O mundo da superfície lisa
Damos pouco afeto verdadeiro aos nossos filhos, porém, tentamos reeditá-lo desesperadamente com os nossos netos.
O mundo não é mais o mesmo.Decididamente, o mundo não é para principiantes.
O problema não é mastigar bem antes de engolir, resistir a um bom prato de macarronada ou contar até três antes de reagir. O problema é conseguir ter uma montanha de amigos no ‘feice’.
O problema não é a abstinência de álcool, drogas, sexo ou carne vermelha. O problema é a abstinência de outras coisas. Abstinência de lucidez. Abstinência de relações afetivas verdadeiras.
Temos autoestradas mais largas, mas pontos de vista cada vez mais estreitos.
Temos edifícios mais altos, mas valores cada vez mais baixos.
Temos residências belíssimas, de encher os olhos, mas lares destroçados que nos deixam pendurados em lágrimas.
Aplaudimos ‘bundas que cantam’ e nos encantamos com cabelos que dançam.
Dançamos o ritmo de quem nos manipula. Dirigimos rápido demais. Perdemos a paciência fácil demais. Dormimos tarde da noite para acordarmos estropiados de cansaço.
Vemos televisão demais e quase nunca nos lembramos de rezar, a não ser diante de uma emergência da vida.
Deciframos o DNA, mas não conseguimos decifrar nossos sentimentos mais simples.
Temos opções de refeições cada vez mais rápidas e digestão cada vez mais lenta.
Vivemos fazendo coisas urgentes e deixando de fazer as importantes.
Livramo-nos da paralisia infantil, mas não conseguimos nos livrar do preconceito que nos paralisa.
Temos pílulas para emagrecer. Temos pílulas para dormir e para acordar. Temos pílulas para evitar filhos. Temos pílulas para nos jogar para cima e para nos deixar mais zens. Temos sabedoria em pílulas, mas não sabemos quase nada sobre generosidade.
Conseguimos viajar até a lua, mas não conseguimos atravessar a rua para abraçar nosso vizinho.
Temos vitrines cada vez mais cheias e cada vez menos no estoque.
Guardamos raiva demais e dividimos alegrias de menos. Nos exasperamos demais e rimos de menos.
Fazemos coisas num instante, das quais passamos o resto da vida nos arrependendo.
Insistimos quando deveríamos desistir. Desistimos quando deveríamos persistir.
Poderíamos ir mais longe mesmo depois que achamos que não podemos mais dar um passo.
Falamos demais e ouvimos de menos como o fogão a gás que tem quatro bocas e nenhuma orelha.
Supervalorizamos momentos desimportantes. Superestimamos pessoas ignorantes. Superalimentamos sonhos delirantes.
Damos pouco afeto verdadeiro aos nossos filhos, porém, tentamos reeditá-lo desesperadamente com os nossos netos.
Vivemos mesmo o mundo da superfície lisa.