Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

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Um olhar em meio às indiferenças

Um olhar em meio às indiferenças do cotidiano nos leva ao universo interior, capaz de nos fazer sentir o outro em sua essência, mesmo em se tratando de animais, para, talvez, nos tornarmos mais complacentes, ternos, fraternos e humanizados

Uma imagem vale por mil palavras. Tão verdadeiro, quanto clichê. Imagens que falam de coisas humanas e coisas divinas. Basta estarmos atentos para perceber realidades que despontam aos quatro cantos dos viveres em suas façanhas. Relato alguns fatos que mexeram com minha emoção, fazendo-me refletir e imaginar o desfecho de cada uma das situações que, aleatoriamente, presenciei num breve período de tempo sem que as procurasse.
A voz masculina chamava atenção pela beleza e tom grave, enquanto o guapo de 1,80m de altura, bermudas coloridas, andava lentamente pela calçada, decorada com motivos praianos, e falava com alguém ao celular:
– Alô, está me ouvindo? Pois é. Ela me disse que iria se matar, eu aí falei: tinha que ter pensado nisso antes. Agora é tarde!
A mãe, bem produzida, estava com a filha de dois anos no pequeno logradouro. Lourinha, pele encardida, descalça e cabelos embaraçados. Cheguei e indaguei:
– É sua filha?
– Sim. 
– Posso dar um sapatinho pra ela?
– Pode! 
– Quantos filhos a senhora tem?
– Três.
Enquanto isso, a mulher manuseava o celular cor-de-rosa, sem alçar os olhos, dizendo:
– O rapaz disse que viria às seis horas, mas não apareceu ainda, e eu estou sem cartão pra ligar.
Um silêncio interminável imperou. Calcei os pés da menina e saí. Confesso, demorei a digerir, embarcada num sussurro e autodiálogo inquietante.
O moço de boa aparência andava livre, leve e solto pela calçada movimentada, com a filha de três anos ao lado. Em meio a prantos e aclamação pela palavra – pai! – ele, o bonitão, desprovido de qualquer sensibilidade, fez de conta não ouvir os gritos e lamentos. Alheio ao desespero, fez a dor da infância aflorar. A mãe se aproxima e indignada questiona:
– Mas o que é isso? Que escândalo é esse?
O olhar de reprovação afastou o casal por algumas passadas, enquanto a menina enroscou-se no pescoço da mãe.
As Três Marias, estrelas que compõem a constelação de Orion, perfeitamente alinhadas, estavam lá, no infinito céu azulão, comprovando a divindade de quem as criou. Nelas, vi representadas as tantas Marias. Marias vítimas do estupro e feminicídio. Marias que criam filhos sozinhas. Marias que fazem história sem deixar se abater, num contexto que exige a sobrevida de supermulheres para dar sustentação a famílias, empresas, escolas, serviços, e todo lugar onde elas estiverem presentes.
O cão de pequeno porte, pelo claro, corria apressado com a sacola de cor verde, presa aos dentes. Ao chegar na metade do segundo quarteirão, largou o pacote com restos de comida. Surpreendentemente, foi se comunicando com um a um dos outros cães de rua que estavam pela redondeza. Em seguida, a matilha rodeou a pequena quantidade do precioso alimento. Ganhei o dia com a inesquecível lição de solidariedade.
Um olhar em meio às indiferenças do cotidiano nos leva ao universo interior, capaz de nos fazer sentir o outro em sua essência, mesmo em se tratando de animais, para, talvez, nos tornarmos mais complacentes, ternos, fraternos e humanizados.