Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

Contatos

Vozes do Tempo - parte II

Observei o delegado Borba ordenando aos ‘soldados do Perachi’ a soltura dos muitos italianos presos na cadeia da Rua Parobé, hoje, Avenida 25 de Julho, por falarem o dialeto com amigos.

Nos porões e sótãos de centenários casarões pude adentrar ao véu do tempo, cheio de tramas e entremeios, e ali constatar riquezas culturais, vivências familiares e comunitárias, curiosidades e histórias guardadas na memória ainda pulsante dos que participaram do projeto Vozes de Tempo do Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi. Entre risos e lágrimas, dores e alegrias, saudações e despedidas, momentos incríveis foram revividos por descendentes de italianos, para lá de especiais, que tão bem receberam a proposta, facilitando, assim, a execução do trabalho que proporcionou minha estada imaginária em púlpitos, cantinas, salões, casas e espaços indescritíveis, vivenciando fatos relevantes da história individual e coletiva daqueles que ainda nos dizem respeito.
Era 1905, na Casa de Comércio de Luigi Soldatelli e Margheritha Letti, em Nova Roma, estavam as filhas Adelaide, Bibiana, Esther, Mathilde, Celene e Líbera, e os filhos Pedro, Fioravante e Antônio ajudando nos afazeres. O casal chegou aqui em 1878; eles casaram-se em 1881 e tiveram 15 filhos. Em 1929, retornam à Itália para visitar amigos e parentes. Uma das filhas, madre Maria Eustela, da Congregação das Irmãs de São José, foi diretora do Hospital Pompéia de Caxias do Sul em 1941. 
E foi lá pelo ano de 1932 que os irmãos Ivo e Marietina Maiolli, antes de irem para a Escola São José, onde cantavam o Hino Nacional diariamente, foram espiar os revolucionários com as carretas e tropas na entrada Norte da cidade. Guerrilheiros que mantinham seus acampamentos no Travessão Rondelli.
Presenciei italianos honrados sendo presos por falarem o talian após o movimento nacionalista de Getúlio Vargas (1937-1945). Na época, escolas foram fechadas por meses e professoras perderem o emprego porque se comunicavam em italiano com alunos que não sabiam o português. Entre elas, Joana Menegola, que também foi coga, como era chamada a chefe de cozinha nas festas de igreja e casamentos. Observei o delegado Borba ordenando aos ‘soldados do Perachi’ a soltura dos muitos italianos presos na cadeia da Rua Parobé, hoje, Avenida 25 de Julho, por falarem o dialeto com amigos.
Domênica estava assustada enquanto trabalhava como babá de quatro crianças na casa de Lynceu Falavigna, pois com a proibição do talian, passou a ser chamada de Dona Menina. Adotou esse nome para o resto da vida. Viveu por 100 anos e teve 11 filhos. Em breve será homenageada com seu nome no Condomínio Dona Menina. Fui apresentada a Angelin Zapparolli, tio de Marietina Maiolli, e vi em sua orelha direita um brinco de ouro. Esse era um sinal de compromisso: quando o rapaz tinha namorada, o pai da moça presenteava o genro com um brinco para que todos vissem que o rapaz estava comprometido, hábito trazido por alguns imigrantes.
Nas terras de Keko Mascarello, onde hoje é o supermercado Andreazza do Centro, existiam dois buracos com 5 metros de profundidade, feitos com sabedoria por bugres que ali habitaram. Crianças iam brincar e se divertiam nos esconderijos e habitat dos verdadeiros donos dessas terras, índios que no Século 19 foram caçados, eliminados ou evadidos pelos governos para liberar terras para a vinda dos imigrantes ao RS.
Próximo ao casarão estava a menina de dois anos que, ao se aproximar del fogolaro, espécie de fogão a lenha, seu vestido de algodão branco e rodado pegou fogo. A fúria das chamas permitiu que ela sobrevivesse por mais cinco dias. A filha do casal Pedro e Anacleta, que nasceu em seguida, herdou o nome da irmã falecida.
Na Canônica, salão de festas da igreja, as cozinheiras guardavam bacias cheias de patas de galinha, cozidas no caldo para a sopa de agnoline para satisfazer o gosto de frei Eugênio Brugalli, que as degustava prazerosamente em dias de festa até o ano de 1958, quando foi transferido para Garibaldi. 
E de história em história vamos tecendo o presente e futuro, lembrando que “a morte não é a maior perda da vida. A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto ainda vivemos”, escreveu Norman Cousins.