Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

Contatos

Vozes doTempo - parte I

Na porta da Igreja Matriz estava o padre Luiz, abençoando a mãe “pecadora” após a quarentena, precisando ela tor la absolvicion para poder voltar a participar das missas e comungar.  

Privilégio meu poder interagir com pessoas de diferentes idades, especialmente as mais experientes, no projeto Vozes do Tempo. Por meio dele, tenho tido a oportunidade de conhecer a vida cotidiana, particularidades, fatos, fotos e raros documentos dos que construíram Flores da Cunha.
A história, até então arquivada no espaço abstrato da memória, começa a ganhar vida pela oralidade. Sento e escuto atentamente os relatos dos descendentes dos imigrantes italianos aqui instalados, desde 1877. Alguns impressionam, mexem com o centro das emoções e nos permitem perceber a riqueza interior dos personagens desta cidade. De conversa em conversa, percebo que as histórias se conectam e, costuradas, reconstroem a Nova Trento e a Flores da Cunha de outrora. Guiada pelos seus relatos, minha imaginação é levada a outros anos, para conhecer antigos lugares e pessoas.
Em 1913, no Hotel de José Fontana e Amabília, almoçavam pensionistas, enquanto os 12 filhos do casal perambulavam para lá e pra cá no grande casarão de tábuas largas que ficava na Rua Parobé, atual Avenida 25 de Julho, com Ernesto Alves.
Gioacchino Mascarello e Cesar Piardi estavam na Intendência no dia seguinte a 3 de agosto de 1927, quando o casarão pegou fogo. Após três horas de trabalho, o ferreiro Angelo Antoniazi conseguiu abrir o cofre e resgatar os poucos documentos que restaram do sinistro. 
Conheci famílias como a de Atílio e Angelina Santini, que se escondiam no mato para não serem pegos pelos guerrilheiros da Revolução de 1923 e 1930 quando levavam animais, carretas, alimentos e ainda batiam nos proprietários das terras.
Na porta da Igreja Matriz estava o padre Luiz, abençoando a mãe “pecadora” após a quarentena, precisando ela tor la absolvicion para poder voltar a participar das missas e comungar.  
Estive na Estação de Luz de Jacob Maestri. A lenha abastecia caldeiras que forneciam energia elétrica até as 22h. Depois, tudo era desligado em Nova Trento. Na estação trabalhava Orestes Pradella, também dono do cinema, e fui convidada a conhecer o local onde, às quartas-feiras, passava o filme da gauchada (como a mocidade costumava designar as produções de bang-bang). 
Passeei pela Praça XV de Novembro e assisti, no coreto, a apresentação da Banda Giuseppe Garibaldi, onde Francisco Mascarello tocava a olarina, pequeno instrumento de sopro de madeira ou porcelana. Estive no hospital do Dr. Tarragó visitando a paciente Zelinda Bolzan Toigo e no Santa Terezinha, onde estavam a parteira Antonia Macagnan e o dr. Gonzalez, e também na Central Telefônica, cuidada por Ataliba,  Marietina Maiolli e Teresa Corradi.
Diva, neta de Pedro Oldrá, vindo da Itália, contou-me que entregava o leite que a mãe ordenhava das muitas vacas que a família possuía. Depois, levava almoço para o pai, João, na olaria em Sete de Setembro, montada em seu cavalo Bolinha, que a acompanhou até casar.
No primeiro salão de festas da igreja, a canônica, presenciei os festejos do casamento de Odaly Falavigna e Natal Antoniazzi. Na cozinha estavam Joana Menegola, Júlia Zamboni, Rosa Sgarioni e Anunciata Cioqueta preparando a sopa de agnolini e outros pratos.
Na Farmácia São Pedro, Meri Coin ajudava na feitura de pomadas medicinais, enquanto dona Líbera distribuía medicamentos a quem necessitasse e recebia o pedido de intenções dos fiéis para a missa das 18h, junto à Igreja Matriz.
Após a falência do Banco Pelotense, Marco Bortolai tentava reaver sua poupança. Ao chegar em Nova Trento em dias de chuva, jogava punhados de moedas  nas poças d’água para ter o prazer de ver a criançada se jogar na lama. 
Conheci a fábrica de cervejas e gasosas de José Curra, a Marcenaria Micheletto, a Casa de Comércio Faguerazzi, a Ferragem de Augusto Basso, antes gerenciada por Anselmo Carpeggiani, o Bar e Casa de Jogo de Rico Rovani e o Matadouro e Marchanteria Oliboni.
Ecoam as vozes do tempo quando damos importância aos que têm o que contar. Preservar a memória é garantir que tivemos um passado e, dele, herdamos o nosso melhor presente: a própria história. Por isso, dar voz a moradores que participaram ativamente da construção da cidade tem sido experiência única. Cada pedacinho da história deste povo estará, assim, arquivado, como forma de reconhecer e disponibilizar para as novas gerações o legado dos que vieram antes de nós. 
Agradeço, por isso, às pessoas que nos confiaram suas lembranças e histórias de família. Pouco a pouco, mais cidadãos deste município deverão ser visitados. O projeto Vozes do Tempo terá continuidade, para trazer ao presente os novos e incríveis relatos, ainda silenciosos em memórias plenas de riquezas e preciosidades.