Floriano Molon

Floriano Molon

Lembranças

Floriano Molon é natural do distrito florense de Otávio Rocha, nascido em 11 de abril de 1949. Foi professor primário, funcionário público estadual e federal, hoje aposentado, bacharel em Direito e pesquisador da imigração italiana. Tem 12 livros publicados e participou em diversas outras publicações. Como promotor de eventos, foi presidente de algumas edições da Festa Nacional da Vindima (Fenavindima) e outras festas, bem como presidente de diversas Associações. Recebeu o título de ‘Cidadão de Mérito de Flores da Cunha’, além do Troféu Grazie, esta última do Jornal O Florense. 

Contatos

- PUPÁÁÁ!!! NÓÓ! L’è stà una osada dolorosa!

Daqui algumas dezenas de anos, alguém dos jovens de hoje vão se lembrar de 2020 e poucos acreditarão, que mesmo não sendo a 3ª Guerra Mundial, um vírus chinês parou o mundo

Como posso imaginar aquela pequena aldeia, no sábado à noite, sem missa, sem bucho, sem bife na chapa, sem fortaia, sem salame frito, sem polenta brustolada, sem aperitivo, sem vinho, sem jogo de cartas... Fale de sua aldeia e falarás do mundo. Daqui algumas dezenas de anos, alguém dos jovens de hoje vão se lembrar de 2020 e poucos acreditarão, que mesmo não sendo a 3ª Guerra Mundial, um vírus chinês parou o mundo! Faça agora um exercício de memória e veja quando aparece a sua primeira lembrança de vida. Pois é, no meu caso, volto para os meus três anos e dois meses. Maio e junho de 1953, em uma noite das frias, o berro “Páái!!!” ecoa pela noite escura. O sono é interrompido, por um grito de dor profundo.
Fala-se da gripe espanhola que matou milhões de pessoas no mundo. Mas, nas décadas de 1940 e 1950, uma doença, não menos contagiosa, perambulava pela Serra Gaúcha e recolhia no âmago das famílias as mais diversas pessoas. Quero me referir a tuberculose. Naquela casa colonial, de 10 para 11 de abril de 1949, nasceram duas crianças, um  primo (que veio a falecer)  e eu. Perigosa como o coronavírus, a tuberculose passava de uma pessoa para outra. Controle dos alimentos, dos utensílios de refeições e tantas outras referências, mas ela dava um jeito para expandir a sua nefasta ação. Passou e levou uma tia, depois o seu esposo e, em 24 de junho, dia de São João, o grito! Vinha do quarto, ali onde tinham nascido nove filhos e agora testemunhava uma triste e inesquecível cena. O pai se foi para a eternidade.   
A tuberculose não tinha cura. Médicos de Caxias se esforçavam para conseguir estancar a peste que ceifava tantas vidas. Injeções às centenas, viagens aos hospitais caxienses, visitas de médicos no interior. A mãe num quarto chorava silenciosa, os copos de leite seriam copos de lágrimas... O que estava acontecendo, passados exatamente um mês de um outro cenário parecido, o tio se fora. Mas, que brincadeira é esta, na minha incredibilidade e inocência, vir buscar dois homens em 30 dias? Lá fora, aqueles cavalos e cavaleiros, com as capas pretas, no inverno, me assustavam... Pareciam chamar mais desgraças, em que pese várias corujas terem sido sacrificadas, ao longo do tempo, em nome de maus agouros. Os cães que uivavam eram imediatamente repreendidos. Pois é, os bisavós, o avô, a tia, o primo, o tio e o pai... aquele estreito corredor, despojado e triste  entre os quartos, numa casa sem luz, sempre ficaria marcado para todas as gerações. E a vida continua. Ali na mesa, a avó, a mãe e seus noves filhos. Que força que teve aquela mulher, em liderar e fazer sobreviver tantas bocas e tantos sonhos.
Em cima de um caminhão, com meus três anos, todos com destino à Caxias para fazer uma abreugrafia. Constatar se nos frágeis pulmões havia a mancha da maldita doença. Havendo ou não, prevenindo, os nossos frágeis corpos viriam a receber algumas injeções. Mas sobrevivemos. A minha geração, viveu estas duas tristes realidades. A primeira, com a descoberta da penicilina foi muito melhorada, mas ainda há milhares de pessoas com tuberculose. Do coronavírus, inimaginável o estrago mundial feito, mas pela sua violência, deverá marcar para sempre a humanidade. Tristes e dolorosas lembranças.