A vila de minha infância
Recordações ainda me fazem ouvir o estridente canto das cigarras, que em março, num esforço indescritível deixavam os dias festivos e inquietos
Recordações ainda me fazem ouvir o estridente canto das cigarras, que em março, num esforço indescritível deixavam os dias festivos e inquietos, enquanto o sol intimidava o azul do céu que se despedia do verão. Era na vila conhecida por nome de árvore campeira.
Lá estava a velha igreja de pedras, silenciosamente guardando imagens santas, jamais desvinculadas da imponente voz do Padre Pedro. Próximo a ela, a minha casa e a biblioteca da escola com obras de Monteiro Lobato que, incluída como letras nas páginas, eu viajava com Emília até onde o sonho e a imaginação permitisse.
Apolônia, gordinha, baixinha, grisalha, não dispensava o vermelho nas unhas e a companhia do Bichano na sala de costura. Guardava um punhado de piadas na manga para fazer a sua Praça da Alegria, pela graça que ela mesma encontrava nelas.
A misteriosa bolsa preta que a parteira Ema carregava, apressada, quando descendentes davam sinais de vir ao mundo. A chegada do circo, em Criúva, quebrava a rotina, alegrava e empalidecia a criançada. As Festas do Divino que, com peculiaridades de origem portuguesa, reuniam os moradores. Os bailes em que os Irmãos Bertussi incitavam, com vaneras e chotes, a dança das prendas e gaúchos. As boiadas acompanhadas pelo berrante dos tropeiros e o som das patas desfilando, pomposas e sintonizadas com ritmo cadenciado. A presença do vento minuano, do quero-quero e da gralha azul. Um invadia os ranchos e estâncias, outro cantava enquanto a ave azulada preservava o alimento reproduzindo pinheirais. O conto dos “causos” nas rodas de chimarrão que agitavam e arrepiavam as noites envolvidas com misticismo.
Os banhos de rios interrompidos por pescarias e lanches debaixo das árvores, onde sonhava encontrar dentro delas tesouros escondidos. O pote de biscoitos, as flores coloridas de crepom com que vó Amábile, tia Laura e tia Júlia decoravam o sótão da casa de tábuas largas, com jardim de dálias, para nos receber. Era sempre uma festa!
A velha carreta do vô Aristides que, com o ranger das rodas e a força das mulas, transportava o carvão da fornalha, que era rodeada por ovelhas branquinhas, que contrastavam no cenário campeiro e provocavam eco nas matas. Os patos do lago, cujas águas moviam o antigo moinho em que pulávamos nos montes de milho, aos cuidados da Romana, que não poupava atenção e pratos de leite para seus gatos gordinhos. Ah! Maravilhosos protagonistas da vila de minha infância!
Mas onde estarão as árvores, os rios, a misteriosa bolsa preta, o Bichano, as ovelhas, os patos, as cigarras, a gralha azul, o grito do quero-quero, os biscoitos da vovó, as flores da tia Julia, o picadeiro do circo e os parceiros das brincadeiras? Que lembranças e imagens multicores terão as crianças que hoje ficam aprisionadas, com biscoitos industrializados, videogame, tevês, computadores e brinquedos eletrônicos, compensando carências e ausências, tendo apenas amigos virtuais? Natureza e afetividade; necessária cumplicidade! Talvez ainda haja tempo!