O galo D. João
Peço licença a você, caríssimo leitor, para sairmos um pouco da atmosfera ideal do Natal, com suas vitrines sedutoras e árvores gigantes, montadas em shoppings centers.
Peço licença a você, caríssimo leitor, para sairmos um pouco da atmosfera ideal do Natal, com suas vitrines sedutoras e árvores gigantes, montadas em shoppings centers. Com a chegada do Natal chegam também as lembranças. Você, certamente, guarda para si lembranças do Natal. Podem ser lembranças boas ou más, alegres ou tristes, pouco importa. Também mantenho vivas algumas lembranças do Natal. A expedição familiar para buscar barba de bode no matagal. O presépio no canto da sala, com o menino Jesus de louça e os bracinhos quebrados. Os reis magos de sabugo de milho. O alto custo para financiar o sono na antevéspera do Natal, devido a espera ansiosa pelo Papai Noel. O presente em meio à barba de bode; uma bola de plástico tão duro que desafiava a integridade física de pés habituados a achar pedras no escuro com a unha do dedão. Você que está abaixo da linha divisória dos quarenta, talvez não junte idéia do assunto. Talvez esteja torcendo o nariz com impaciência a esse assunto que cheira à naftalina. Apesar disso, continuo em frente. Um dos primeiros natais de que guardo lembrança, andava eu pelos quatros anos de idade. Nessa lembrança tem um galo. Não era o Galo de Barcelos, símbolo nacional de Portugal e que se encontra em lojas para turistas, nas peças em barro. O galo das minhas primeiras lembranças é um galo de cor avermelhada, com uma crista de serra imponente, barbelas separadas semi-circulares e dois olhos permanentemente furiosos. Parecia-se com um soldado altivo, indo para a guerra. Tinha, inclusive, nome de rei, D. João. Tínhamos uma relação hostil. Quanho punhamos o trigo para secar ao sol do meio-dia, sobre lençóis velhos no pátio, cabia a mim a tarefa de vigiar, a fim de que nenhum inimigo viesse atacar a nossa provisão de grãos para o ano. Claro que D. João me dava um trabalho danado. Costumava marchar em direção ao trigo com uma arrogância imensa e um orgulho estúpido. E o que era mais grave: morria de medo de ser atacado por D. João. Andava sempre com pedras no bolso e uma vime na mão, comprida como a Missa do Galo. O limite da vime era a tolerância de aproximação permitida. Às vezes, porém, D. João com sua imbecilidade autosuficiente avançava o limite e me atacava com bicadas doloridas. Morria de medo do galo que eu gostava. Gostava de vê-lo rufar as asas megâlomanas, alongar o pescoço cilíndrico e cantar tão alto que fazia tremer tudo a sua volta. D. João era respeitadíssimo. Ai se um outro galo ousasse arrastar asas a uma de suas inúmeras namoradas, não escapava de levar uma surra magistral. Dava gosto de assistir a valentia de D. João. Pouco antes do Natal, porém, assisti, involuntariamente, um dos mais tristes espetáculos da minha infância. Em frente ao galinheiro, minha mãe prendia, com uma mão as pernas de D. João, e com a outra segurava o seu pescoço. Em seguida, torceu e quebrou-lhe o pescoço. Lembro que D. João ainda tentou agitar as asas furiosamente, mas foi em vão. No dia seguinte, sopa de caldo e o prato de lesso na mesa. Em algum lugar do meu coração ouço disparar o canto grandioso de D. João anunciando um novo dia.