Presente de aniversário
Não sei porque, mas esse frio quebradiço e essas folhas mortas e esse poente puxando para o sépia, deixam a gente com uma vontade louca de agasalhar-se com as lembranças mais quentes da nossa infância.
Não sei porque, mas esse frio quebradiço e essas folhas mortas e esse poente puxando para o sépia, deixam a gente com uma vontade louca de agasalhar-se com as lembranças mais quentes da nossa infância. A lua surgia cheia e madura sobre o cone arborizado do monte do Pegapinto. A geada logo cobriu de branco o mundo do Paredes. Meu amigo F. parecia não ligar para o frio. O plano que tinha em mente o mantinha aquecido. Agitando os braços como um marreco, propôs: – Vamos pedir um salame emprestado aos Fabianos? Apesar da gula a lamber-me o beiço, alertei-o sobre os cachorros que tinham bocas tão grandes que podiam engolir a cabeça de um cavalo numa única abocanhada. Para complicar a situação, no interior da casa havia um cachorrão que se não mordia, cuspia chumbo grosso através do cano da espingarda calibre vinte. – Suas pernas são mais rápidas do que daqueles palermões, embora você só tenha duas e eles duzentas – encorajou-me. – Bem, continue. – Pule o córrego das sanguessugas lá adiante, contorne o chiqueiro e atravesse o parreiral de chuchu. Em seguida, rasteje entre as carquejas até alcançar o porão da casa. Lá dentro, use a mola toda das suas pernas, agarre o maior salame que achar e retorne voando ao telheiro da lenha, sem contar nem mesmo com a ajuda dos olhos – explicou ele. – E você o que fará? – perguntei. – Fico escondido atrás da cerca de pedra em frente à casa deles, miando ou fazendo qualquer outro barulho para atrair a atenção dos cachorros e de todo mundo da casa. Disse isso e colocou um canivete na palma da minha mão. – Vou abrir os cachorros ao meio – falei. – Idiota, use o canivete para fatiar o salame e sair distribuindo aos palermões, se eles resolverem atacar você – retrucou meu amigo e completou: – mas só lance mão do canivete em caso de vida ou morte. Disposto a acalmar minhas tripas resmunguentas, meti-me em disparada. Um minuto depois, meu amigo começou a acossar os cachorros que logo lhe declararam guerra. A família veio toda à janela e meteu-se a latir ainda mais alto do que os cachorros, com ordentes de ataque: “Pega, pega, pega”... Empurrei a porta do porão com todo cuidado, tropeçando no medo. Com ajuda da luz da lua vi um salame comprido pendurado numa vara de bambu. Dei meia dúzias de saltos, agarrei o salame com as duas mãos e sai feito um doido, com a vara de bambu e tudo. Logo, a má sorte começou a perserguir-me. Ao pular sobre a cerca, ouvi um estrondo tão alto que achei que o monte do Pegapinto tivesse vindo abaixo. Cheiro de pólvora queimada. Passei as mãos pelo corpo pelo a procura de sangue. Nenhum sinal. Continuei correndo. Em seguida, foi a vez dos cachorros meterem-se atrás de mim. Fatiei o salame à velocidade do vento. Ao saltar sobre o córrego, senti que meu pé afundou em algo mole, mas não parei de correr. Mal cheguei ao telheiro da lenha, meu amigo M. apressou-se em perguntar: – Vamos logo, cadê o salame? Baixei a cabeça, derrotado. Mirei o chinelo de tiras de pneu amarronzado e lembrei-me do pé mergulhado até o tornozelo na imundície fabricada pelo cachorro dos Fabianos. Esse foi o presente de aniversário nos meus nove anos de idade.