Pro espaço a modernidade
Em dias de iPod e iNãoPod, ainda pior que estar batendo à porta dos cinquenta é olhar para trás e ver as batalhas de atualização que precisei vencer para chegar até aqui.
Em dias de iPod e iNãoPod, ainda pior que estar batendo à porta dos cinquenta é olhar para trás e ver as batalhas de atualização que precisei vencer para chegar até aqui. Pergunto-me, às vezes, será que valeu a pena lutar como o velho Santiago contra o enorme peixe-espada no clássico de Hemingway, O Velho e o Mar? Lá pelos oito anos de idade tive que aprender a usar a caneta-tinteiro. Era uma coisa muito avançada para crianças acostumadas apenas à caneta de sulfatar. Como penei para aprender a forma correta de segurá-la, a fim de que não saísse semeando borrões pelas folhas do caderno pautado. Não menos penosa foi a luta para aprender a abastecer sua bomba engenhosa com tinta à base de água e pigmentos colorantes, entre eles o nanquim. Andei tomando umas boas pauladas da caneta recarregável por um largo espaço de tempo. Foram folhas e mais folhas de papel que acabaram com seus rostos esburacados, como o planeta Marte coalhado de crateras. Mal dominei a novidade, veio a caneta Bic que pôs no bolso a tinteiro pela praticidade e funcionalidade. Todo o esforço dispendido com a tinteiro de nada me serviu. A luta não terminou por aí. Entrado na adolescência, precisei aprender a pilotar uma máquina de escrever da marca Remington. Eu que achava saber tudo, só não sabía que Deus pune a soberba. Tarde da noite, debruçado sobre as fileiras de teclas, com os indicadores, como um galináceo a catar milho debaixo do limoeiro, meu pai vinha bater em meu ombro: – Não! – Não, o quê? – Assim não! – Assim, como? – devolvía eu, sem levantar a cabeça, fingido-me de parvo que, na verdade, era mesmo. – Esqueça que tem olhos na cara. Use os dez dedos da mão. Entendeu? Não me atrevia a bater o pé para não ser levantado do chão pelas orelhas. – Apoie os dedos, cada qual na sua respectiva tecla, como já lhe ensinei e olhe somente para a folha de papel no carro da máquina. Tive uma súbita vontade de abandonar o projeto de tornar-me um renomado piloto de Remington e mandar o aprendizado de datilografia para o espaço. Mas mais vez precisei refrear os impulsos de rebeldia para tocar ficha na velha máquina. Esburaquei as noites todas do inverno de mil novescentos e setenta e quatro com o tec-tec-tec das teclas metálicas da máquina. De que me valeu tornar-me um exímio datilógrafo, capaz de fazer as teclas voarem de encontro ao carro a uma velocidade impressionante? Mais de cento e cinqüenta palavras por minuto. Após tanto sacríficio, minha habilidade com a Remington encheu de orgulho o peito do meu pai, mas não colocou uma mísera moeda no meu bolso. Mais uma vez, de pouco adiantou a superação. Com o advento do computador que possibilita efetuar o mesmo trabalho de modo mais eficiente e rápido, a velha e pesada Remington virou obsoleta, coisa de museu. Foi como se a máquina tivesse sido feita de barro. E a modernidade não gosta nada feito de barro, nem do próprio homem. Para não virar obsoleto eu próprio, tive que aprender a dominar o computador. Na marra e rápido, antes que o mundo me passasse a perna. Tive que aprender a lidar com janelas, bytes, esc, return, shift, control, page down, help e até com os etecéteras. Não consegui quebrar os votos de ignorância. O que dizer, então, dos votos de pobreza? E pensar que, apesar de ter dominado a fera, corro o sério risco de ser dominado por um robô em um futuro próximo.