Maria de Lurdes Rech

Maria de Lurdes Rech

Cotidiano

Professora, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Maria de Lurdes Rech é autora do livro de crônicas Prosa de Mulher e do CD de crônicas e poemas Amor Maior, vencedora de diversos concursos literários em nível nacional. Membro da Academia Caxiense de Letras. Foi produtora e apresentadora do programa cultural Sábado Livre da rádio Flores FM de 2004 a 2012. Colunista do jornal O Florense desde 2007. Atuou na Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Flores da Cunha, onde coordenou a implantação dos Centros Ocupacionais da cidade. Exerceu a função de diretora e vice-diretora de escolas. Atualmente, realiza o trabalho de pesquisadora no Museu e Arquivo Histórico Pedro Rossi com o projeto Vozes do Tempo.

Contatos

Algodão doce

Com dificuldade na aprendizagem, o menino recebia atenção especial da professora alfabetizadora pela qual ele se apaixonou, com sua alma angelical e plena de docilidade.

O menino era o filho mais velho do primeiro casamento da jovem senhora. Do segundo relacionamento da mãe, vieram outros cinco irmãos.
Leo chegou à escola do centro da cidade, onde foi bem recebido por professores, dotados de paciência, competência e, acima de tudo, muito afeto.
O garoto de oito anos trabalhava com o padrasto como catador autônomo na coleta de lixo seletivo. A irmã estudava na mesma escola, mas era cuidada pela avó paterna e, ali, era o único ponto de encontro e convivência entre os dois.
Com dificuldade na aprendizagem, o menino recebia atenção especial da professora alfabetizadora pela qual ele se apaixonou, com sua alma angelical e plena de docilidade.
Quando o garoto entrava na sala de aula, portas e janelas precisavam ser abertas. Pelo contato permanente com o lixo e a falta de hábitos e condições de higiene, exalava um odor insuportável. Mesmo assim, sua mão era tocada pelas mãos da professora, para que o contorno da letra fosse perfeito. Para que a escrita se efetivasse o mais breve possível. Para que o desenho fosse colorido e Leo pudesse voar por meio da imaginação, sendo feliz nesse espaço mágico.
Lembro que, numa das atividades festivas, ele, muito sorridente, correu em direção à professora com um algodão doce entre as mãos e entregou a ela. Para quem não tinha quase nada, doar algo considerado o melhor, comprovava ter coração de ouro. Ainda ingênuo e sobrevivendo a cada desafio, frequentou esta escola até o terceiro ano.
A atenção da mãe e do padrasto, nesse período, era dedicada ao irmão de colo e à nova gravidez. Assim, nessas condições, Leo foi morar com o pai biológico. Migrou para a cidade grande e lá passou a conviver com a vulnerabilidade social e em precárias condições. Mais tarde, comprou um carro e anualmente, no Dia das Mães, trazia flores e o abraço a sua progenitora. O seu coração continuava o mesmo, mas os interesses já eram outros. Leo desvirtuou-se e passou a viver no mundo do tráfico, vislumbrado por outros caminhos. 
Assim, não demorou muito para que recebêssemos a desagradável informação. Nosso ex-aluno havia sido baleado por seus comparsas, antes de completar 20 anos idade. Ao sabermos do fato, lembramos seu gesto carinhoso e atitude afetiva. Mencionado como ‘o menino do algodão doce’, sentimos o peito apunhalado. Leo passou a ser apenas mais um a compor a elevada estatística dos crimes violentos fatais e homicídios entre jovens.
Lamentável e inaceitável, o destino desses garotos que, na infância, carregam nas mãos o algodão doce e na alma a esperança e ilusão de que família, escola e sociedade sempre garantirão formação, proteção, dignidade e sustentabilidade. Por que tem de ser assim?