O doceiro
Foi na segunda semana de abril que tudo aconteceu.
Foi na segunda semana de abril que tudo aconteceu.– Ali está o doceiro, vá em frente! – encorajou-me meu melhor amigo, nos seus nove anos de idade.
Ao virar-me repentinamente para trás, pude ver um vulto correndo para atrás de uma árvore, mergulhar na sombra de outra e sumir.
– Tem alguém nos espionando – falei
– O medo faz a gente ver coisas que não existem – devolveu meu amigo.
Relutei o quanto pude, mas a tentação me venceu. Entreabri a janela da sacristia, grudada à lateral da igreja em pedra talhada do Paredes. Contorcendo-me feito uma cobra, consegui passar pela abertura estreita. Enchi o bolso de balas e retornei tão rápido que o meu amigo mal teve tempo de olhar para uma nuvem.
Mais tarde, saciados e lambuzados, meu amigo e eu logo nos juntamos à multidão defronte à igreja que aguardava a hora da missa solene. Imediatamente, e sem nenhuma organização, os fiéis acomodaram-se como puderam. Uns nos bancos, outros escorados às paredes laterais. Meu amigo e eu sentamo-nos nos degraus à direita do altar.
Os ofícios religiosos começaram. Meia hora depois veio o sermão. O Padre falou sobre o pecado de uma maneira tão forte que alguns fiéis sentiram algum tipo de remorso e deixaram pender a cabeça. Mas o pior estava por vir.
No momento da benção final, num tom de voz que fez estremecer as imagens em gesso dos santos no alto dos pedestais da igreja, o Padre disse:
– Tomemos o grave pecado cometido pelos dois garotos, presentes a esta celebração, que furtaram algumas balas do doceiro da sacristia, hoje cedo pela manhã.
Com um esforço inútil, meu amigo e eu tentamos evitar os olhares perfurantes e os comentários impiedosos, cochichados com as mãos em concha nos ouvidos dos vizinhos de banco. O Padre continuou:
– Essas duas pobres almas roubaram as balas que seriam distribuídas para todas as crianças após a missa.
Logo veio-me à mente a expressão:
– Quero sumir!
Os ossos das juntas desencadearam um festival de estalos altos, seguido de murmúrios das mulheres e pigarros dos homens. Minhas faces pegaram fogo. Meu coração congelou. O sermão prosseguiu:
– Quem sabe dos seus defeitos, está muito próximo de corrigi-los...
Comoção geral. O padre enxugou o suor da testa com as costas das mãos para revelar:
– Deus abençoe nosso coroinha que teve a coragem de entregar os autores do delito.
Pança estufou o peito, orgulhoso do feito. Pouco depois, o Padre encerrou a missa:
– Rezemos a oração que Jesus nos ensinou para que esses meninos voltem ao caminho do bem. Não os recrimine pelo pecado que cometeram. Deixemos a punição para Jesus. Agora, vamos em paz e que o Senhor nos acompanhe.
Não tive forças para abrir a boca. Lancei tão somente um olhar de sincero arrependimento para a imagem do Menino Jesus nos braços de Nossa Senhora. Em seguida, virei-me para Trampo. Ele tinha os olhos machucados pelas lágrimas. O meu amigo e eu entendemos que, naquele exato momento, tínhamos acabado de receber a mais severas lições de nossas vidas.