Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

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O inusitado funeral de Mané Perau

Vindo de Santo Antônio da Patrulha, Manuel Dutra ganhou o apelido de Mané Perau

O tamanho da Vila não condizia com o tanto de histórias verídicas, lendárias ou imaginárias que a população tinha para guardar, resguardar ou revelar. As rodas de chimarrão acompanhadas por quitutes favoreciam eventos que resultavam na contação de fatos e feitos de todas as épocas, ocorridos em terras longínquas ou bem próximas aos tauras com fios de bigode sempre aparados.

Um desses fatos da vida real foi quando, logo depois da Revolução de 1923 ocorrida no Rio Grande do Sul entre ximangos e maragatos, Mané Perau foi acolhido por Dona Antônia Machado da Silva e seus filhos, na fazenda que ficava no Boqueirão, interior de Criúva. O sujeito, nunca visto por aquelas bandas, chegou na calada da noite, em meio ao rigoroso inverno sulino. Montado em seu cavalo de cores claras, abrigado por chapéu, bombacha, botas e uma grande capa gaúcha, pediu pouso. Desse dia em diante passou a fazer parte do círculo familiar e de amizades na fazenda.

Vindo de Santo Antônio da Patrulha, Manuel Dutra ganhou o apelido de Mané Perau porque, ao se apaixonar por uma camponesa, dizia que, se não casasse com ela, se jogaria nas profundidades de um grande perau que havia na região, para dar cabo ao sofrimento que o deixava ensimesmado e cabisbaixo.

O vivente não casou. Nem se jogou ao abismo.

Jamais contraiu matrimônio com qualquer outra, mas o apelido se eternizou. Viveu por mais de 100 anos, maior parte do tempo na fazenda da família, onde ajudou a criar os filhos de Dona Antônia e atuou na lida campeira da gadaria e plantação nas roças da família.

Mané tinha sua própria morada nos fundos das terras dos Machado da Silva. Um ranchinho, onde acolhia-se ao silêncio da própria história, talvez macabra, porém nunca revelada. Vida velada e plena de segredos: apenas dizia ser patrulhense, da Terra da Cachaça, do Sonho e da Rapadura. Manuel, o Mané, dizia ter o corpo cravejado por balas de revólver, sem nunca ter mencionado causas ou consequências da realidade anteriormente vivenciada. Foi um peão trabalhador, afetivo e respeitoso com as crianças dos patrões. Costumava levá-los de carreta para passear até os Palanquinhos, terras vizinhas, onde tudo se transformava em magia, até a volta para casa. Episódios frequentes que moviam pessoas simples, num local bucólico, mas não menos acalorado.

Mais tarde, na mesma propriedade, o homem, com ares de bondade, veio a servir Maria Geni e Fredolino, filha e genro da Dona Antônia. Ali, Mané Perau ajudou a criar Maria Marlene, Miltinho, Victor e outros filhos do casal, além de realizar afazeres do campo. Acompanhou também a vida da quarta geração da família, acarinhando e zelando pelas bisnetas de Dona Antônia.

Foi pelo ano 1967 que o caboclo morreu de velhice. No espaço chamado Bolão do Vitorino, Mané Perau ou Manoel Dutra, o mulato de porte miúdo com marcas do tempo e de tiros, recebeu as últimas homenagens aos mais de 100 anos de idade. De alpargatas novas, as quais ele chamava de “paragata”, foi velado em chão batido, num caixão rústico. Darci Romani, seleiro, o presenteou com o pedido feito ainda em vida: o de estar calçado com o artefato, para rumar aos céus.

O desejo de Mané Perau efetivou-se também, quando uma grande festa foi realizada durante as 24 horas de seu velório. Os moradores da Vila presenciaram o ato enfadonho, regado a música, trago e chimarrão. Num determinado instante, colocaram o caixão de pé, enquanto cantavam e dançavam em torno do mesmo. Com brodo e gaitaço, pelegos e ponchos espantaram o frio intenso daquela invernada. Dança, rizadas, piadas e bailanta correram frouxo naquela farra campeira.  Até cigarro palheiro, feito com fumo em rolo e palhas secas, foi colocado à boca do centenário peão de corpo gelado. Imagens sórdidas acolhidas no espaço que ficava quase em frente à Igreja do Divino Espírito Santo.

O caboclo forasteiro deixou marcas e amigos, além do enigma entre aqueles que o conheceram. Não possuía certidão de nascimento, nem sua verdadeira história de vida revelada, apenas que tinha nascido na década de 1860.  Manuel Dutra, popular Mané Perau, foi enterrado no Cemitério do Pontão, sob cova rasa, local específico para os “brasileiros” – assim era a norma ditada por moradores fazendeiros. Ainda hoje, lá nos Campos de Cima da Serra, existem dois Campos Santos: um em que eram enterrados os negros; outro, os brancos. Esse cemitério teve origem em 1920, durante a gripe espanhola, sendo o esposo de Dona Antônia o primeiro a ocupar o espaço após o óbito.