A união da comunidade é, segundo ela, um dos traços mais característicos da Linha 60: “Eu amo morar aqui. O pessoal coopera bastante, se um precisar todo mundo ajuda. Cai um parreiral todo mundo vai ajudar, se uma pessoa fica doente todo mundo colabora”. Assim pode ser definida a população local, hoje estimada em 100 famílias, desde 1877, quando as primeiras famílias chegaram.
Entre os frutos dessa união, Zeli enumera progressos como a telefonia, a internet e a água tratada. “Agora com o poço, nós temos água boa, em abundância, com tratamento ótimo, foi uma grande conquista. Ele foi feito a partir da associação que nós criamos: a gente paga uma taxa mensal e a diretoria cuida de possíveis problemas. As chapas estão todas prontas, todo o ano vai trocando”, explica a professora aposentada.
Outra conquista foi a classificação da localidade, situada a cerca de 8km de Flores da Cunha e a 2km de Gotardo, como área rural (por parte de Caxias do Sul), depois de dois anos sendo considerada uma zona urbana, o que fazia aumentar o IPTU para os moradores locais. O fato de estar dividida entre Flores e Caxias é algo que prejudica a reivindicação de mudanças junto ao Poder Público e o acesso a serviços públicos: “Quando a gente quer conseguir uma coisa, não podemos falar com uma só prefeitura, já que tem essa divisão. Para conseguir o asfalto foi muito ruim”, diz Zeli.
De predominância rural, com o cultivo de uvas, e vendo o estabelecimento de indústrias nos últimos tempos, o local precisa da permanência do jovem para seguir evoluindo. “Os jovens aqui não têm muito atrativo, são poucos os que continuam com os pais. A troca de diretoria é um problema no salão da comunidade, assim como em outras”, encerra a moradora, como sempre preocupada com o futuro da Linha 60.
0 Comentários