Voltando para casa
Lembra-se da casa da lenha em cuja varanda ficava a carroça que era a riqueza da família, a casa do pasto e a casa do milho? Não ficou nem um sinal delas.
Pois durante meus dias de férias fui com meu filho rever o lugar onde nasci, lá no Travessão Paredes. Olhando, não o reconheci. Está tudo diferente. Derrubaram tudo.Sobrou apenas um de alicerce de pedra, o último vestígio do que um dia foi o casarão da família Ferrarini.
O casarão de cor azulada e janelas tipo guilhotina não existe mais, desde para sempre. Nenhuma parede descascada pedindo uma demão de tinta. Nenhum degrau de escada carcomido pedindo para ser substituído. Nenhuma janela implorando um vidro novo para defender-se do vento impiedoso.
Acho que você também tem uma casa que um dia foi posta abaixo. Quem sabe a velha casa com sótão dos seus avós que tinha um ‘parreiral’ de chuchu na horta? Quem sabe a casa simples dos pais com papagaio e cachorro conversando na varanda vazia?
Talvez não seja exatamente uma casa, mas um lugar onde moram suas lembranças da infância.
Pois acontece que o casarão onde nasci e adolesci foi posto abaixo por meia dúzia de homens fortes, munidos de martelo, torquês, pé-de-cabra e coração de ferro.
Sentei-me com meu filho sobre o alicerce de pedra, a lápide que sepultava o meu passado.
Puxado pela memória, subi a escadinha de madeira que dava na sala de visitas. Entrei, pé-ante-pé (a porta não tinha fechadura). Encontrei mamãe curvada sobre a máquina de pedal, costurando uma camisa ‘volta ao mundo’, impossível de amarrotar, com a qual me exibiria aos olhos da Laurinha na grande festa em honra a São Paulo, o santo que atua contra mordedura de cobra.
Em seguida, fui para o meu quarto que ficava no final do corredor quase tão comprido quanto o da Galeria do Louvre, em Paris. Não encontrei ninguém. O menino devia estar se divertindo no riacho das sanguessugas, explorando cavernas ou desenterrando tesouros imaginários. A aquarela na parede me mostra um bonito sol pintado com cara de choro e sobre a cabeceira da cama com colchão de palha de milho adivinho a imagem de São Jorge subjugando o dragão.
Desci os degraus da escada e continuei a procurar minhas memórias afetivas.
Os enormes cinamomos que ladeavam o caminho de entrada, lembra? Foram brutalmente arrancados. Fiquei imaginando o vaivém dos tratores levando embora aqueles galhos ainda vivos. Nem mesmo as duas palmeiras que meu avô plantou, uma em cada canto do casarão foram poupadas.
Lembra-se da casa da lenha em cuja varanda ficava a carroça que era a riqueza da família, a casa do pasto e a casa do milho? Não ficou nem um sinal delas.
Lembra-se do pergolado coberto de amor agarradinho que formava uma espécie de galeria e emprestava um ar romântico ao casarão? Sumiram com ele.
Sabe aquele matagal dos cipós de balanço, lá em cima, perto do parreiral? Virou lavoura. Levaram embora até as pedras.
E o córrego onde testei meu primeiro anzol de tostão? Também não existe mais. Foi canalizado. E o açude dos sapos com seus martelos que deixavam a noite num prego dos diabos? Desapareceu.
Lembra a casa dos Fabianos, bem em frente ao nosso casarão, toda em madeira de tábuas ‘matajuntadas’ de cor marrom e suas enormes janelas de arcos arredondados e lambrequins? Também puseram abaixo. Ergueram outra no lugar, muito mais moderna, toda em concreto, com amplas janelas e portas trabalhadas em material sintético.
Não ficou nada, sequer uma única fotografia do lugar.
– Pai, você está bem? – perguntou-me meu filho, tirando-me daquele estado imersivo.
Murmurei alguma coisa com uma lasca do alicerce do casarão bem firme no punho fechado. É que naquela hora me deu um aperto e arranquei um pedaço da pedra. Eu sei que é besteira, mas é tudo o que sobrou do que um dia foi a minha casa. Foi com o que sobrou da casa que me viu nascer que construí esta crônica onde sua sensibilidade morou por alguns minutos. Nada mais do que isso.