Do imaginário do imigrante à identidade cultural
Lenda do Sanguanel reforça as tradições italianas na Serra Gaúcha, e florense Venâncio Mascarello conta suas vivências com o homenzinho de vermelho
O mês de agosto começou e, com ele, as atividades alusivas ao folclore do nosso país. Nesse contexto, lendas como Saci-pererê, Curupira, Mula sem cabeça, Lobisomem, Boitatá, Iara, Boto e Cuca ganham um significado diferente, sendo interpretadas como parte da identidade cultural brasileira, composta por elementos de variados povos que se instalaram nessas terras, uma verdadeira miscigenação.
E nós, florenses, também temos algumas lendas com as quais nos identificamos mais, seja por apresentarem uma aproximação com animais e elementos tipicamente gaúchos – como Negrinho do Pastoreio, Erva-mate e Quero-quero – ou pelo fato de terem sido narradas por nossos nonos e nonas, e trazidas na bagagem dos imigrantes italianos, como é o caso da história do Sanguanel, que vamos contar aqui, ou melhor, o agricultor Venâncio Mascarello, de 59 anos, vai.
Quem vê Mascarello sorrindo, em frente a uma cerca de arame farpado, em sua propriedade junto ao Travessão Sete de Setembro, no interior de Flores da Cunha, sequer imagina o que aconteceu naquele mesmo local há mais de 45 anos.
“Naquela época eu estava com uns 12, 13 anos. Uma vez, nos tempos de gurizada, não tinha brinquedos que nem agora, a gente tinha praticamente um bodoque que nós mesmos fazíamos e íamos em volta com ele e uma sacola de pedras para atirar”, contextualiza o florense sobre o passatempo dos garotos.
O agricultor conta que, certo dia, pegou seu bodoque, as pedras e saiu para atirar próximo aos parreirais. Logo após a cerca, ele relata ter visto uma árvore se mexendo, pois, estava carregada de sementes e os passarinhos aproveitavam para se alimentar, foi quando decidiu passar embaixo dos arames farpados, se aproximar do local, e testar sua mira: “Comecei com bodocada para cima, quando percebi um passarinho pegou uma pedrada e caiu, era longe uns 10 metros, mais ou menos, de onde botava as pedras, quando eu baixei a cabeça para ir pegar caiu metade de uma árvore bem grande. Ela devia ter, para cima uns 7, 8 metros da tora, uma forquilha dividindo, mas aí o vento quebrou e ela ficou ali no chão”, lembra.
Pelo fato de a planta ter muitas cordas e cipós era difícil enxergar o que havia em meio à vegetação e, justamente por isso, o florense explica que aquele era o cenário ideal: “O bichinho estava lá no meio, o tal de Sanguanel, altinho assim (menos de meio metro), todo vestido de vermelho, chapeuzinho vermelho, com uma fita amarrada também. Naquilo quase que eu caio no chão, porque fiquei bobo, eu olhava e ele me chamava com a mão, que era para eu ir lá com ele. Saí correndo, perdi sacola, perdi bodoque, perdi tudo”, conta, mesclando risos ao sentimento de medo que vivenciou na ocasião.
Porém, para sair daquele local, próximo aos parreirais, e chegar até sua casa, Mascarello precisava passar embaixo da mesma cerca que passara no caminho de ida. Um obstáculo que, naquele momento, não era nenhum pouco bem-vindo. “Quando eu vi, virei as costas, tinha o fio longe uns cinco ou seis metros, me espichei embaixo, tão rápido que se o arame me pega, corta fora a cabeça. O fio estava espichado que nem uma corda de violão. Depois disso vim para casa com os calcanhares que encostavam nas costas de tanto que eu corria morro abaixo”, relembra, acrescentado que assim que chegou, por volta das 11h, foi rapidamente para baixo das cobertas, pois estava tremendo de medo e queria se esconder.
De acordo com o florense, sua mãe, que estava fazendo almoço, saiu às pressas para perguntar o que havia acontecido, preocupada: “Ela veio logo dentro ver porque eu tinha entrado em casa que nem um foguete, me enfiei embaixo das cobertas, parecia até que tinha um enxame de abelhas correndo atrás de mim. Eu peguei um susto”, ressalta, ao mesmo tempo em que revela que, ao contar a história para sua mãe, na hora ela teria lhe dito que seria o Sanguanel, uma vez que ela já o tinha visto em outra ocasião.
Na verdade, naqueles anos, o que não faltava eram casos envolvendo a figura que se vestia toda de vermelho. Segundo o agricultor, em diversas situações, o personagem deixava rastros de suas traquinagens, que aprontava principalmente à noite e podiam ser notadas na manhã seguinte, como tranças no rabo e nas crinas dos cavalos, o leite que tirava das vacas, além de esconder crianças em morros, no topo das árvores, ou no meio dos bosques de pinheiro, em lugares de difícil acesso.
“Quando vinham os tropeiros, nós tínhamos que buscar as mulas no mato e tocar até o piquete, mas, na hora de fechar o portão, quem segura? As mulas voltavam lá no mato de novo, umas sete ou oito vezes. Diziam que o Sanguanel estava em cima delas e elas corriam”, exemplifica Mascarello, complementando que cada um tem a sua versão, como a de um conhecido seu que estava fazendo um serviço com o martelo e, quando viu o homenzinho, teria largado tudo e fugido, correndo.
“Dizem que ele levava embora mais as crianças pequenas, mas, se eu ia lá, de repente ele me pegava e me levava embora, vai saber o que ia dar. Mas, quando eu vi, quem fica ainda lá? Fui embora”, destaca, aos risos, acrescentando que viu uma única vez e já foi mais que suficiente.
O florense também evidencia que o ocorrido ficará marcado para sempre em sua memória e que, por diversas vezes, quando passa embaixo da cerca tenta olhar para ver se enxerga novamente o Sanguanel, mas, nunca mais viu: “Uma vez se via, agora, acho que ele também está velho, que morreu, vai saber se está ainda vivo”, brinca.
Mascarello ainda pontua que, muitos dizem que se tivesse uma espingarda para atirar poderia ter a prova de que teria visto o personagem, no entanto, ele tem a convicção de que se trata de um espírito, ou vulto, por isso, de nada adiantaria. “Sabe por que virou Sanguanel esse homenzinho? Ele era um anjo e fez uma maldade para Deus, que deu aquele castigo ali, e ele ficaria sempre no mato, caminhando, perdido”, revela, ao mesmo tempo em que descreve se tratar de uma figura bonita, que se assemelhava a um boneco.
“Tem sempre minha cunhada que vai ali perto de onde eu vi e contei para ela a história. Ela tem medo, ir lá sozinha não é fácil, ela quer sempre alguém para ir junto e quando ninguém quer, vai com medo”, frisa.
Apesar de muitos parentes já terem dito que seu relato não é verdadeiro, que se trata de uma invenção, de algo que não existe, isso não impede o agricultor de continuar narrando sua vivência, afinal, cabe a cada um escolher no que acreditar ou não: “Hoje, quando conto, têm muitas pessoas que não acreditam, mas eu queria ver se fossem elas que tivessem visto. Também eu diria que não acredito, mas, quando é contigo, tu não fica lá falando com ele, tu vai embora”, finaliza Mascarello, em frente aos mesmos fios de arame farpado que testemunharam o fato, há mais de 45 anos.
0 Comentários