As histórias florenses que atravessam gerações
A arara Cocota, a santa que está amarrada ao diabo e o túmulo que mostrava a sombra de uma mulher deitada no caixão são alguns dos fatos que integram a memória popular e que ajudam a construir a realidade cultural do município
Toda cidade tem uma história, construída a partir de documentos e fatos oficiais. Flores da Cunha, por exemplo, iniciou sua biografia a partir de 1876, com a chegada dos primeiros imigrantes italianos que, em 1878 fundaram o povoado de São Pedro e, posteriormente, o de São José. Reunidos, nos idos de 1885, formaram a vila de Nova Trento. Em 17 de maio de 1924 a vila, sede do 2º Distrito de Caxias do Sul, foi emancipada. Nove anos depois, em 21 de dezembro de 1935, por meio do Decreto Municipal nº 12, assinado pelo então prefeito Heitor Curra, com autorização do Conselho Municipal, alterou-se a denominação do município para Flores da Cunha, uma homenagem ao então governador do Rio Grande do Sul, o general José Antônio Flores da Cunha.
Esses fatos estão documentados em livros sobre a história do município. Daqui a 500 anos serão lembrados e recontados da mesma forma. Contudo, como ressalta a professora de História Gissely Lovatto Vailatti, a história de um lugar não existe sem as pessoas e sem as memórias dos fatos cotidianos vivenciados por elas. “Quando lembradas pela coletividade, acabam tornando-se uma construção da realidade. São pensamentos já introjetados e que têm algo por trás, uma construção primeira, uma cultura herdada de seus antepassados, o que inclui também a cultura religiosa”, evidencia a pesquisadora.
Uma das histórias mais marcantes do coletivo florense não está documentada, mas tornou-se tão conhecida que hoje caracteriza a cidade como a Terra do Galo. Para Gissely, à medida que os fatos são contados e recontados, passam de alguma forma a interferir na história atual. “Acredito que não é possível contar a história de algum lugar sem valorizar a trajetória do cotidiano, as memórias, o imaginário, a maneira como as pessoas enxergam os fatos. Cada um tem olhar sobre o ocorrido e vai reproduzir aquilo que mais a marcou”, frisa.
No altar, uma santa
acorrentada ao diabo
Uma igreja que tem no altar uma santa amarrada ao diabo. Embora pareça roteiro de novela, a exemplo de Renascer, escrita por Benedito Ruy Barbosa em 1993, essa figura existe realmente. Se alguém duvida, basta visitar a igreja de Santa Juliana, na capela homônima ao templo, em Mato Perso, 4º distrito de Flores da Cunha. A imagem de uma santa que segura o diabo acorrentado próximo a ela tem lugar de destaque no altar. Segundo um dos moradores do local, o agricultor Julio Conte, 79 anos, a imagem é uma releitura, feita há mais de 100 anos pelo escultor Nino Rigo, a partir de uma imagem trazida da Itália pela família Pitt, que além do sonho de viver no paese de la cucagna (país da abundância) trouxe a devoção por Santa Juliana às terras florenses.
Ao longo dos anos essa figura pitoresca despertou muita curiosidade e foi tema de muitas histórias (ou estórias) extraordinárias entre os moradores da comunidade. Uma delas é narrada pela agricultora Nair Maria Marchett Conte, 76 anos. Ela lembra que o pai, Virgílio Armando Marchett, costumava contar um fato estranho que teria marcado uma das viagens dele e dos colegas seminaristas, quando, ainda adolescente, visitou a comunidade para participar das Missões organizadas pela Igreja Católica. “Durante a missa ele foi brincar com o diabo. Alguém disse para ele não fazer aquilo, mas a ordem foi ignorada. Então, no fim da tarde, quando estavam voltando para casa, ele teria levado um tapa no rosto que quase o derrubou do cavalo. Ele acreditava que era o diabo, pois havia transgredido a regra da igreja ao se aproximar da imagem da santa”, descreve ela.
A partir de relatos como esse, criou-se a crença popular de que não se pode brincar com o diabo da Santa Juliana. “Quando vieni il prete, tecava fora le reche (quando o padre vier, vai te arrancar as orelhas), dizia minha mãe quando eu chegava perto do altar”, recorda Julio. “Durante a missa, ficava de olho nele (no diabo), mas não chegava nem perto. Morria de medo”, completa, explicando que na época os pais usavam a figura do diabo para colocar medo nos filhos para que respeitassem as regras. “Quando comecei a pintar os lábios, ia à igreja com a minha mãe e via que o diabinho tinha os lábios vermelhos. Então, parecia que ele estava sempre olhando para mim, pois nos diziam que não era certo usar batom”, diverte-se dona Nair ao lembrar-se da crença juvenil.
Para a historiadora Gissely Lovato Vailatti, as memórias são fruto da bagagem pessoal de cada um. Dessa forma cada pessoa irá interpretar a sua maneira as situações que vivencia e passará a comentar de acordo com os seus princípios. “Esses relatos têm sempre por trás a formação cultural de cada indivíduo, e quando reunidos com outros formam a identidade social de um povo. Desses contares e modos de ver o mundo é possível fazer referências que identificam uma comunidade”, argumenta a historiadora.
Conforme lembra o agricultor, Santa Juliana de Nicomédia, que viveu em 304 d.C., foi uma cristã que não aceitou se casar com um jovem pagão a quem estava prometida. “Ela foi torturada e trancada em um calabouço por conta da recusa. Lá, recebeu a visita do demônio em forma de anjo que tentou persuadi-la a se casar e renunciar a Deus. Como ela não se deixou enganar, o diabo sumiu envergonhado”, conta. Por conta disso, sua imagem está ao lado do demônio preso a ela por uma corrente, em alusão à tentação vencida pela santa.
Para os católicos, a jovem mártir, que foi decapitada, é reverenciada como padroeira da castidade, da pureza e da doença. Juliana foi sepultada em sua terra natal, a Nicomédia, hoje conhecida como Izmit, na Turquia. Anos depois seus restos mortais foram transferidos para Nápoles, na Itália, motivo que a tornou conhecida entre os italianos, que séculos depois vieram para o Brasil e povoaram regiões como Flores da Cunha.
Famílias de Mato Perso que migraram para Salto Veloso, em Santa Catarina, também fundaram por lá uma comunidade em honra a Santa Juliana, cuja imagem produzida em Caxias do Sul é idêntica àquela da terra de origem.
FOTOS/MIRIAN SPULDARO
Nair e Júlio Conte cresceram ouvindo histórias sobre a Santa Juliana e, principalmente, sobre o diabo que ela detém.
“Tereza, Tereza”, dizia Cocota
em seus voos pelo município
Pergunte para um florense se ele já ouviu falar da arara Cocota. Na mesma hora, uma série de histórias sobre suas peripécias pela cidade serão relembradas. “Sim, ela ficava na janela da Escola São Rafael”, diz uma. “Ela vinha comer chocolate em frente ao bar da minha família”, lembra outra. “Ela ‘corria’ atrás de mim quando passava pela praça”, conta uma terceira. A ave da espécie ararauna que foi trazida a Flores da Cunha em 1982 pelo caminhoneiro Remo Mascarello, à pedido da professora Valéria Teresinha Salvador Mioranza, 55 anos, é mais uma personagem das memórias do coletivo florense.
O belo exemplar do Cerrado brasileiro, que trazia as cores tupiniquins, amarela e azul, foi criada livre no terreno da casa da família Salvador, na Rua Ernesto Alves. Cocota passava o dia pela cidade e à noite voltava para dormir com o gato companheiro, debaixo do fogão à lenha. Amada por uns e odiada por outros, estava sempre aprontando pela vizinhança. Valéria conta que Cocota não podia ver uma janela aberta que entrava para roer sofás, roupas do varal, travesseiros e tudo que ficasse ao seu alcance. “Perdi as contas de quantas vezes tivemos que pagar os prejuízos. Ela roía o freio e a embreagem das motos, as borrachas dos vidros dos carros e nós tínhamos que pagar”, diverte-se a professora ao lembrar-se da ave que ficou conhecida por todos.
“Ela pousava em cima dos postes e ficava observando o movimento. Quando via um ônibus, descia em um voo rasante para ‘pegá-lo’. Por essa brincadeira, chegou em casa diversas vezes sem as penas da cauda. Depois disso, ficava sem sair uns três dias. Passava o susto e lá ia ela ndar in volta a strambolon (zanzar por aí)”, conta a mãe de Valéria, a aposentada Theresinha Beltrame Salvador, 81 anos, que passava a maior parte do tempo com a Cocota. Além dos ônibus, a ave atacava motoqueiros, carros e, claro, algumas pessoas. Em razão disso, na época a figura da ave era utilizada para controlar as crianças mais agitadas durante os passeios pela área central.
“Ela vinha voando e dizendo: Tereza, Tereza. Pousava em cima dos carros e ficava observando o movimento”, conta o barbeiro Jaime Sgarioni, que há 35 anos tem seu salão defronte à Praça da Bandeira, um dos locais preferidos da ave. “A gente dava chocolate para ela comer. Era nossa amiga, mas tinha gente que ela não gostava e avançava mesmo. Era uma correria”, completa o fotógrafo Rui Boff, que também acompanhou as aventuras da arara de seu estúdio em frente à Praça.
As pessoas lembram-se da Cocota, mas não sabem o que aconteceu com ela. Uns acreditam que ela tenha fugido, outros dizem que ela foi roubada, mas a verdade é que a família Salvador decidiu levá-la para um viveiro em Caxias do Sul após inúmeras reclamações da vizinhança. “Para amenizar a saudade que sentíamos, sempre que possível íamos até o local para visitar ela. A Cocota era muito bem tratada lá e estava com outros animais da espécie. Isso nos deixava mais tranquilos”, menciona a antiga dona. Ela conta que alguns anos depois a ave fugiu do cativeiro e nunca mais foi vista. “Ficou apenas na lembrança dos florenses”, completa dona Theresinha.
Para o professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), Fábio Vergara Cerqueira, que escreveu o artigo Patrimônio cultural, escola, cidadania e desenvolvimento sustentável, o patrimônio de uma sociedade não é composto apenas por propriedades ou bens materiais, mas também pelo legado social comum, que é depositário de diálogos, memórias e de identidades coletivas. “Hoje, a própria legislação brasileira (Constituição de 1988) referente ao patrimônio cultural propugna a necessidade de preservação, por meio de tombamento, de todos os bens, tangíveis e intangíveis (materiais e imateriais) que se referem à memória dos diferentes segmentos da sociedade”, cita ele, que exalta a importância da preservação das memórias da população local.
Theresinha e Valéria, antigas donas da arara Cocota, lembram com saudade da companheira ‘serelepe’.
Sgarioni e Boff, testemunhas das investidas da ave.
O mistério de Matilde Scolaro
Um dos fatos mais extraordinários já registrados na região ocorreu na comunidade de Santa Justina, na época em que ainda pertencia a Flores da Cunha, por volta da década de 1940 (em 23 de julho de 1951 os moradores realizaram um plebiscito e, por 132 votos a 28, a localidade retornou para Caxias do Sul). A história da morte de Matilde Scolaro marcou o coletivo florense e é lembrada até hoje por diferentes gerações. Logo após o sepultamento teria aparecido no túmulo dela uma sombra que retravava seu corpo deitado dentro do caixão, como um negativo das fotos de filme. Depois que o túmulo era pintado logo a imagem reaparecia.
A figura era tão nítida que logo chamou a atenção da imprensa que repercutiu o caso. A notícia atraiu muitos curiosos, que visitavam o cemitério para conhecer o túmulo. Os romeiros vinham de excursão de todo o Estado, pois acreditavam tratar-se de uma santa. “Antes de ir para o Exército, nosso pai, Caetano, e a segunda mulher dele moraram uns três anos com Matilde e Luiz. Ele conta que o tio Giggio estava enlouquecendo com essa situação e que se sentia mal, pois não sabia mais o que fazer para resolver aquilo. Chamou até o bispo da época, dom José Barea, para tentar explicar o fato, mas nada mudou”, lembram Mercedes Scolaro Caldart, 63 anos, e Rita Scolaro Marcante, 61 anos, sobrinhas-netas de Luiz Scolaro, esposo de Matilde (o avô delas era irmão de Luiz), que conhecem a história com detalhes, pois cresceram ouvindo o pai relatar o fato.
Como o casal era muito ligado aos padres, em virtude das doações que faziam para a construção do Seminário Diocesano Nossa Senhora Aparecida de Caxias do Sul, certo dia apareceu na casa de Luiz um padre desconhecido e que teria resolvido o mistério. “O tio contava para o nosso pai que o padre perguntou para ele qual era o motivo de tanto abatimento e tristeza. Ao falar o que estava acontecendo, o padre teria revelado que Matilde ajudava muito os seminaristas sem o conhecimento dele e que precisava do seu perdão para descansar em paz. O padre disse: ‘ghevolariache a perdonasse’ (é preciso que a perdoe). ‘Si, si. Là ze perdonata’ (sim, sim, ela está perdoada), respondeu tio Giggio”, conta Mercedes. Depois dessa visita, a imagem sumiu do túmulo e nunca mais apareceu. O padre, que ninguém nunca soube quem era, também desapareceu. Luiz Scolaro morreu em 1955, aos 85 anos. Na década de 1960 os familiares transferiram os restos mortais do casal do antigo túmulo para uma capela no cemitério de Santa Justina, onde permanecem até hoje.
“Esse fato marcou muito as pessoas que a viveram naquela época, principalmente a nossa família. Tenho certeza que Flores da Cunha se lembra dela”, frisa Rita. “Isso tudo que foi passado para nós faz parte das nossas vidas, são nossas raízes. Essa e outras histórias que nosso pai contava fazem parte da nossa base, da nossa fé e religiosidade”, completa Mercedes. A historiadora e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria Beatriz Pinheiro Machado, destaca que histórias como a contada pelas irmãs Scolaro são importantes, pois trabalham com a narrativa de uma comunidade, ou seja, com a memória de um povo. “Todas as narrativas, por mais fabulosas que sejam, quando são repetidas, tornam-se extremamente significativas porque são as lembranças que as pessoas têm, e que um manifesta com o outro. Então, coletivamente, isso se torna muito significativo”, enaltece.
Maria Beatriz destaca, ainda, que é possível afirmar que as memórias do coletivo fazem parte da história de uma cidade. “É a dinâmica social que se manifesta por meio dessas narrações, que traduzem um período, uma maneira de ser e de viver.” Para ela, preservar essas histórias, que passam de uma geração para outra, é importante, pois é um modo de reafirmar laços identitários de uma comunidade.
Mercedes e Rita lembram com detalhes a história que foi contada a elas pelo pai.
Esses fatos estão documentados em livros sobre a história do município. Daqui a 500 anos serão lembrados e recontados da mesma forma. Contudo, como ressalta a professora de História Gissely Lovatto Vailatti, a história de um lugar não existe sem as pessoas e sem as memórias dos fatos cotidianos vivenciados por elas. “Quando lembradas pela coletividade, acabam tornando-se uma construção da realidade. São pensamentos já introjetados e que têm algo por trás, uma construção primeira, uma cultura herdada de seus antepassados, o que inclui também a cultura religiosa”, evidencia a pesquisadora.
Uma das histórias mais marcantes do coletivo florense não está documentada, mas tornou-se tão conhecida que hoje caracteriza a cidade como a Terra do Galo. Para Gissely, à medida que os fatos são contados e recontados, passam de alguma forma a interferir na história atual. “Acredito que não é possível contar a história de algum lugar sem valorizar a trajetória do cotidiano, as memórias, o imaginário, a maneira como as pessoas enxergam os fatos. Cada um tem olhar sobre o ocorrido e vai reproduzir aquilo que mais a marcou”, frisa.
No altar, uma santa
acorrentada ao diabo
Uma igreja que tem no altar uma santa amarrada ao diabo. Embora pareça roteiro de novela, a exemplo de Renascer, escrita por Benedito Ruy Barbosa em 1993, essa figura existe realmente. Se alguém duvida, basta visitar a igreja de Santa Juliana, na capela homônima ao templo, em Mato Perso, 4º distrito de Flores da Cunha. A imagem de uma santa que segura o diabo acorrentado próximo a ela tem lugar de destaque no altar. Segundo um dos moradores do local, o agricultor Julio Conte, 79 anos, a imagem é uma releitura, feita há mais de 100 anos pelo escultor Nino Rigo, a partir de uma imagem trazida da Itália pela família Pitt, que além do sonho de viver no paese de la cucagna (país da abundância) trouxe a devoção por Santa Juliana às terras florenses.
Ao longo dos anos essa figura pitoresca despertou muita curiosidade e foi tema de muitas histórias (ou estórias) extraordinárias entre os moradores da comunidade. Uma delas é narrada pela agricultora Nair Maria Marchett Conte, 76 anos. Ela lembra que o pai, Virgílio Armando Marchett, costumava contar um fato estranho que teria marcado uma das viagens dele e dos colegas seminaristas, quando, ainda adolescente, visitou a comunidade para participar das Missões organizadas pela Igreja Católica. “Durante a missa ele foi brincar com o diabo. Alguém disse para ele não fazer aquilo, mas a ordem foi ignorada. Então, no fim da tarde, quando estavam voltando para casa, ele teria levado um tapa no rosto que quase o derrubou do cavalo. Ele acreditava que era o diabo, pois havia transgredido a regra da igreja ao se aproximar da imagem da santa”, descreve ela.
A partir de relatos como esse, criou-se a crença popular de que não se pode brincar com o diabo da Santa Juliana. “Quando vieni il prete, tecava fora le reche (quando o padre vier, vai te arrancar as orelhas), dizia minha mãe quando eu chegava perto do altar”, recorda Julio. “Durante a missa, ficava de olho nele (no diabo), mas não chegava nem perto. Morria de medo”, completa, explicando que na época os pais usavam a figura do diabo para colocar medo nos filhos para que respeitassem as regras. “Quando comecei a pintar os lábios, ia à igreja com a minha mãe e via que o diabinho tinha os lábios vermelhos. Então, parecia que ele estava sempre olhando para mim, pois nos diziam que não era certo usar batom”, diverte-se dona Nair ao lembrar-se da crença juvenil.
Para a historiadora Gissely Lovato Vailatti, as memórias são fruto da bagagem pessoal de cada um. Dessa forma cada pessoa irá interpretar a sua maneira as situações que vivencia e passará a comentar de acordo com os seus princípios. “Esses relatos têm sempre por trás a formação cultural de cada indivíduo, e quando reunidos com outros formam a identidade social de um povo. Desses contares e modos de ver o mundo é possível fazer referências que identificam uma comunidade”, argumenta a historiadora.
Conforme lembra o agricultor, Santa Juliana de Nicomédia, que viveu em 304 d.C., foi uma cristã que não aceitou se casar com um jovem pagão a quem estava prometida. “Ela foi torturada e trancada em um calabouço por conta da recusa. Lá, recebeu a visita do demônio em forma de anjo que tentou persuadi-la a se casar e renunciar a Deus. Como ela não se deixou enganar, o diabo sumiu envergonhado”, conta. Por conta disso, sua imagem está ao lado do demônio preso a ela por uma corrente, em alusão à tentação vencida pela santa.
Para os católicos, a jovem mártir, que foi decapitada, é reverenciada como padroeira da castidade, da pureza e da doença. Juliana foi sepultada em sua terra natal, a Nicomédia, hoje conhecida como Izmit, na Turquia. Anos depois seus restos mortais foram transferidos para Nápoles, na Itália, motivo que a tornou conhecida entre os italianos, que séculos depois vieram para o Brasil e povoaram regiões como Flores da Cunha.
Famílias de Mato Perso que migraram para Salto Veloso, em Santa Catarina, também fundaram por lá uma comunidade em honra a Santa Juliana, cuja imagem produzida em Caxias do Sul é idêntica àquela da terra de origem.
FOTOS/MIRIAN SPULDARO
Nair e Júlio Conte cresceram ouvindo histórias sobre a Santa Juliana e, principalmente, sobre o diabo que ela detém.
“Tereza, Tereza”, dizia Cocota
em seus voos pelo município
Pergunte para um florense se ele já ouviu falar da arara Cocota. Na mesma hora, uma série de histórias sobre suas peripécias pela cidade serão relembradas. “Sim, ela ficava na janela da Escola São Rafael”, diz uma. “Ela vinha comer chocolate em frente ao bar da minha família”, lembra outra. “Ela ‘corria’ atrás de mim quando passava pela praça”, conta uma terceira. A ave da espécie ararauna que foi trazida a Flores da Cunha em 1982 pelo caminhoneiro Remo Mascarello, à pedido da professora Valéria Teresinha Salvador Mioranza, 55 anos, é mais uma personagem das memórias do coletivo florense.
O belo exemplar do Cerrado brasileiro, que trazia as cores tupiniquins, amarela e azul, foi criada livre no terreno da casa da família Salvador, na Rua Ernesto Alves. Cocota passava o dia pela cidade e à noite voltava para dormir com o gato companheiro, debaixo do fogão à lenha. Amada por uns e odiada por outros, estava sempre aprontando pela vizinhança. Valéria conta que Cocota não podia ver uma janela aberta que entrava para roer sofás, roupas do varal, travesseiros e tudo que ficasse ao seu alcance. “Perdi as contas de quantas vezes tivemos que pagar os prejuízos. Ela roía o freio e a embreagem das motos, as borrachas dos vidros dos carros e nós tínhamos que pagar”, diverte-se a professora ao lembrar-se da ave que ficou conhecida por todos.
“Ela pousava em cima dos postes e ficava observando o movimento. Quando via um ônibus, descia em um voo rasante para ‘pegá-lo’. Por essa brincadeira, chegou em casa diversas vezes sem as penas da cauda. Depois disso, ficava sem sair uns três dias. Passava o susto e lá ia ela ndar in volta a strambolon (zanzar por aí)”, conta a mãe de Valéria, a aposentada Theresinha Beltrame Salvador, 81 anos, que passava a maior parte do tempo com a Cocota. Além dos ônibus, a ave atacava motoqueiros, carros e, claro, algumas pessoas. Em razão disso, na época a figura da ave era utilizada para controlar as crianças mais agitadas durante os passeios pela área central.
“Ela vinha voando e dizendo: Tereza, Tereza. Pousava em cima dos carros e ficava observando o movimento”, conta o barbeiro Jaime Sgarioni, que há 35 anos tem seu salão defronte à Praça da Bandeira, um dos locais preferidos da ave. “A gente dava chocolate para ela comer. Era nossa amiga, mas tinha gente que ela não gostava e avançava mesmo. Era uma correria”, completa o fotógrafo Rui Boff, que também acompanhou as aventuras da arara de seu estúdio em frente à Praça.
As pessoas lembram-se da Cocota, mas não sabem o que aconteceu com ela. Uns acreditam que ela tenha fugido, outros dizem que ela foi roubada, mas a verdade é que a família Salvador decidiu levá-la para um viveiro em Caxias do Sul após inúmeras reclamações da vizinhança. “Para amenizar a saudade que sentíamos, sempre que possível íamos até o local para visitar ela. A Cocota era muito bem tratada lá e estava com outros animais da espécie. Isso nos deixava mais tranquilos”, menciona a antiga dona. Ela conta que alguns anos depois a ave fugiu do cativeiro e nunca mais foi vista. “Ficou apenas na lembrança dos florenses”, completa dona Theresinha.
Para o professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), Fábio Vergara Cerqueira, que escreveu o artigo Patrimônio cultural, escola, cidadania e desenvolvimento sustentável, o patrimônio de uma sociedade não é composto apenas por propriedades ou bens materiais, mas também pelo legado social comum, que é depositário de diálogos, memórias e de identidades coletivas. “Hoje, a própria legislação brasileira (Constituição de 1988) referente ao patrimônio cultural propugna a necessidade de preservação, por meio de tombamento, de todos os bens, tangíveis e intangíveis (materiais e imateriais) que se referem à memória dos diferentes segmentos da sociedade”, cita ele, que exalta a importância da preservação das memórias da população local.
Theresinha e Valéria, antigas donas da arara Cocota, lembram com saudade da companheira ‘serelepe’.
Sgarioni e Boff, testemunhas das investidas da ave.
O mistério de Matilde Scolaro
Um dos fatos mais extraordinários já registrados na região ocorreu na comunidade de Santa Justina, na época em que ainda pertencia a Flores da Cunha, por volta da década de 1940 (em 23 de julho de 1951 os moradores realizaram um plebiscito e, por 132 votos a 28, a localidade retornou para Caxias do Sul). A história da morte de Matilde Scolaro marcou o coletivo florense e é lembrada até hoje por diferentes gerações. Logo após o sepultamento teria aparecido no túmulo dela uma sombra que retravava seu corpo deitado dentro do caixão, como um negativo das fotos de filme. Depois que o túmulo era pintado logo a imagem reaparecia.
A figura era tão nítida que logo chamou a atenção da imprensa que repercutiu o caso. A notícia atraiu muitos curiosos, que visitavam o cemitério para conhecer o túmulo. Os romeiros vinham de excursão de todo o Estado, pois acreditavam tratar-se de uma santa. “Antes de ir para o Exército, nosso pai, Caetano, e a segunda mulher dele moraram uns três anos com Matilde e Luiz. Ele conta que o tio Giggio estava enlouquecendo com essa situação e que se sentia mal, pois não sabia mais o que fazer para resolver aquilo. Chamou até o bispo da época, dom José Barea, para tentar explicar o fato, mas nada mudou”, lembram Mercedes Scolaro Caldart, 63 anos, e Rita Scolaro Marcante, 61 anos, sobrinhas-netas de Luiz Scolaro, esposo de Matilde (o avô delas era irmão de Luiz), que conhecem a história com detalhes, pois cresceram ouvindo o pai relatar o fato.
Como o casal era muito ligado aos padres, em virtude das doações que faziam para a construção do Seminário Diocesano Nossa Senhora Aparecida de Caxias do Sul, certo dia apareceu na casa de Luiz um padre desconhecido e que teria resolvido o mistério. “O tio contava para o nosso pai que o padre perguntou para ele qual era o motivo de tanto abatimento e tristeza. Ao falar o que estava acontecendo, o padre teria revelado que Matilde ajudava muito os seminaristas sem o conhecimento dele e que precisava do seu perdão para descansar em paz. O padre disse: ‘ghevolariache a perdonasse’ (é preciso que a perdoe). ‘Si, si. Là ze perdonata’ (sim, sim, ela está perdoada), respondeu tio Giggio”, conta Mercedes. Depois dessa visita, a imagem sumiu do túmulo e nunca mais apareceu. O padre, que ninguém nunca soube quem era, também desapareceu. Luiz Scolaro morreu em 1955, aos 85 anos. Na década de 1960 os familiares transferiram os restos mortais do casal do antigo túmulo para uma capela no cemitério de Santa Justina, onde permanecem até hoje.
“Esse fato marcou muito as pessoas que a viveram naquela época, principalmente a nossa família. Tenho certeza que Flores da Cunha se lembra dela”, frisa Rita. “Isso tudo que foi passado para nós faz parte das nossas vidas, são nossas raízes. Essa e outras histórias que nosso pai contava fazem parte da nossa base, da nossa fé e religiosidade”, completa Mercedes. A historiadora e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria Beatriz Pinheiro Machado, destaca que histórias como a contada pelas irmãs Scolaro são importantes, pois trabalham com a narrativa de uma comunidade, ou seja, com a memória de um povo. “Todas as narrativas, por mais fabulosas que sejam, quando são repetidas, tornam-se extremamente significativas porque são as lembranças que as pessoas têm, e que um manifesta com o outro. Então, coletivamente, isso se torna muito significativo”, enaltece.
Maria Beatriz destaca, ainda, que é possível afirmar que as memórias do coletivo fazem parte da história de uma cidade. “É a dinâmica social que se manifesta por meio dessas narrações, que traduzem um período, uma maneira de ser e de viver.” Para ela, preservar essas histórias, que passam de uma geração para outra, é importante, pois é um modo de reafirmar laços identitários de uma comunidade.
Mercedes e Rita lembram com detalhes a história que foi contada a elas pelo pai.
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