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Ao som da pluralidade e da beleza

Mississippi Delta Blues Festival em Caxias do Sul inovou e, além da música, promoveu o South Caxias Blues Tour

Há tantas maneiras e tantas razões para sentir que o mundo acaba resultando num estímulo constante para qualquer pessoa disposta a acordar. No entanto, neste espectro inacabável não é em vão que chamam a música de linguagem universal. Seja dos trópicos ou ao Sul do mundo, de uma ilha ou um continente, essa conversa de instrumentos e/ou vozes têm muitas oportunidades para comover. E o blues é mágico para isso. Nem o mais cético fica indolente ouvindo um blues emocionante e bem tocado. Para os norte-americanos a palavra também significa melancolia, tristeza, e isso diz tudo.

Nascida de uma triste história de desarraigamento, violência, flagelação e resistência, esta forma musical segue crescendo e ganhando adeptos, ouvidos sensibilizados que percorrem terras e mares para deixar-se emocionar. Por isso, de uma ponta a outra do mundo foi sentida neste fim de semana essa palpitação. Durante três dias a cidade de Caxias do Sul reverberou com o Mississippi Delta Blues Festival (MDBF), uma festa sensorial de alto quilate e na sexta edição. Várias foram as novidades nesta recente ocasião, entre elas o South Caxias Blues Tour (STCB), um sucesso. A música saiu dos cenários clássicos do Festival e encontrou-se com vinhos, morangos e a enraizada tradição italiana que sobrevive no Rio Grande do Sul.

O passeio
A primeira parada de quase 20 participantes do SCBT ocorreu na vinícola Don Claudino. Petiscos típicos da região e vinho produzido e engarrafado pela família Piccoli, proprietária da adega, abriram a rota, harmonizando com um dueto (mais tarde saberíamos que eram os principais organizadores do Festival, Toyo Bagoso e Tomás Seidl) que interpretava com gaita de boca e violão canções daquelas que movem a alma e contam histórias. Mas ainda havia muito por conhecer.

Outra vinícola, Tonet, recebeu o heterogêneo grupo de turistas de Santa Catarina, Santa Cruz do Sul, Campo Grande (MT), Caxias e Cuba. O carisma e a autenticidade dos descendentes de italianos foi sentido nessa casa maciça e espaçosa. Vinhos, vinhos fortificados, sucos e acetos balsâmicos permitiram saborear o resultado de uvas de mesa e viníferas aos apaixonados pela vitivinicultura.

Também a gastronomia foi parte do momento com uma grande variedade de pratos do maior estilo gaúcho, enquanto isso, um som cativante foi interpretado pelos bluesmen Decio Caetano e Toyo Bagoso. Sobremesa e a dança da La Bella Polenta marcaram a despedida. Em seguida, outro encontro com a história da Itália no Brasil.
O Museu Casa de Pedra, no bairro Santa Catarina, conta desde seus muros seculares uma forte verdade sobre a determinação e o esforço de imigrantes e suas lendas. Milhares de pedras recolhidas do rio vizinho por 10 anos cimentaram a moradia de uma família e hoje esse prédio é patrimônio da cidade. Lá também o blues surpreendeu por inesperado, onipresente e muito bem tocado. Itália e Mississippi estavam cantando juntos a verdade dos magoados, os corajosos, os persistentes.

Novo percurso
O grupo estava chegando a sua última parada e esta não poderia ser mais paradisíaca. Verde intenso, primavera estourando em cada canto e no fundo morangos em expansão foram os primeiros vislumbres. Em seguida, o conforto de redes colocadas com caprichoso descuido e a dupla de músicos misturados com a natureza confirmou a certeza de chegar no Barlavento, anexo ao Rio do Vento Morangos Hidropônicos, no distrito de Fazenda Souza. Sabíamos que esta era uma área dedicada ao cultivo de morangos a partir de mudas importadas em condições controladas, onde até mesmo a música tem função geradora, mas o encontro superou as expectativas. Conhecer a localização, o propósito, a sensação de paz e beleza em todas as partes, o convite a um sorvete quase pecaminoso de tão gostoso e a música constante e viva foram grandes deleites, especialmente para aqueles que vieram de tão longe como muitos de nós. Um pouco mais de tempo em Barlavento e depois a volta para o Centro de Caxias ao último dia do Festival.

* Jornalista cubana que participa de intercâmbio até o final de janeiro na Editora Novo Ciclo (jornais O Florense e A Vindima e revista Bon Vivant).


Parada obrigatória para saborear morangos ao som de blues. Atividade foi organizada pela Secretaria de Turismo de Caxias do Sul e pela agência Rupestre Turismo. (Foto/Melbys Nicola)

Um Festival de celebração cultural

Chegar quando as atividades ainda não começaram tem magia: a gente acaba vendo nos bastidores como se compõem lentamente e em conjunto aquilo que em seguida, vamos desfrutar. Os cinco cenários distribuídos na amplitude dos trilhos da Estação Férrea prometiam muito para escolher e fazer naquela noite. Também chamava a atenção a infraestrutura gastronômica que incluía comida própria do Sul dos Estados Unidos.

Seis horas da tarde, público chegando, maré que não cessa, começam os acordes no palco principal, o Railroad Stage, em uma apresentação que manteve o público vibrando por quase uma hora. Em seguida as propostas se diversificam na possibilidade de escolher entre o Street Stage, o Front Porch Stage, o Truck Stage ou o Mississippi Stage. Era um mundo de blues e pelo blues. Muitos foram atraídos pela oportunidade de ver tocando ao vivo os músicos dos EUA que cativaram com a sua graça e experiência, assim como também o fez a forte representação brasileira e os participantes argentinos, chilenos e italianos.

E havia mais, muito mais, até chegar a madrugada. Ao longo dos velhos trilhos ferroviários, copos temáticos, sons compassados, camisetas com rostos de blues, pessoas de todas as idades e sexos, sorrisos, diversão e felicidade, tudo expressava e dava vida ao encontro.

Por mais um ano o Mississippi Delta Blues Festival foi um sucesso, uma celebração da pluralidade cultural. Para o Rio Grande do Sul significa colocar uma de suas cidades mais cosmopolitas no mapa cultural global; para aqueles que reconhecem ou descobrem o MDBF é uma viagem intangível desde o Sul do mundo para o Sul dos Estados Unidos, de Caxias ao Mississippi e do Brasil para uma nova revalidação musical além de linguagens e de cores, na qual se canta intimamente à saudade, à identidade e à beleza.

No bar também estava o diretor de toda essa magia, Toyo Bagoso, disposto entre todo o turbilhão, a falar com O Florense. Confira os principais trechos da entrevista.


João Antônio Pezzi Bagoso, o Toyo.
(Foto/Samantha Hunoff/Divulgação) 


O Florense: Como começou esta festa que agora é o Festival.
Toyo Bagoso:
Tudo começou a partir de uma viagem que fiz em Chicago em 2008. Naquela época, o Mississippi Delta Blues Bar já tinha dois anos e participar do Festival de Chicago significou pensar como seria interessante para o final do ano uma confraternização entre os músicos que tocavam no bar. Ao voltar, falei com alguns amigos e começamos articular tudo porque muitos estavam dispostos a ajudar e começar a gerenciar a infraestrutura. Como o Mississippi fica em um edifício que era um antigo moinho, chamado Moinho da Estação, vários estabelecimentos como bares e restaurantes decidiram se juntar para organizar o evento. Atualmente, este é um Festival comunitário, é realmente um monte de gente ajudando.

O Florense: São seis edições com sucesso crescente. O anterior deixou um saldo de 9.000 pessoas em três dias. Qual a novidade agora?
Bagoso:
Neste ano se destaca o número de músicos estrangeiros. Para levar adiante o investimento de trazer artistas do Exterior precisávamos ter a certeza de que haveria venda de ingressos. Acompanhando o crescimento do público também aumentamos a participação estrangeira, como Eddy The Chief Clearwater, Mud Morganfield, Henry Gray, Wallace Coleman, James Wheeler, Mr Bob Stronger, J.J. Jackson, Daniel Raffo, Masrcelo Nova e Fernando Noronha & Black Soul.

O Florense: Este é um evento que está amadurecendo. Qual você acha que será o futuro?
Bagoso:
Eu não sei exatamente onde quero chegar, a verdade é que o trabalho de um ano inteiro para vivenciar estes três dias não tem preço. Este é um momento de uma felicidade indescritível. Porém, em 2017 queremos abrir uma filial do bar Mississippi em outra cidade, que poderia ser o Rio de Janeiro, depois, talvez também realizar um festival nessa cidade para aproveitar a presença dos músicos.

O Florense: Você acha que esse movimento, esta proposta, tem influenciado a visão cultural de Caxias e da região?
Bagoso:
O Festival tem influenciado a percepção do blues no Rio Grande do Sul. A visão que as pessoas têm é que o blues é apenas aquele do Delta do Mississippi norte-americano, mais triste, mas não é só isso. O blues era sofrimento, uma forma de dor criado para curar a dor, o alívio cantando essa música, mas ao longo do tempo teve variações e em cada região onde se misturou surgiu um estilo diferente, obtendo-se o jam blues, o blues de Chicago, o de Texas. O interessante é que as pessoas vêm aqui e percebem a diferença, como existem muitos estilos e formas de interpretá-los. Foi assim que conseguimos ganhar mais adeptos, mais pessoas consumindo blues. De fato, alguns anos atrás a França era o segundo país com o maior consumo dessa música, de material e lançamentos de coleções. No entanto, já o Brasil em relação a bandas, festivais, fabricação de instrumentos, gravadoras, ultrapassou e atualmente somos o segundo país depois dos EUA, isso é muito legal. Temos uma responsabilidade e quanto a Caxias são muitos os que dizem que virou a ‘Capital Brasileira do Blues’.

Os Vespas se apresentaram no truck stage. - MDBF/Divulgação
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