Geral

A Cuba da discórdia

Da ilha não se pode escrever poucas linhas porque não é nada fácil explicá-la

Pertenço a um país cheio de contradições que optou por uma alternativa sistêmica e, desde então, entre acertos e desacertos, vai flutuando. Assim, a minha ilha e sua orientação política por uma, outra, ou muitas razões nunca passam despercebidas, sempre despertam curiosidade, pelo menos é o que eu vivi. Com mais de cinco meses no Brasil e depois de ter viajado muito pela Serra Gaúcha e outras regiões, são inúmeras as vezes que as quais eu tive que falar sobre o meu país e suas nuances, mesmo ante o risco da minha própria nostalgia. Política, sociedade, economia, cultura... Mil e um tópicos me fazem discorrer em conversações apaixonadas, céticas, tendenciosas, solidárias, e assim por diante. De meu lado está sempre o sentimento, não pode acontecer de outra forma; da parte do meu interlocutor está a vontade de saber sobre um lugar tão distante e polêmico do qual só são ouvidos mitos e referências gerais.

Cada nação tem suas peculiaridades e se alguma coisa eu aprendi nesta minha primeira viagem internacional é que o espectro entre preto e branco que cada situação tem é muito importante. Elementos positivos e negativos podem ser encontrados em qualquer lugar e a apreciação do assunto vai exclusivamente pelos olhos culturais, intelectuais e sentimentais daquele que está disposto a enxergar.

De Cuba não pode-se falar em poucas linhas, também não é nada fácil explicá-la. Este relato (e outro, que será publicado em janeiro) será apenas um esboço da grande quantidade de informação que existe sobre minha terra. Eu falarei só como cubana de dentro, como nativa que a vive, sofre e goza todos os dias. Minhas palavras vêm desde a humildade e sem paixões políticas, apresentando algo do conhecimento que me fornece a minha formação e minhas experiências, sentindo na pele cada um dos meus passos, ações e reações.

Eu, é claro, falo desde a saudade, da maré que trazem minha identidade e minhas nostalgias, mas pergunto: existe uma maneira ou desculpa melhor para se expor? Em todo o caso o meu convite seria como a do viajante, escritor e, especialmente brasileiro, Amyr Klink: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”.

Pedaço de terra enraizado no mar

Cuba é um arquipélago e abrange tanto a maior ilha como pequenos ilhotes, alguns dos quais são altamente reconhecidos por sua exuberante beleza natural e alto potencial turístico. Além disso, outra ilha de tamanho médio em comparação com o resto compõe este rosário: a Ilha da Juventude também pertence a Cuba e é um município especial dentro da distribuição nacional.

Com a imagem de um jacaré dormindo, segundo os poetas, este território longo e estreito é puro trópico em sua flora, fauna, cores e sabores, suas chuvas e furacões ocasionais e suas estações que vão desde mais calor a menos calor. Paisagens e praias maravilhosas caracterizam-nos, é também a certeza de ter sempre perto o mar. Esta é uma característica que nos define mesmo do ponto de vista psicológico, faz nos sentir únicos, donos de um mundo próprio. Quinze províncias compõem nossa divisão político-administrativa, sendo Havana a capital nacional.

Chamada por muitos ‘Chave do Golfo’ graças a sua excelente posição geográfica, na entrada do Golfo do México, Cuba foi e é altamente cobiçada pelos grandes impérios por causa de sua localização estratégica nas Américas: a noroeste estão os estreitos da Flórida e de Yucatán, que separam a ilha dos Estados Unidos por 180km e 210km, respectivamente, além de ficar muito próximo ao México, Bahamas, Haiti e Jamaica. Justo pela sua indiscutível proximidade o país tem sido assunto pendente dos governos norte-americanos.

Uma vocação política
 

Precisamente a irrefutável vizinhança com o resumo histórico do imperialismo mundial definiu muito a história de Cuba. Primeiro colônia da Espanha, e várias guerras pela independência, toda essa terra tornou-se propriedade dos Estados Unidos em uma neocolônia supostamente representada por governos de Cuba, mas que, como em muitos outros países latino-americanos, respondiam aos interesses da ‘Grande Potência’, o EUA. Por mais de meio século se manteve essa situação que aumentou as brechas sociais e econômicas deixadas pelo relacionamento anterior com a Espanha. Deste período também provém a legislação que ainda mantém a Base Naval de Guantánamo ativa, um território dos Estados Unidos em Cuba.

O ano 1959 marcou a diferença que focou a ilha no mapa político mundial. Como resultado de todas as ações que durante esse período desenvolveram jovens, estudantes, trabalhadores, mulheres e, especialmente, os pobres tentando se libertar do grilhão de governos violentos que não respondiam aos interesses da nação, mas o poder norte-americano, triunfou a Revolução Cubana com Fidel Castro como líder e figuras tão emblemáticas como o argentino Ernesto Guevara, o Che. A proposta: construir uma sociedade mais justa e equitativa, seguindo as linhas do socialismo de que falaram Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lenin. O triunfo de 1º de janeiro 1959 seria um evento que mudaria o cenário político regional e até mesmo teria ecos em todo o mundo e, claro, conquistaria a animosidade do maior detrator possível: os Estados Unidos.

Nessa luta de Davi e Golias começou o que é nossa história atual, tentando dar efeito a um paradigma político, econômico e social sem precedentes. A erradicação do analfabetismo, a nacionalização de recursos e distribuição de terras caminharam paralelos a ataques explícitos ou sutis da superpotência, o estabelecimento do bloqueio econômico, comercial e financeiro pelos EUA, e uma necessidade de reorganização em todos os aspectos administrativos do país.

O fervor da conquista trouxe erros graves, mas também grandes sucessos de impacto social. Na conclusão da década de oitenta ficavam para trás as primeiras décadas da revolução cubana e mundial. Cuba tinha vivido alguns anos de boom econômico gradual que impactaram positivamente em todas as margens da vida coletiva e individual. E assim, apoiados pela ex-União Soviética, nossa maior referência europeia do que queríamos construir, estivemos caminhando até a queda do Muro de Berlim e, com ele, a débâcle de muitos sonhos.

Começava deste modo o chamado Período Especial em Tempos de Paz, onde a nação passara seus dias em pura supervivência. O colapso situou o país-ilha à beira de suas próprias aspirações. Pela elevada percentagem do comércio exterior e benefícios comerciais que ligava Cuba com os países do Conselho para Assistência Econômica Mútua, o impacto foi bem dramático. A queda obrigou a procurar novos parceiros econômicos e articular novas estratégias para localizar a produção nativa no mercado internacional e obter resultados lucrativos, tudo sem comprometer o projeto político revolucionário ou minimizar as realizações nas áreas de saúde, educação e segurança social.

Outros ingredientes da complexa alquimia política, econômica e social que alagava Cuba foi o recrudescimento da animosidade dos Estados Unidos, para quem estas circunstâncias se apresentavam como o contexto ideal para acelerar a queda da ‘fruta madura’, assim, novas leis procuraram acelerar o processo cobiçado. Os padecimentos econômicos e a Lei de Ajuste Cubano, em vigor desde 1966, tornaram o panorama um terreno fértil para um êxodo massivo e perigoso. Só em 1994 cerca de 36 mil pessoas correram para o mar em barcos bem precários, procurando a melhora econômica 90 milhas ao norte de nossas costas.

Transformações gerais

No entanto, mesmo do lado cubano prevaleceu o esforço para mitigar as perdas econômicas e, portanto, o governo se lançou numa reconstrução de recursos e renda tomando medidas de contingência, mas também inevitáveis nesse contexto. A abertura ao investimento de capital estrangeiro, a criação de empresas em parceria e cooperativas agrícolas e a exportação de serviços foram algumas das mudanças decisivas na economia cubana que logo incidiriam no sempre para bem na estrutura social.

Da mesma forma, a legalização do uso do dólar e o recebimento de remessas, o pagamento em divisas para a estimulação dentro de certos setores, a abertura controlada do setor privado, a redução de ministérios, a reorganização de empresas estatais e a reestruturação do sistema bancário também definiram as transformações monetárias e gerais em Cuba. Além disso, neste período as linhas econômicas tradicionais foram relegadas pelos problemas financeiros urgentes que o país enfrentava e não se impulsionou devidamente a produtividade nacional o que trouxe lugar a uma importação milionária de produtos. O Período Especial estabeleceu que o desenvolvimento do turismo internacional se convertesse na linha principal da economia nacional, que antes tinha pertencido a produtos agrícolas como a cana.

Na atualidade as coisas estão se modificando e Cuba caminha nestes últimos tempos por mudanças estruturais sobre questões como a propriedade privada, viabilização dos tramites migratórios, produtividade e economia, os quais estiveram por muitos anos estáticos. O caminho com Fidel Castro chegou até 2008 quando, por motivos de saúde, deixou o governo a seu irmão, que era até então líder das Forças Armadas Revolucionárias. A partir dessa data Raúl Castro leva a direção geral do país com ministros e a Assembleia do Poder Popular, conforme estabelecido por lei e as eleições cubanas.


Contudo, ainda hoje a polêmica é internacional e Cuba, sua política e história segue sendo centro de atenção. Mas também são muitos os que continuam querendo esse povo, essa gente, esse pedaço de terra digno de conhecer, descobrir e desfrutar.







* Jornalista cubana que participa de um intercâmbio até o final de janeiro na Editora Novo Ciclo (jornais O Florense e A Vindima e revista Bon Vivant).


 - Stock.xchng/Divulgação
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