Trilha da pedreira
Sinto muito desapontar você, mas essa história começa pelo fim. É uma história que parece inventada de tão verdadeira. Nunca, nos 30 anos em que estou em livro e jornal, contei uma história de trás para frente. Francamente não sei como isso tudo irá terminar. Se você não achar uma boa a idéia, comece a ler pelo final.
Sinto muito desapontar você, mas essa história começa pelo fim. É uma história que parece inventada de tão verdadeira. Nunca, nos 30 anos em que estou em livro e jornal, contei uma história de trás para frente. Francamente não sei como isso tudo irá terminar. Se você não achar uma boa a idéia, comece a ler pelo final. Perto das quatro horas da madrugada de domingo, na mesa de casa, Ciro, meu filho Roger e eu jantávamos, totalmente extenuados, sem juntar forças para mastigar sequer pão macio. Dores absurdas e lancinantes no corpo todo, apesar dos relaxantes musculares. Alguns minutos antes, Ciro e eu, estávamos deitados de costas sobre o cascalho da estradela. De vez em quando, a noite pingava uma estrela em nossos olhos. Tudo o que tínhamos era um isqueiro impotente, celular, sede insuportável e frio que fazia os joelhos baterem com força um contra o outro. Apesar do drama, entabulamos um diálogo: – Tá bem? – O quê? – Cãibras? – Ai, ai, ai Tentamos contato com o mundo, arrastando as pernas no pequeno aclive, empurrados pela força do vento e da esperança da salvação. De repente, o milagre: dois traços de sinal no celular. – Pelo amor de Deus, pegue toda a água que conseguir carregar, uma caixa de Dorflex, lanche, coloque tudo no carro e venha voando na entrada da Trilha da Pedreira. Lá embaixo, na velha e abandonada Trilha da Pedreira, os motores das motos roncavam com a língua toda de fora. Gilmar, Marcos e Roger lutavam desesperadamente para subir as paredes do inferno de pedras, cansaço e escuridão. O ronco rouco e confuso, ora mais forte, ora mais fraco, podia ser ouvido durante não mais que 20 segundos. Depois não se ouvia nada além do pio medonho das corujas e o farfalhar dos fantasmas da noite. Duas horas antes, Ciro e eu subíamos a mesma trilha coberta por espinhos, exércitos de saúvas e urtigas, quase sem poder nos valer das pernas murchas e estorcidas. Arrastamo-nos trilha acima, puxando-nos pelos braços. Os olhos analfabetos, guiados por um bafo de luz emitido pelo visor do celular farejavam os 40 centímetros de trilha. Alguns centímetros à direita, o desfiladeiro mortal. Gastamos duas horas e todas as forças na empresa de alcançar a saída. A moto havia sido abandonada centenas de metros abaixo, ou seja, logo depois de eu ter caído um tombo pastelão e rolado com moto e tudo precípicio abaixo. Resgatado por uma corda, decidi subir a trilha a pé, acompanhado pelo Ciro. A chama do isqueiro mal furava o breu da noite que havia caído de maneira apressadamente desesperadora. O gás do isqueiro acabou, apelamos para a luz do celular. Oito horas antes, éramos cinco a deixar o campo limpo para entrar na mata fechada. Durante a descida, ainda encontramos um grupo de pescadores de final de semana que nos advertiram sobre o risco da empreitada (Na verdade usaram uma palavra ligeiramente mais suja e fedida). Descemos a trilha cheia de troncos de árvores caídos e chegamos às margens do rio das Antas. A sede de aventura nos fez tomar a trilha da esquerda. Andamos meia dúzia de quilômetros até a trilha ser engolida pelas águas da represa. Vimo-nos forçados a voltar pelo mesmo trajeto, tentando fugir do esgotamento físico, da noite que caía irremediavelmente e da Trilha da Pedreira que acabaria conosco, as motos e mataria de preocupação os familiares.