O que diria?
Lembrei do criador da expressão “óbvio ululante” e pensei sobre o que diria sobre esse período o grande cronista Nelson Rodrigues
Eu ia escrever sobre a CPI da pandemia, aquela que procura o óbvio ululante: o desleixo em providenciar vacina e a divulgação de falsas notícias sobre tratamentos e comportamentos. Não precisaria investigar muito, bastaria juntar alguns vídeos disponíveis no ambiente digital e lá estão as provas. As afirmações sem nexo, as recomendações de falsos especialistas, os depoimentos sem base científica entre outras bobagens. Lá, estão, as provas com som e imagem de quem disse o quê, de quem recomendou, de quem divulgou, etc... Eu disse que ia falar. Então lembrei do criador da expressão “óbvio ululante” e pensei sobre o que diria sobre esse período o grande cronista Nelson Rodrigues. Então leio algumas das suas crônicas e me deparo com seu depoimento sobre a gripe espanhola. Acredito que serve para refletir sobre algumas semelhanças com o momento atual. Também, pode servir de alerta se acreditássemos que era apenas uma “gripezinha”. E se o cenário é terrível poderia ter sido muito pior se continuássemos negando a ciência e acreditado alguns políticos.
“A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos… Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.”
“Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.”
“A forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. Vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: 'Aqui tem um! Aqui tem um!'. E, então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.”
“Se os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito menos. Nem para esperar o desfecho da morte. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos.”
“De repente, passou a gripe. Com o fim da gripe as coisas não mais foram as mesmas. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: ‘Quem não morreu na Espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria”