Dona Alegria
Dona Alegria conheceu a parteira do Travessão, sabe o nome das professoras da escola que atenderam alunos de todas as idades num mesmo espaço, o moinho, o dialeto Talian e fatos mencionados por antepassados que emigraram do Vêneto para cá
Alegria - assim designei a portadora da senha de número 40. Aos 89 anos, mãe de seis filhos, ela exibia um figurino ímpar ao vir à cidade para afazeres junto ao Banco e outros deleites. Cabelos dourados e aparados, blusa cor de uva num bordô cravado em pequenos brilhos, correntes no pescoço, pó no rosto, batom cereja nos lábios. As estampas florais da saia confirmavam o alto astral e o relógio no pulso controlava, mas não parava seu tempo. Sapatos claros, bengala pra lá de exuberante. Peça de cor preta com linhas que formavam pequenos losangos traçados e contornados com pedrarias. Assim era o cajado que a ajudava na locomoção. Alegria despertou a curiosidade. Quem era e qual sua historia. Então, com a pequena máquina fotográfica fiquei na espreita. – quando ela despontar em minha direção vou fotografá-la, mediante permissão. Logo, um funcionário se aproximou e tive que dar explicações, afinal o que alguém estaria registrando num espaço reservado a finanças. A desconfiança permeou o espaço diante da atitude pouco comum em local de abstratos, mas atingi meu objetivo.
Dona Alegria, casada com o parceiro de 93 anos, contou-me que ele não pode renovar a carteira de motorista porque não enxerga bem, mas não se importava com isso, pois ela mesma já não escuta direito e agora o que vale entre eles é a parceria. Dona Alegria, moça, menina, mulher, mãe, avó, talvez bisavó. Aos 89 anos não viveu o tempo em que mulheres optam por não ter filhos, ter independência financeira, frequentar academias, marcar presença em redes sociais, escolher casar ou apenas morar junto. Ela esperou pelo direito ao voto da mulher alcançado em 1932, chegada da televisão em 1950, chegada da pílula anticoncepcional em 1962. Não contava com a proibição da fala das línguas estrangeiras a partir de1942 por determinação de Getúlio Vargas, enquanto dezoito variações do italiano se perderam e professores foram demitidos ao exercer a função de “maestras” através do dialeto. Passou pela segunda Guerra Mundial, tempos da ditadura e outras agruras.
Ela vivenciou o tempo de combinações entre partes apenas na palavra, caderno de receitas, vidro de compotas, bolo de manteiga, sabão caseiro, livro de orações, fotos em preto e branco, aventais e vestes de algodão branco, baús, bordados, filós e filés. Dona Alegria conheceu a parteira do Travessão, sabe o nome das professoras da escola que atenderam alunos de todas as idades num mesmo espaço, o moinho, o dialeto Talian e fatos mencionados por antepassados que emigraram do Vêneto para cá. Também fez arte nas roças e parreirais, cantinas e igrejas. Elvira, moradora de São Valentin, rezou terços de joelhos, usou véus brancos e depois negros, recortou massas, desenhou biscoitos, moldou pães, fez trança e depois, assistiu novelas no côncavo de sua idade. Mesmo assim, me senti diante da Cinderela, Branca de Neve, Alice no País das Maravilhas, todas numa só mulher. Por algum motivo, Dona Alegria reluziu em minha sensibilidade e aguçou a percepção. Entre nós, uma identificação, talvez expressa e explícita nas entrelinhas das páginas do livro – Mulheres que Correm com os Lobos - de Clarissa Pinkola Stess. Assim, com palavras deslizantes e olhar aprimorado que brota da alma, surge a mim essa Mulher. Parabéns à Dona Elvira, alegria que simboliza tantas outras que protagonizam histórias da vida real.