Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

Contatos

O som do coração

Ouço o ambiente e me ouço. Ligo-me à imaginação diante do cotidiano, com suas cenas em contínuo avançar, através da observação e utilização dos sentidos. Aprecio o mundo externo e a natureza melódica e cênica de uma rica vida interior.

O gosto em contemplar o mundo e meus entornos faz com que muito absorva e pouco devolva. Muito reflita e pouco expresse. Poder utilizar-me dos sentidos que a natureza às pessoas dotou: sentir, tocar, olhar, escutar, é dádiva, e interpretar e digerir o que acomete e rodeia, é privilégio. O silêncio me atrai e a música, encanta. Os olhares me chamam e a observação, cativa. Os sentires me calam a cada toque e levam a outras mil dimensões, interpretações, compreensões, conclusões no viver cotidiano.
Entre eles, desejo falar especificamente do ouvir: lembrei do nascimento de minha filha primogênita, em parto prematuro. Experiência inesquecível e marcante diante dos milagres da vida, pois, no terceiro dia após seu nascimento – segunda vez em que tive contato com ela –, fui chamada à sala da incubadora para amamentar. Ao longo do interminável corredor de cor branca, sem enxergá-la, eu já identificava qual era o choro da minha menina, em meio aos de tantos outros bebês. A nossa conexão foi intensa, e assim que a pegava no colo, o fato de estar em meus braços e junto ao peito lhe bastava. Então, dormia novamente, sem se alimentar, enquanto perdia peso. Então, o que eu ouvia de mim mesma era um pranto incontrolável de mãe apreensiva, ainda inexperiente e surpreendida pela situação inesperada.
Ao longo da semana daquele fevereiro escaldante, o quarto andar, ala da maternidade do Hospital de Caxias do Sul, foi totalmente esvaziado para que a comitiva do então presidente da República pudesse ficar, em caso de necessidade hospitalar. Na época, José Sarney participava da Festa da Uva na cidade. Por isso, tive que voltar para casa, sem meu bebê nos braços e com alta hospitalar antecipada por necessidades alheias. Mas não consegui ficar sem ela, que permanecia no térreo, no espaço destinado ao neonatal. Não suportei a distância e fui novamente internada, febril, por nova ordem médica. Ali ficamos por mais uma semana.  
Seu chamado através do choro, para mim, era música; continuava sendo a música ao longe, que acalentava as cavidades de um coração esmorecido pela situação. Foram intermináveis dias em que ficamos, não juntas todo o tempo (como gostaríamos), mas mais próximas. E isso me bastava, por ora. A isso designo o grande amor de mãe!
Hoje, crescida, autônoma e independente, ela está fisicamente distante, seguindo com a vida. Mas com uma ligação contínua e permanente, na mesma proporção e intensidade. Ainda ouço, pela casa, ela e o irmão caçula chamarem: “Mãe!”. Ainda ouço os efeitos coletivos da expansividade de cada festa de aniversário proporcionada, até que completasse seus 15 anos. Tudo era alegria, brincadeiras, amigos, docinhos e bolo de chocolate! Como não lembrar?
Agora, os sons que me acompanham são outros. O miado de um gato, o latir de um cão, o cantar dos pássaros, o grito das curucacas em dias de tempo nublado, um rádio ligado e um cuco na parede da sala, que, com seu tique-taque e ruído estridente se faz notar de hora em hora, fazendo com que o ambiente nos chame para a vida. Para outros fazeres, desafios e descobertas. São sons que desde antes estavam aí, mas que se anunciam como novos, porque hoje, com mais presença (e menos compromissos acelerados), me percebo com tempo suficiente para apreciá-los e apreciar outras facetas do viver. Ouço o ambiente e me ouço. Ligo-me à imaginação diante do cotidiano, com suas cenas em contínuo avançar, através da observação e utilização dos sentidos. Aprecio o mundo externo e a natureza melódica e cênica de uma rica vida interior.