Serenas saudades
Neste início de outono as cigarras não despertam o encanto como outrora
Neste início de outono as cigarras não despertam o encanto como outrora. Desta vez não há espaço para a poesia. Nem fissuras ou tramafios de palavras que possam dar consolo, apenas o suspiro de um tempo desafiador diante da perda de tantas pessoas. Cada qual em seu contexto. Ícones no que eram ou representam para seus grupos e cidade.
Diante da impotência coletiva para aqui prosseguir com vida plena, muitos foram vencidos pela moléstia invisível e letal. Agora, resta o conforto pela fé e o vento, tão invisíveis quanto reais para elevar orações e intenções aos que, sequer tiveram a oportunidade de se despedir na partida sombria.
Aqui, sentimentos mais profundos, dedicados a cada conterrâneo que não vai estar presente na Páscoa em família. Eles voejaram clamando por ficar, mas perderam a batalha. Na memória dos que ficaram – um olhar terno para o infinito, porque lá está Cláudia, Silvio, Luciana, Luiz Carlos, Jandira, Italino, Edite, Adalgisa, Adelar, Elena, João, Adelaide, José, Beatriz, Antônio, Rosina, Marias, além de outros que não entenderam o que aconteceu com suas vidas e com o destino dos mais de 320 mil brasileiros.
Inimaginável, a estafa e os efeitos psicológicos nos profissionais da saúde, anjos de branco, que todo dia acordam de um pesadelo sem mesmo ter dormido. Um estado de guerra diante da insistência em salvar as vidas que passam por suas mãos. Lá estão eles, sob bênção das mãos elevadas de suas mães, tomadas pelo medo ao que estão expostos, mesmo assim, precisam continuar sem vacilos. O comboio tem que seguir e a missão levada adiante. Vidas em jogo no jogo da vida, hoje, em voga mais do que nunca.
Todos por uma causa, pela preservação da espécie, pelo cuidado, pela saúde mental individual e coletiva, porque neste quesito a conta vai chegar com brevidade. Para tal, compreensão e empatia diante dos desequilíbrios transformados em atitudes vão pautar necessidades e debates nos diferentes espaços da sociedade. Maturidade, sensibilidade, bom senso, clamados nos momentos da fúria, onde surtos e depressões podem atingir o humano, situações das quais será preciso estender o tapete da tolerância, benevolência e tratamentos sem restrição. Cautela e providências a quem compete, pois vamos estar à mercê de mais vidas em risco por distúrbios, desajustes e efeitos pós-pandemia.
Afinal, algo terrível assolou a humanidade e foi capaz de trazer ansiedade, medo, perdas, vazio, insônia, tristeza, miséria, fome, doença, separações, violência doméstica, abuso infantil, ausências, desemprego, falta da escola, distanciamento de parentes, amigos e desalento.
Em tempos de introspecção e consciência plena, onde dias bicudos e trevosos marcam as páginas da história, sejamos ternos, valorizando uns aos outros, com menos julgamentos e mais complacência. Que a Páscoa traga alento e esperança de dias e vidas renovadas na revoada e retomada de caminhos. Vida que segue, enquanto porta-retratos guardam imagens personalizadas das perdas transformadas em serenas saudades.